9/15/2019

A poesia de Bulhão Pato (Ensaio)



A poesia de Bulhão Pato

A crítica também tem as suas aberrações e as suas simpatias, e em o número daquelas deve decerto entrar a facilidade com que ela apelidou a poesia de Bulhão Pato de poesia loira. Se à maneira do que Sainte-Beuve escreveu, tratando de Alfredo de Vigny, desejam exprimir na frase "poesia loira" a poesia pura, entusiasta, cândida, a poesia ingênua e de expansivos e simples afetos, talvez que o epíteto não seja de todo descabido no poetar do sincero e apaixonado cantor; mas agora, se "poesia loura" querem que seja a poesia de índole buliçosa, doidejante, infantil, travessa, embora de singelos e descuidosos devaneios, então a qualificação não é de todo verdadeira, porque o autor da Convalescente no outono, da Helena, da Visão do baile, e de outros tantos poemetos inspirados pelo amor e pela saudade, é um poeta íntimo, afetuoso, melancólico, elegíaco até, e cuja candura de alma desafoga em ardentes e suaves estrofes de sentimento lírico. Nem tão pouco é completa, e nem se quer aproximada, a semelhança dos instintos poéticos de Bulhão Pato com o gênero de talento de Alfredo de Musset; há evidente diferença nas inspirações que mais habitualmente inflamam o estro dos dois poetas, e ainda maior diferença nos caminhos que seguem, nos aspectos naturais com que simpatizam, e nos afetos que lhes acendem o coração e a fantasia.

Nada mais difícil do que fazer classificações, e todavia, a crítica abalança-se muitas vezes a este arbítrio, separando, analisando e qualificando o talento de qualquer escritor por espécies e famílias, como o poderia fazer tratando-se de qualquer família das plantas. Disto segue-se que mais de um Linneu tem naufragado no empenho de semelhantes divisões científicas, por que realmente há grande distância entre pôr uma etiqueta sobre este arbusto ou aquela flor, ou colocá-la sobre um poeta ou um prosador. Todavia, no nosso caso, a análise e a divisão estão feitas. O talento de Alfredo de Musset é um misto de Byron e Sterne, em quanto que Bulhão Pato pertence à sentimental e melancólica estirpe de almas apaixonadas, que em França tem por irmãos Mademoiselle de Valmore e Mademoiselle Tastu, e que entre nós é a expressão dá verdadeira índole da poesia peninsular. E se não fosse a ânsia que sempre entre nós houve, e muito mais nestes nossos tempos de fáceis e desejadas aclimações estrangeiras, de ir sempre procurar fora aproximações destas, como se este batismo estranho, se tornasse indispensável para a consagração dos nossos engenhos, se não fosse esta ânsia, repetimos, fácil seria encontrar, mesmo no parnaso português, os congênitos e os ilustres ascendentes da linhagem poética de Bulhão Pato.

Analisando e seguindo com a vista a veia poética de Bulhão Pato, que ora se derrama em tranquilos e cristalinos meandros, por balseiras perfumadas, que, atraídas pelo suavíssimo sussurro do gracioso arroio, vem remirar-se na corrente e beijar-lhe as águas; ora correndo mais apressada e espumosa, se esconde em grutas, onde o amor depositara seus mistérios, ora volvendo atrás e enredando-se na selva, depara com uma gentil serrana, e aí se demora em límpidos rodeios, como se tão sedutor aspecto lhe imobilizara o nativo impulso; analisando e seguindo com os olhos todos estes caprichosos giros, quem não compreende que a alma do poeta se anima de todos os sentimentos que o contato da formosura inflama, o os diversos aspectos da natureza idealizam, e que daqui sai aquele composto de lirismo suave e afetuoso, que umas vezes toma as formas bucólicas, outras arde nos ímpetos eróticos, outras enfim procura os tons meigos e penetrantes da elegia, composto simpático e mavioso de que o desditoso Macias é já o precursor, ainda que mal definido, e Bernardim Ribeiro, a nossa mais perfeita e gloriosa personificação? Quem não compreende esta Índole e este parentesco?! É do poeta das Saudades que descende em linha reta o autor da Helena. Até há incontestáveis pontos da analogia entre muitos dos sentimentos, inspirações e até entre a própria concepção poética dos dois trovadores. E trovador chamarei a Bulhão Pato, porque ele, como João de Lemos, e como Tomás Ribeiro, e talvez mais do que o primeiro, e tanto como o segundo, é um dos naturalíssimos filhos desta família peninsular. Na soa estreia o mostrou logo, na Revista Universal. Foi justamente a ingenuidade, o gracioso desalinho desta musa que, para se mostrar, nem procurava as pompas das metáforas de Victor Sugo, nem os embevecimentos contemplativos de Lamartine, que atraiu a atenção e simpatia de todos.

