A primeira vez que vi
José de Alencar foi em 1860.
Estava com os meus
onze anos apenas; — nessa idade em que todas as impressões são fortes,
violentas; — nessa idade em que despontam para o homem os primeiros raios da
poesia. Passava ele por Pernambuco em demanda da província natal, aonde ia
buscar as inspirações potentes, que o artista deveria depois transformar na
joia conhecida no mundo literário sob o nome de Iracema. É incalculável o abalo que me causou então esse olhar
distraído e ao mesmo, tempo brilhante, esse olhar excepcional que todos nós lhe
admirávamos, e que denunciava o vidente, em constantes comunicações com os
intermúndios do pensamento.
Considero essa data
como um acontecimento em minha vida.
Na minha ingenuidade
de criança julguei-o mais do que um homem; e, porque o Guarani, primeiro romance que li, já grandes sulcos traçara em meu
tenro espírito, pensei que o autor de coisas tão bonitas mal poderia roçar a
terra com os pés. Esta circunstância influiu de um modo decisivo sobre a minha
vida futura.
Nos meus devaneios
pueris nunca entraram nem as ambições gloriosas da palavra, nem os delírios da
política, nem as pujanças do dinheiro, nem os arrastamentos das belas artes;
parecia-me, porém, que não haveria grandeza superior à de um fazedor de livros,
e principalmente de livros como o Guarani.
Si parva licet... não sei se em boa
hora me veio este anch io son pittore.
Ignorava as torturas do ideal, e estava ainda bem longe de pensar nos castigos
que a natureza inflige ao audaz que tenta levantar o véu dos seus mistérios.
Seja, porém, como for, deste ponto data o meu desvairamento literário. Pudesse
tão peregrino engenho ouvir-me da tumba, aonde o deitou para sempre a combustão
de um cérebro ardentíssimo, e eu o culparia desassombrado por tamanho crime!
O que é certo é que,
depois de 1860, foi-me o vulto daquele homem obsessão constante, nas aulas, nos
passeios, no repouso... E ainda agora me recordo do prazer profundo, quase
atingindo à idolatria, com que indagava as menores, particularidades de sua
vida escolástica, pondo-me a par não só do seu modo de pensar, como do método
empregado na composição de suas obras. Essa tenaz cultura da imagem de um
artista, pelo decorrer da vida de acadêmico, assumiu proporções incalculáveis.
José de Alencar viveu
na minha alma durante essa época com um vigor indizível. Povoava-a
inteiramente. A sua imagem absorvia-me, os seus livros roubavam-me as horas
mais preciosas; e pensamento que não viesse vazado pelos moldes que lhe eram
peculiares, repelia-o meu espírito como ao amargo a boca. Era que o seu estilo
fluente e suavíssimo embriaga-me como sutil veneno. Minha alma estava de todo
saturada.
O ardente desejo de
torná-lo a ver foi enfim satisfeito em 1870. Tinha então o autor de Lucíola abandonado o gabinete 16 de Julho. Fui encontrá-lo no ameno
sítio da Tijuca, onde desafogava-se das lutas tão malfadadas, empreendidas por
sua titânica inteligência contra mil obstáculos opostos à sua carreira. Para
seu espírito de artista este período constituíra uma noite tenebrosa, sulcada
por enormes relâmpagos de gênio. De alguma maneira essa noite o extenuara; e
foi talvez gérmen de dissabores, para os quais não criara a natureza a alma de
quem tão feminilmente traçara os tipos de Ceci,de Carolina, de Diva e outros;
dissabores que, como mais tarde agravaram os seus incômodos, tendo antes disto
impressos ao seu caratê de romancista direção desconhecida.
Com razão a poesia
reconquistava-o; e a sua vingança foi solene, porquanto no remanso deste ócio
foi que ele compôs os livros de Senio.
Escrevia ele os Sonhos d'ouro quando aí cheguei, romance
que ia lendo à família, capítulo por capítulo, à proporção que os ia compondo.
Jovial, como quem acabava de um pesadelo, sua alma mostrava-se desanuviada de
todos os pesadumes que por vezes a enegreciam. Pude então ver quão amorável era
aquela criatura, e de que recursos para cativar os outros não dispunha o seu
coração de poeta.
A Tijuca é
incontestavelmente um sítio próprio para ninho de poetas, e dir-se-ia que,
graças à amenidade daqueles píncaros, José de Alencar, quando para ali
refugiava-se, esquecia-se do mundo. Verdadeiro genuflexório, como ele mesmo a
chamou, posto entre a terra e o céu, a Tijuca tinha o mágico poder de
transformá-lo, isto é, de obrigá-lo ao seu papel. Seu espírito gentil perdia-se
na vastidão da nossa pujante natureza, mergulhava-se nos abismos, nos limbos do
pensamento, e, uma vez retemperado, quando voltava, era para trazer-nos, como o
mergulhador de Schiller, alguma gema inestimável.
Não descreverei as
impressões que experimente nesse dia famoso. Descendo a coisas mínimas, apesar
da intimidade, direi mesmo da ingenuidade em que se envolvia aquela alma em
ocasiões semelhantes, o ídolo não desceu do altar em que o colocara a
imaginação do adolescente. O prestígio aumentava mais e mais, e, a cada
particularidade em que seu espírito fértil se projetava, novos e desconhecidos
alentos tomava minh'alma. Na volubilidade de uma conversação animada fez-me
percorrer todos os repositórios de seu saber, todos os recessos de uma
imaginação tropical. José de Alencar tinha desses dias de expansões e quem
quer que o encontrasse nessas felizes disposições, podia ver bem de perto a
matriz, o veeiro de onde jorravam tão preciosos metais.
Ainda estou bem
lembrado de uma frase que ouvi-o pronunciar indolentemente, quando passeava
pelas alamedas do pitoresco sítio da Tijuca, assuntando a propósito do mais
insignificante objeto que caía sob suas vistas:
— Coisa singular!
Ninguém havia de supor, dizia ele, que as imagens mais frequentemente
empregadas em seus livros brotavam-lhe da pena quando menos esperava, sem que
pudesse determinar em que situação a natureza fornecera-lhe os precisos
elementos.
Sem o pensar o autor
de Lucíola confirmava, confessava a
lei ditada por um eminente crítico moderno, isto é, que a maior parte do gênio
consiste em atos inconscientes. Das vulgaridades douradas por sua imaginação
passou de súbito para a revelação dos trabalhos de Hércules. Com o mais vivo
interesse ouvi então a invocação dos Filhos de Tupã, a descrição da luta entre
dois guerreiros selvagens, e uma barcarola mimosa, trecho sublime de um poemeto
sobre Niterói que ainda está por publicar.
É inútil referir que
surpresa experimentei vendo-o no meio dos seus manuscritos, e quase que, por
assim dizer, no momento mais solene da vida do artista — o ato de gestação.
Entrando em seu
gabinete de trabalho, não me escapou a observação de quanto ele era avesso à
pose. Em torno de si nem um só desses objetos grotescos de que ordinariamente
se costumam cercar os fantasiosos.
No seu ninho da
Tijuca tudo respirava simplicidade e candura. A natureza e ele.
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ARARIPE JÚNIOR
José de Alencar: Perfil Literário.
Pesquisa
e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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