9/08/2019

Catulo visto por Júlio Dantas (Artigo)



Catulo visto por Júlio Dantas

O poeta e dramaturgo de "A Severa" não perdia ensejo para louvar a poesia de Catulo da Paixão Cearense, a quem, num rasgo de entusiasmo, chamou de Virgílio caboclo. Isso, o escritor português o fez numa deliciosa crônica, incluída no seu livro "Gaios de Apoio". Noutra oportunidade, em entrevista ao "Correio da Manhã", ao chegar ao Brasil em 1923, para fazer uma série de conferência, o ilustre poeta e dramaturgo, ainda a bordo do "Almanzora”, ao se manifestar sobre a intelectualidade brasileira, citou depois dos nomes de Machado de Assis, Bilac, Afrânio Peixoto, Coelho Neto, Alberto de Oliveira e Oliveira Lima o nome de Catulo da Paixão Cearense, acentuando a impressão que os poemas do grande bardo sertanejo haviam produzido em sua sensibilidade, nos seguintes termos:

— E deixe-me agora que eu lhe fale, — continuou Júlio Dantas, — de um poeta, cuja sensibilidade tanto me comove. Deixe-me que eu lhe fale de Catulo. Ah, você não imagina o "frisson" delicioso com que eu penetrei um dia, no sertão bárbaro desse extraordinário poeta. O aroma selvagem da terra e da mulher, embriagou-me. E foi com saudade que lhe deixei o convívio rústico, para mergulhar de novo na civilização. Catulo da Paixão Cearense reviveu, ao sol da América, a musa radiante de Tagore. Ele realizou em arte o milagre do rapsodo hindu. Irmanou no mesmo ritmo cheio de juventude a paisagem e a mulher. Haverá um mais puro ideal estético? Eu, de mim para mim, ouso dizer que não.

Sob o título singelo de "Catulo Cearense", escreveu Júlio Dantas a crônica cintilante que figura em "Os Galos de Apolo" e que foi, antes, publicada em jornais de Portugal e do Brasil. É esta a interessante página em que o autor de "A Ceia dos Cardeais" compara a poesia de Catulo com a dos maiores troveiros portugueses:

Três poetas podem considerar-se hoje os mestres da redondilha na língua portuguesa: Antônio Correia de Oliveira, Augusto Gil e Catulo da Paixão Cearense.

Antônio Correia de Oliveira, reminiscência lírica de Crisfal, dá-nos, como ninguém, a quadra popular dos campos:

Sino, coração da aldeia,
Coração, sino da gente:
Um a sentir quando bate,
Outro a bater quando sente...

Augusto Gil, em cuja poesia tão sutilmente original se adivinha o sorriso amargo de Heine, é inexcedível na quadra popular da cidade:

Maria da Graça é uma
Cachopa de olhos em brasa:
Vive sozinha, não fuma,
E tem cinzeiros em casa.

Catulo Cearense, Virgílio caboclo que canta a floresta em éclogas ressumantes, saborosas, douradas e selvagens como os frutos do mato, representa hoje, na literatura brasileira, o máximo fulgor da poesia popular do sertão:

Os pezinhos da cabôca
quando dançava o baião,
parecia dois pombinho
a mariscá pulo chão!

Sá dona! Os cabelo dela
tinha o chêro naturá
da pomba virge do matos
quando cumeça aninhá!
  