Quando a maior parte dos nossos jovens corria azafamada a jurar bandeiras nas hostes gloriosas dos grandes mestres franceses, Bulhão Pato parecia só querer evocar do primeiro e mais nativo período da nossa poesia aquela singeleza, aquela candura de afetos, aquela profunda e dolorida saudade que os cantores provençais nos trouxeram, e que os poetas árabes nos deixaram. É este o caráter da poesia peninsular, e ninguém, como Bulhão Pato, a não ser o autor de D. Jaime, a sente e revela melhor. Nos mesmos versos em que ele parece afastar-se um pouco da natureza dos assuntos mais prediletos ao alaúde antigo, nesses mesmos respira a simplicidade, os afetos tranquilos, o tom da suave e íntima tristeza, que são o seu característico. Na folha desbotada, diz o poeta :

É esta na existência
A tua estrela de amor!
De amor puro, intenso, ardente,
Mas que, oculto eternamente,
No meu peito ficará!
Que, no infortúnio nascido,
Só comigo tem vivido,
E comigo morrerá.

Não será, esta a ingenuidade, o afeto tocante e singelo, a mesma ausência de artifícios de estilo dos trovadores?! Até as repetições do mesmo pensamento no trocadilho final, umas das suas fórmulas mais usadas e características.

E nesta estrofe, da poesia que o autor intitula Voltas, não encontramos nós a própria maneira bucólica de Bernardim Ribeiro, a ponto de nos parecer estar lendo algumas das éclogas do autor da Menina e Moça?

Agora entre as outras flores
Correm uns certos rumores...
Quais são, não sei; mas ouvi
Que as mais belas da campina
(Por quem és tão invejada),
Quando hoje chamam por ti,
Dizem — rosa namorada,
E não — rosa purpurina.

Nestes versos há a graça do idílio junto ao perfume suave da écloga: é Rodrigues Lobo e Bernardes ao mesmo tempo.

Mas quem me vir tão escrupuloso a inquirir assim a origem e progênie poética de Bulhão Pato, talvez presuma que ele faz consistir seus títulos de fidalguia literária em ser perfilhado nesta ou naquela escola, e que eu por lisonjear a vaidade do poeta, a mais feminil e meticulosa de todas as vaidades, me dei a esta tarefa de investigação de linhagens, desentranhando do cadoz dos pergaminhos da arqueologia literária os seus atestados de filiação. Pois se cuidam isto, cuidam mal. Bulhão Pato nunca pensou em escolas poéticas, e é justamente desta isenção de pensamentos que lhe resulta a liberdade que desde os primeiros anos inculcará a individualidade do seu engenho. Bulhão Pato canta como o rouxinol trina, como a rola geme, como a andorinha pipila, sem outra ciência nem outra pretensão senão o desabafo dos ímpetos que lhe agitam a alma, sem outro auxílio mais do que a nota espontânea e natural. É um poeta intuitivo, afetuoso e expansivo, e tão fácil em derramar lágrimas e mover-se a todos os transportes, tão debatido envergado pelos ventos da paixão, tão inspirado só pelos abalos íntimos, tão estranho a escolas e artifícios da arte, que lendo-o, e ainda mais, ouvindo-o recitar os seus próprios versos com a veemência e admirável naturalidade com que ele os recita, é impossível não considerar a poesia como independente de todo o fim convencional, e não ver nela o simples dom do poeta chorar, compadecer ou exaltar as suas angústias, envolvendo na melodia o seu sofrimento. E é por isto que ele pertence, não intencionalmente, mas pela organização do seu ser poético, à mesma família de cantores naturais e espontâneos que em combinações rítmicas de extrema singeleza, acolhiam por únicas inspirações a natureza, a glória e o amor.

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J. M. DE ANDRADE FERREIRA
O Futuro, 15 de fevereiro de 1863.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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