9/15/2019

Alexandre Herculano e a crença religiosa (Ensaio)



Alexandre Herculano e a crença religiosa

Herculano foi inimigo acérrimo da hipocrisia e do fanatismo; o seu culto era incomparavelmente mais interno do que externo; pela contemplação da natureza é que ele principalmente se elevava à ideia de Deus.

Diz o Sr. Teófilo Braga que Herculano mandou construir uma capela em Vale de Lobos. Isso não admira porque, sendo Herculano toda a vida um grande poeta, como o revelam as suas obras tanto em verso como em prosa, devia comprazer-se em ter diante dos olhos objetos que lhe recordassem os belos e saudosos tempos da sua infância. Na casa onde Herculano nasceu e passou os seus primeiros anos havia uma ermida onde um frade arrábido costumava dizer missa os dias santos. No Monge de Císter pinta-nos ele com as mais vivas cores a profunda saudade que lhe causava a lembrança dos dias santos da sua infância, do altar onde no sábado à noite se punham jarras de flores, do frade que lhe contava lindas historias ao almoço. Os verdadeiros poetas, os grandes sentimentalistas amam sempre o passado. Os homens demasiadamente positivos não podem compreender o sentimentalismo veemente das grandes almas. Se a cruz era para Herculano o símbolo da liberdade, da fraternidade e do progresso, não é de admirar que ele a amasse entusiasticamente, como o revelou na sua eloquente e filosófica poesia A cruz mutilada, escrita na sua mocidade. O ter mandado Herculano construir uma capela em Vale de Lobos não é pois uma prova de que o seu espírito retrocedesse com a idade. Alem disso o grande escritor não deixou de ser cristão em época alguma da sua vida. Rousseau, a quem os padres chamam ímpio, nunca zombava da religião como Voltaire. É porque o autor do Emílio era um sentimentalista ardente como Herculano. Littré, apesar de positivista, não queria perturbar sua mulher quando ela estava diante do oratório fazendo oração. Foi a instâncias de sua esposa que Herculano mandou construir a capela de que já fiz menção. Ainda que ele não fosse católico, haveria porventura neste procedimento alguma coisa digna de censura? O verdadeiro filósofo, o amigo da tolerância e da liberdade conserva sempre no seu coração o mais profundo respeito pelas crenças alheias. A liberdade de consciência é um dos princípios mais sacrossantos, um dos direitos mais sagrados, não só na sociedade mas até no lar doméstico, no santuário da família. O chefe de família não é um déspota nem a mulher uma escrava. A religiosidade é uma tendência natural da mulher, a crença é uma das condições da sua vida moral; se quiserem extinguir-lhe no coração o sentimento religioso, lançar-se-á no caminho do jesuitismo, o que certamente será um grande mal para a família e para a sociedade. A religião é um instrumento poderoso nas mãos do jesuíta; quem conseguir arrancar-lhe esta arma prestará incontestavelmente um grande serviço às gerações futuras. É por meio da propaganda verdadeiramente religiosa que se dão os golpes mais profundos na Companhia de Jesus. A religião nasce do coração e a filosofia da inteligência. Se a mulher é mais dominada pelo sentimento, como poderá ela compreender sistemas filosóficos que estejam em antagonismo com o seu estado psicológico, com as grandiosas aspirações do seu nobre coração? Embora todas as opiniões sinceras sejam para mim respeitáveis, eu entendo que, em vez de se agredir o cristianismo, se devem conter energicamente os erros dos falsificadores, que são os jesuítas e todos os padres cujas doutrinas sejam idênticas às dos filhos de Loyola.

Herculano, com a sua crença religiosa, ficou profundamente impressionado pelos estragos que a Companhia de Jesus fazia no cristianismo; por isso mostra-nos, em muitas das suas páginas imortais, quão perigosa é para o futuro da nossa pátria essa sociedade fundada no século dezesseis por Santo Inácio de Loyola e cujas intrigas obrigaram a sair de Portugal os lentes mais distintos da Universidade de Coimbra. Na prosa mais poética e viril que nos apresenta a nossa literatura, expôs e criticou os fatos mais interessantes da história do ultramontanismo; com a sua vista de águia previu os progressos que o jesuitismo havia de fazer em nossos dias.

O Sr. Teófilo Braga censura a Herculano o seu ardor em combater o jesuitismo e os novos dogmas introduzidos na religião católica, dizendo que ele dispendeu as suas forças contra os moinhos de vento do marianismo, do infalibilismo e do silabismo e que o jesuitismo se tornou para ele uma preocupação constante; mas, como o autor da Historia do Romantismo se tem ocupado dos mesmos assuntos, é evidente que escreve contra si próprio, o que me causa verdadeiro pasmo. Além disto a censura feita a Herculano recai sobre a própria imprensa republicana, que muito frequentemente narra e estigmatiza escândalos jesuíticos.