A poesia do primeiro, a despeito do seu feitio popular, é essencialmente filosófica; a do segundo, caracterizadamente irônica; a do terceiro, francamente amorosa e sensual. Relendo os dois livros de Catulo — “Meu Sertão” e “Sertão em Flor” — impressionaram-me as analogias existentes, na delicadeza da emoção e na predileção dos motivos, entre as suas admiráveis composições e os idílios da velha literatura indiana. Para Catulo, como para o rei Súdraka, para Calidasa, para Bhavabhuti, os poetas hindus do século III a VII, a poesia limita quase exclusivamente à adoração da paisagem e da mulher. As opilências da natureza e as emoções do amor enchem a obra de Catulo, como enchem esses doces poemas escritos e sânscrito e em prácrito, de cuja sutil voluptuosidade o poeta hindu contemporâneo Rabindranath Tagore parece ter herdado o segredo, e onde, na luz cor de rosa dos céus de Indra, príncipes glabros como mulheres enlanguescem de paixão acocorados obre tronos de ouro maciço. Quando pela primeira vez o "Meu Sertão", as figuras delicadas de mulher criadas pela imaginação de Catulo Cearense, sobretudo a Maiby — encantadora Salomé — a Viruca, a Lindinha, a Tudinha, a Lionô, fizeram-me lembrar a graça volutuosa e dormente das amorosas da literatura indiana — a Sacountalá, a Vasantasena do “Carrinho de Barro", a Ourvasi ciumenta que transforma árvore da floresta, ou as ligeiras Priamvadá e Anousoyá, pequeninas deusas de bronze, de olhos de semicerrados, resplandecentes de peitorais argênteos e coroadas de lótus azuis. Numas e noutras, a sensualidade mais ardente reveste formas duma adorável candura infantil; umas e outras exercem sobre o homem, ou seja Douchanta, rei de Hastinápura, ou o cangaceiro Silvino Sapiranga, um domínio absoluto que se traduz numa adoração muda e extática; dumas e doutras, Tanagras amarelas da floresta, se exala a mesma morna volúpia e o mesmo prestígio sensual.

É verdadeiramente admirável a maneira porque, no “Sertão em Flor”, Catulo descreve alguns tipos de mulher, caboclas dos matos cearenses, que endoidecem os sessenta anos do violeiro Brás Macacão. A Xixi da Grota, de ancas redondas como uma viola e chinelas pequenas como ovos de beija-flor; “que fica cheirando a cobra quando dança”; Inhatuca, a “flor de canela”, alta, arisca, andando como as emas do sertão e espalhando em volta de si “um aroma de gema de ovo e uma catinga cheirosa de chita nova”; Isabela, de cabelos brancos como a flor da laranjeira, “já passada de madura, que é quando a fruta é mais gostosa”; Maria Santa, cabrochazinha adolescente, figureta de Myrina, “papo de rola” que exala na dança “um cheiro quente de fogo e um gosto fresco de luz”, — todas essas morenas inspiradoras da cavalaria rusticana dos cangaceiros palpitam de vida voluptuosa ao sopro criador de Catulo, como a graciosa Malati ou a dourada Agnimitra, cheias do mórbido encanto dos gineceus, tremem de sensualidade ao tocá-las o gênio de Bhavabhuti ou de Calidasa. Catulo Cearense é (mostra-o bem, nessa inimitável saga do Lenhador!) um paisagista assombroso, sentindo a ofuscante, a magnífica natureza brasileira como a sentem os pincéis de Batista da Costa ou de Antônio Parreiras ; e esse sentimento da paisagem concorre para tornar ainda mais impressionante o paralelo entre a sua obra e os luminosos idílios da velha literatura indiana. Mas é sobretudo o delicado, o terno, o original sentimento do amor e da mulher que hão de tornar imortal este grande poeta — já hoje maior, muito maior do que os seus próprios admiradores o supõem. Na figura de Brás Macacão, cabra violeiro, sente-se a sua alma ardente e namorada que passa. Que importa que a neve lhe cubra os cabelos? A sua adoração pela mulher durará até à morte. Para Calidasa, “o amor é uma paixão que torna belas as mulheres”. Para Catulo, a velhice apura, espiritualiza e exalta o sentimento amoroso dos homens. É Brás Macacão que o diz, abraçado à viola, sentindo bater no peito, aos setenta anos andados, a asa desse “galo velho”, que é o coração:

Sempre a muié! A muié!
Vassuncês diga o que é
Um coração de home veio,
Que quanto mais veio fica
Mais aprecêia a muié!

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JÚLIO DANTAS
“Os Galos de Apolo”, 1921.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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