9/15/2019

Machado de Assis (Crítica)



Machado de Assis sob o olhar de um crítico parcial

O texto, a seguir, foi extraído da revista "Kosmos", em sua edição nº 4, de abril do ano de 1909, portanto, um ano após a morte do nosso genial Machado de Assis. Trata-se de uma crítica feita ao nosso romancista, de autoria de um tal José Maria de A. Belo, cujo nome já se perdeu no trânsito da história...

Segundo um pensamento atribuído a Sibelius: “Não devemos dar demasiada atenção ao que os críticos dizem. Nunca foi erguida uma estátua em honra de um crítico.” A crítica do nosso José Maria parece exemplificar em perfeição esta importante reflexão. Lá pela tantas diz ele do grande Machado de Assis: “Machado de Assis não teve e nem terá nunca uma larga repercussão no nosso meio”. Incrível como a crítica literária, às vezes tão burra e cega, só consegue enxergar o artista pelo víeis restrito do seu tempo, sem aventar outras possibilidades. Hoje Machado de Assis é a referência máxima de nossa literatura, sendo inclusive de elevado prestígio nos âmbitos literários em todo o mundo. Mais adiante diz ainda o mesmo crítico: “Machado de Assis não é nosso pois, não está na curva da nossa evolução intelectual...” Como se pode notar Machado de Assis não fora muito bem aceito por determinada elite tupiniquim, e sua condição social e étnica explicam um pouco esta aversão ao nosso gênio literário.

Machado é o nosso grande escritor e merece todos os méritos, pois, além de tudo, tornou-se num maravilhoso exemplo de uma pessoa verdadeiramente batalhadora, que lutou contra as intempéries da vida, que, no seu caso, era sua condição social humilde, sua cor e sua doença, a epilepsia.

VIVA MACHADO DE ASSIS!!!
Iba Mendes (2010)

***

Machado de Assis

Bem cedo, o grande morto do ano passado vai sendo esquecido.

A última vez, que se falou dele foi, parece-me, na bela conferência do Sr. Oliveira Lima, que o Jornal da Comércio nos deu integralmente.

No entanto, ninguém em nosso meio, como Machado de Assis, consegue despertar o interesse literário.

Nulo se o lê impunemente; é uma figura estranha entre nós.

Normalmente, a cultura brasileira não permitiria o seu aparecimento; ele paira numa esfera superior ao seu tempo e à sua raça.

Como se tem dito mais de uma vez, foi um grego ou um francês das antigas tradições, prendendo-se através de Anatole France e de Renan ao grande século de Luís XIV.

A obra literária representa, tanto quanto a personalidade do escritor, as ideias, os costumes, as aspirações ambientes; aquele se torna, inconscientemente, o mais alto expoente da inteligência e dos sentimentos do seu meio. Machado de Assis, não. Isola-se dos seus, foge a corrente da literatura nacional; pelo seu refinado intelectualismo, pela sua arte originalíssima é um produto esporádico, uma espécie de anomalia.

Se não tem escolas nem épocas literárias, a humanidade de seus livros não é propriamente uma humanidade ideal sem limites geográficos ou históricos. Neles se retrata uma sociedade, que já foi uma geração extinta, que nós, os novos, não conhecemos e quase não compreendemos hoje.

Não quer isto dizer que Machado de Assis tivesse sido um escritor de romances nacionais ou um novelista indígena, no estreito ponto de vista de Macedo ou de Alencar.

O Brasil se resumia para ele no Rio de Janeiro, onde, como todos os centros cosmopolitas, as originalidades de raça se perdem, na imitação inconsciente das civilizações modelares.

Assim pois, ele colheu o homem na sua formação definitivas como um produto completo, de que não quis conhecer os fatores.

O mundo físico quase que não existe na sua arte; aproximando-se de Sthendal, neste ponto, o homem só lhe valia como uma complicada máquina cerebral, que ele psicólogo sutil se comprazia em movimentar.

Não foi um romancista; os seus livros não são romances, na acepção nítida e moderna do termo, depois de Flaubert e de Zola.

A ele, o senhor da suprema harmonia no estilo, o mestre querido da medida e da sobriedade literárias, faltava a lógica do conjunto, a arte, talvez um pouco mecânica, da confecção externas como lhe faltou também o talento descritivo e o poder de imaginação.

E preciso aceitá-lo, tal qual se revelou, com os defeitos de suas virtudes.

Deixou-se influir muita pela liberdade de forma de De Maistre e, mais ainda, dos humoristas ingleses Sterne e Dickens foram de certo, seus ídolos literários.
Eu sei que a novela romântica ou os romances lógicos, medidas e justos de Flaubert, Zola e Bourget se tem tornado de uma banalidade fatigante, em França, sobretudo, onde os psicólogos sutis de anomalias sentimentais se multiplicam espantosamente.