É o poder da igreja tão pequeno que se não devam combater com a máxima energia as suas doutrinas contrárias ao bem social? Tem porventura o jesuitismo tão pouca força que se deva considerar um elemento desprezível? Não tem a Companhia de Jesus progredido assombrosamente no nosso país? Não estão os colégios jesuíticos repletos de alunos? Leibnitz, um dos gênios mais vastos e profundos não só da Alemanha mas de todo o mundo, disse muito sensatamente: "Dai-me a educação, que eu transformarei a Europa em menos de um século." Alexandre Herculano, com o seu profundo critério, conhecia a grande força da educação; por isso receava que o jesuitismo viesse causar a decadência intelectual e moral da sua pátria.

A moral perversa dos jesuítas foi no século dezessete posta a descoberto não por um ímpio, não por um ateu, mas por um dos mais eloquentes e profundos apologistas do cristianismo, por um gênio prodigioso que, depois de ter feito os mais assombrosos descobrimentos científicos, depois de ter penetrado vários segredos da natureza, depois de ter resolvido os mais difíceis problemas da matemática, levantou, em favor do cristianismo, esse grandioso monumento filosófico intitulado Pensamentos, que, apesar de ter ficado incompleto, revela a profundeza do gênio que o traçou; este grande homem, este escritor religiosíssimo, este moralista austero, que se chamava Blaise Pascal, foi quem mais poderosamente contribuiu para a queda dos jesuítas no século dezoito. As suas Provinciais, escritas num estilo cômico e vigoroso, espalharam-se por toda a Europa e as máximas corruptas dos jesuítas foram ridicularizadas não só nas academias mas até nos palácios dos reis. Como poderia Herculano, o entusiasta ardente da moral pura e severa do Evangelho, deixar de combater energicamente as doutrinas anticristãs da seita jesuítica?

Diz o Sr. Teófilo Braga que Herculano, depois de se mostrar partidário do casamento civil, veio a casar-se catolicamente; o distinto professor acha este procedimento contraditório com as opiniões de Herculano. Quando, ao ler a História do Romantismo, encontrei esta asserção tão infundada, que fiquei realmente estupefato. O Sr. Teófilo Braga inverte completamente as doutrinas de Herculano, expostas com tanta lucidez nos seus Estudos sobre o casamento civil, e coloca-se a uma distância que lhe torna impossível apreciá-lo com exatidão.

Não há escrito algum em que Herculano tivesse combatido o casamento católico; pelo contrário, ele admitia duas espécies de casamento: o católico e o civil. O que repugnava ao seu espírito profundamente liberal e tolerante é que os indivíduos que não acreditassem no catolicismo se vissem obrigados a receber o sacramento do matrimônio, a praticar um ato contrário ao seu modo de pensar e que ele considerava um verdadeiro sacrilégio, uma ofensa à religião. Se Herculano era um velho católico, se ele estava convicto de que o sacramento do matrimônio remontava aos primeiros séculos do cristianismo, como procedeu o grande historiador contra as suas opiniões casando-se catolicamente? Herculano nunca defendeu leis que proibissem a qualquer indivíduo o seguir as suas crenças, tinha o mais profundo respeito pela liberdade de consciência, era inimigo de todas as violências feitas ao espírito humano, queria liberdade para todos, não era intolerante como os hipócritas da liberdade, que não respeitam a consciência alheia. Herculano sustentou que devia existir um registro civil especial para os casamentos dos não-católicos, não admitindo que os nubentes fossem interrogados acerca das suas crenças religiosas, o que, segundo a sua opinião, seria um atentado contra a liberdade de consciência, um processo verdadeiramente inquisitória! Quanto ao casamento católico, considerava-o debaixo de dois aspectos: como sacramento e como contrato. Estando num país, cuja maioria era constituída por católicos, admitia que o registro eclesiástico servisse de registro civil. Era assim que o grande historiador procurava conciliar o princípio sacrossanto da liberdade de consciência com o respeito à religião do Estado. Sejam quais forem as opiniões acerca das doutrinas sustentadas por Herculano relativamente ao casamento civil, é incontestável que não há fundamento algum para se afirmar que o seu casamento católico esteve em contradição com as suas ideias.

O seguinte trecho dos Estudos sobre o casamento civil é uma prova evidente de quanto é inexata a opinião do Sr. Teófilo Braga:

"O catolicismo puro e desinteressado não tem culpa desta horrível e imensa traição que nas altas regiões da jerarquia sacerdotal se está perpetrando contra ele. Não tem culpa de que o vendam por trinta dinheiros ao anjo mau da reação política. O catolicismo não quer que forcem os que não creem nele a receber um sacramento, porque não pede um ato que lhe repugna, que reputa uma profanação; não pede que os poderes públicos constranjam os membros do próprio grêmio a não pecarem, porque a inquisição é para ele a maior afronta que lhe têm feito os homens. O catolicismo puro não confunde o sacramento, que é coisa espiritual, com o contrato, que é matéria jurídica, porque desde os tempos apostólicos, conforme temos visto, jamais os confundiram as tradições legítimas da igreja... Considerada a questão à exclusiva luz do direito, o sacerdote que autoriza o contrato e o abençoa é, no primeiro caso, oficial civil, e no segundo, ministro da religião. É uma coisa simples, clara, inofensiva. Em nome da liberdade, deixemo-la ficar na lei."


DIOGO ROSA MACHADO
"Alexandre Herculano, Conferência Pública realizada no Ateneu Comercial de Lisboa", 15 de Julho de 1900.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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