Os livros de Anatole France demonstram a reação que se vai fazendo em bem da graça, da bula e da sobriedade, que são os apanágios eternos do espírito francês.

Entretanto não creio que “Thais” ou os “Contes de Jacques Tournebroche” representem a forma definitiva e vitoriosa da literatura.

Na intensidade da vida moderna, o intelectualismo se aniquila; a arte se torna, inevitavelmente, utilitária e democrática.

O romance tende pois a se resumir numa espécie de monografia científica, num estudo breve e incisivo de patologia social ou humana.

Mas nós não passamos pela fase primeira. Machado de Assis é pois, um prematuro na nossa evolução literária e, sobretudo, um entranho.

Ninguém foi menos nacional do que ele. Não sentiu nunca a influência deletéria, para a arte, da natureza violenta dos trópicos.

De origem humilde, mestiça e tipógrafo, jornalista e burocrata depois, dir-se-ia que se encerrava em si mesmo, criando-se um mundo intangível e à parte. Sua timidez congênita seu bom gosto inato salvaram-no.

Num país, em que o estilo é a pompa, a adjetivação desvairada, a frase voluptuosa e quente, que causam arrepios de volúpia e calafrios de gozo, foi um sóbrio e um harmônico.

Colocando-se alguém, num ponto de vista de crítica dogmática não o compreenderia. Com a sua timidez, no ambiente social, em que viveu, deveria ter feito uma literatura de comendador solene e besta.

Mestre de sua língua respirando a atmosfera envenenada por um século de romantismo, seria antes um retórico genial ao modo de Rui Barbosa.

No encanto, nem uma nem outra coisa. Mesmo nos seus primeiros livros, em “Helena”, em “Histórias sem data”, ou em “Papéis avulsos”, eivados ainda de certas ficções românticas, o artista impecável de “Brás de Cubas”, ou de Dom Casmurro, se revela já, na ironia amarga e suave, simultaneamente, na psicologia aguda, na limpidez do estilo e sobretudo na correção da língua.

O cético e o humorista da “Teoria do medalhão”, e do “Alienista” valem bem o cético e o humorista do “Brás Cubas”, que é, sem dúvida, a sua obra-prima.

Para conhecê-lo, é suficiente talvez ler esse livro de ouro, relê-lo duas, três vezes nas entrelinhas, nos capítulos, que não escreveu... enfim, nas suas sutilezas todas, na sua ironia branda, no seu pessimismo, que ele embalde, tenta ocultar.

Não lhe esqueçamos o fim: “não tive filhos, não transmitir a nenhuma criatura o legado de nossa miséria...”

Como ele próprio o diz, foi este o único saldo que Brás Cubas encontrou na morte ou no outro lado do mistério.

Esta história singela sem episódios românticos, espécie de diário de uma vida burguesa e vulgar é, no fundo, um livro doloroso e triste, o livro de um descrente, quase uma apologia da inércia.

É preciso censurá-lo por isso? Não. Machado foi sincero, a sua filosofia, que, no dizer do Sr, Oliveira Lima, consiste no modo de ver e compreender o universo, era aquela.

E quem poderá dizer que não seja a verdadeira e negar a inanidade de todos os esforços a eterna importância humana?

Spencer nos “Primeiros Princípios”, depois da sistematização genial de urna filosofia viril e triunfante, cabe na dúvida, que lhe é um desmentido, na descrença, que é uma irmã da inércia.

Quando se lê Machado de Assis, um pesar único se tem: o de não ter descido mais na análise de nossas misérias, de não ter desnudado melhor a alma humana, que tão bem soube conhecer.

Machado de Assis, psicólogo de raça, não teve nunca esta grande vista de conjunto, este poder de síntese e de generalização filosóficos, um pouco dogmáticas talvez, que constituem o grande mérito de Zola, por exemplo. Sua crítica se contenta em ferir de leve; não quis descer ao âmago das coisas.

Parece que o abismo da alma humana lhe causa medo e que a animalidade nossa lhe produz um movimento instintivo de poder delicado e feminismo.

Está no seu gênio de tímido, de uma timidez sincera, senhora um pouco excessiva e que foi sempre um braço característico de si. Já se disse algures que essa timidez era um produto de sua vida banal de burocrata; traria assim para os seus livros um reflexo do convencionalismo e de respeito às causas aceitas, às hierarquias sociais.

Foi um pouco injusta a crítica; ela era orgânica. Se se lhe fosse buscar uma origem qualquer, seria, decerto, no seu ceticismo, no seu desprezo de artista pela imbecilidade humana. Com maior verdade se disse de Machado de Assis, que encontra um certo prazer em zombar do seu leitor, Sente-se-lhe o riso mudo nas entrelinhas, não o riso sarcástico e irreverente de Eça ou o ritus amargurado de Schopenhauer; é antes um riso piedoso e condescendente de avô cético...

A tolice nossa não lhe causa os gritos de revolta, o desespero agressivo de Eça de Queirós; quando muito, lhe faz aflorar um ligeiro sorriso. É um paralelo interessante a se fazer, este, entre as dois maiores escritores da nossa língua. Dotados ambos de igual poder de observação, no entanto, a diferença entre os seus temperamentos e processos de artistas, é radical e profunda.

Eça, nervoso e irreverente, iconoclasta por índole e pela educação, chicoteou impiedosamente todo um povo, caricaturista genial de uma sociedade degenerada, não conhecem limites à ironia, excedendo-se, por vezes, em prejuízo de sua impassibilidade superior de artista.

O cretino ou o imbecil lhe causam desespero e ódio. Temperamento de combate, violento e implacável, senhor de uma língua, que foi sua unicamente, mais do que escreveu, fotografou, mais de que romances de costumes, fez processos dessa sociedade de Acácios, Pachecos e Gouvarinhos, que foi portuguesa e é nossa hoje. Elegante e requintado, vivendo nas civilizações superiores do velho mundo, foi o maior patriota do seu tempo. Regenerou pelo ridículo, destruiu um mundo pela ironia. Machado de Assis, tão arguto e mais amargo do que seu confrade português, não teria nunca esse jacobinismo destruidor, essa irreverência atrevida, que já dizia João do Ega, é uma condição de progresso.

Ele fere, sem deixar a chaga sangrenta da autor dos “Maias”; a sua ironia é como um estilete agudo, que mal se sente. Faltava-lhe a ousadia de prosélito; não tentaria nunca destruir a ordem das coisas, aceitando a imbecilidade ambiente com uma bonomia de aparência ao menos.

Foi puramente, absurdamente, um intelectual nesta terra em que o intelectualismo é uma palavra vã, uma ficção para uso externo, nas conferências de um patriota, como o Sr. Oliveira Lima, fazendo indiretamente uma piedosa propaganda de sua gente...

Em casa se pode ser mais franco... Machado de Assis não teve e nem terá nunca uma larga repercussão no nosso meio; sua obra foi superior á nossa cultura, estranha ao nosso gosto.

A nossa democracia, niveladora e exagerada, é impiedosa para as coisas de espírito, como aliás a são todas as democracias. Estigmatizadas de origem, com uma perniciosa educação política, sem vida social, asfixiados, sob a violência da natureza, numa fase ainda de formação e, assim, de imitação inconsciente, a nossa literatura tem de ser o que é, genuíno produto de todos esses fatores, uma literatura incolor, sem relevos, oscilando entre o indigenismo banal de Alencar e a obra vibrante, porém desarmônica de Coelho Neto, como seus melhores tipos, de um lado, e o plágio servil dos livros franceses, de outro lado.

Machado de Assis não é nosso pois, não está na curva da nossa evolução intelectual, de que o gênio do Sr. Rui Barbosa é o ponto supremo.

O outro ático, que se lhe aproxima, o Sr. Joaquim Nabuco, explica-se. Viveu longe do nosso meio, sentiu de perto o contágio indelével de Renan, é um filho direto da cultura francesa. A campanha abolicionista, que o trouxe à rua a multidão ruidosa e bárbara, não conseguiu aviltá-lo como artista, nobilitando-o, como homem.

Para ser justo, poderia excetuar ainda, Raul Pompeia, o grande artista do “Ateneu”, talvez o livro mais perfeito da nossa literatura, e hoje os senhores Graça Aranha e Euclides da Cunha.

Mas esses dois últimos representam outra corrente literária, a da preocupação social, dos altos problemas da vida, invadindo a arte, mostrando-lhe a função futura e nobilíssima; assim me não é permitido estudá-los aqui, de afogadilho, nos modestos limites, que a mim próprio tracei. “Canaã” e, sobretudo, os “Sertões” são livros de sábios e de sociólogos.

O Sr. Oliveira Lima não disse essas coisas que todos nós sentimos.

Falando perante um auditório estrangeiro, sua excelência quis mostrar Machado de Assis, em si somente, através de seus livros e de sua vida íntima. Não lhe importou a anomalia, que ele representa nas nossas letras.

Sobre o escritor dificilmente algo se poderia dizer de novo, máxime depois dos estudos do erudito Sr. José Veríssimo e da conferência do nosso digno diplomata.

Relendo-lhe a obra e esta conferência, fui tentado a dizer as minhas impressões, todas pessoais, sem pretensões a crítica dogmática, já se vê...

Eu sei bem que é uma irreverência, quase uma afronta a sua memória sagrada a nós todos, mas ele, que, como “Brás Cubas”, se encontra, agora, no outro lado do mistério, decerto, me perdoará, na sua condescendência de sempre, embora lhe sinta o sorriso cético e piedoso e mais este “incomensurável desdém dos mortos”...

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JOSÉ MARIA DE A. BELO
Revista "Kosmos", abril de 1909.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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