A crítica também tem as suas
aberrações e as suas simpatias, e em o número daquelas deve decerto entrar a
facilidade com que ela apelidou a poesia de Bulhão Pato de poesia loira. Se à maneira do que Sainte-Beuve escreveu, tratando
de Alfredo de Vigny, desejam exprimir na frase "poesia loira" a
poesia pura, entusiasta, cândida, a poesia ingênua e de expansivos e simples
afetos, talvez que o epíteto não seja de todo descabido no poetar do sincero e
apaixonado cantor; mas agora, se "poesia loura" querem que seja a
poesia de índole buliçosa, doidejante, infantil, travessa, embora de singelos e
descuidosos devaneios, então a qualificação não é de todo verdadeira, porque o
autor da Convalescente no outono, da Helena, da Visão do baile,
e de outros tantos poemetos inspirados pelo amor e pela saudade, é um poeta
íntimo, afetuoso, melancólico, elegíaco até, e cuja candura de alma desafoga em
ardentes e suaves estrofes de sentimento lírico. Nem tão pouco é completa, e
nem se quer aproximada, a semelhança dos instintos poéticos de Bulhão Pato com
o gênero de talento de Alfredo de Musset; há evidente diferença nas inspirações
que mais habitualmente inflamam o estro dos dois poetas, e ainda maior
diferença nos caminhos que seguem, nos aspectos naturais com que simpatizam, e
nos afetos que lhes acendem o coração e a fantasia.
Nada mais difícil do que fazer
classificações, e todavia, a crítica abalança-se muitas vezes a este arbítrio,
separando, analisando e qualificando o talento de qualquer escritor por
espécies e famílias, como o poderia fazer tratando-se de qualquer família das
plantas. Disto segue-se que mais de um Linneu tem naufragado no empenho de
semelhantes divisões científicas, por que realmente há grande distância entre
pôr uma etiqueta sobre este arbusto ou aquela flor, ou colocá-la sobre um poeta
ou um prosador. Todavia, no nosso caso, a análise e a divisão estão feitas. O
talento de Alfredo de Musset é um misto de Byron e Sterne, em quanto que Bulhão
Pato pertence à sentimental e melancólica estirpe de almas apaixonadas, que em
França tem por irmãos Mademoiselle de Valmore e Mademoiselle Tastu, e que entre
nós é a expressão dá verdadeira índole da poesia peninsular. E se não fosse a
ânsia que sempre entre nós houve, e muito mais nestes nossos tempos de fáceis e
desejadas aclimações estrangeiras, de ir sempre procurar fora aproximações
destas, como se este batismo estranho, se tornasse indispensável para a
consagração dos nossos engenhos, se não fosse esta ânsia, repetimos, fácil
seria encontrar, mesmo no parnaso português, os congênitos e os ilustres
ascendentes da linhagem poética de Bulhão Pato.
Analisando e seguindo com a vista a
veia poética de Bulhão Pato, que ora se derrama em tranquilos e cristalinos
meandros, por balseiras perfumadas, que, atraídas pelo suavíssimo sussurro do
gracioso arroio, vem remirar-se na corrente e beijar-lhe as águas; ora correndo
mais apressada e espumosa, se esconde em grutas, onde o amor depositara seus
mistérios, ora volvendo atrás e enredando-se na selva, depara com uma gentil
serrana, e aí se demora em límpidos rodeios, como se tão sedutor aspecto lhe
imobilizara o nativo impulso; analisando e seguindo com os olhos todos estes
caprichosos giros, quem não compreende que a alma do poeta se anima de todos os
sentimentos que o contato da formosura inflama, o os diversos aspectos da
natureza idealizam, e que daqui sai aquele composto de lirismo suave e
afetuoso, que umas vezes toma as formas bucólicas, outras arde nos ímpetos
eróticos, outras enfim procura os tons meigos e penetrantes da elegia, composto
simpático e mavioso de que o desditoso Macias é já o precursor, ainda que mal
definido, e Bernardim Ribeiro, a nossa mais perfeita e gloriosa personificação?
Quem não compreende esta Índole e este parentesco?! É do poeta das Saudades que descende em linha reta o
autor da Helena. Até há
incontestáveis pontos da analogia entre muitos dos sentimentos, inspirações e
até entre a própria concepção poética dos dois trovadores. E trovador chamarei
a Bulhão Pato, porque ele, como João de Lemos, e como Tomás Ribeiro, e talvez
mais do que o primeiro, e tanto como o segundo, é um dos naturalíssimos filhos
desta família peninsular. Na soa estreia o mostrou logo, na Revista Universal. Foi justamente a
ingenuidade, o gracioso desalinho desta musa que, para se mostrar, nem
procurava as pompas das metáforas de Victor Sugo, nem os embevecimentos
contemplativos de Lamartine, que atraiu a atenção e simpatia de todos.
Quando a maior parte dos nossos jovens
corria azafamada a jurar bandeiras nas hostes gloriosas dos grandes mestres
franceses, Bulhão Pato parecia só querer evocar do primeiro e mais nativo
período da nossa poesia aquela singeleza, aquela candura de afetos, aquela
profunda e dolorida saudade que os cantores provençais nos trouxeram, e que os
poetas árabes nos deixaram. É este o caráter da poesia peninsular, e ninguém,
como Bulhão Pato, a não ser o autor de D. Jaime, a sente e revela melhor. Nos
mesmos versos em que ele parece afastar-se um pouco da natureza dos assuntos
mais prediletos ao alaúde antigo, nesses mesmos respira a simplicidade, os
afetos tranquilos, o tom da suave e íntima tristeza, que são o seu
característico. Na folha desbotada, diz o poeta :
É esta na existência
A tua estrela de amor!
De amor puro, intenso, ardente,
Mas que, oculto eternamente,
No meu peito ficará!
Que, no infortúnio nascido,
Só comigo tem vivido,
E comigo morrerá.
Não será, esta a ingenuidade, o afeto
tocante e singelo, a mesma ausência de artifícios de estilo dos trovadores?!
Até as repetições do mesmo pensamento no trocadilho final, umas das suas
fórmulas mais usadas e características.
E nesta estrofe, da poesia que o autor
intitula Voltas, não encontramos nós
a própria maneira bucólica de Bernardim Ribeiro, a ponto de nos parecer estar
lendo algumas das éclogas do autor da Menina
e Moça?
Agora entre as outras flores
Correm uns certos rumores...
Quais são, não sei; mas ouvi
Que as mais belas da campina
(Por quem és tão invejada),
Quando hoje chamam por ti,
Dizem — rosa namorada,
E não — rosa purpurina.
Nestes versos há a graça do idílio
junto ao perfume suave da écloga: é Rodrigues Lobo e Bernardes ao mesmo tempo.
Mas quem me vir tão escrupuloso a
inquirir assim a origem e progênie poética de Bulhão Pato, talvez presuma que
ele faz consistir seus títulos de fidalguia literária em ser perfilhado nesta
ou naquela escola, e que eu por lisonjear a vaidade do poeta, a mais feminil e
meticulosa de todas as vaidades, me dei a esta tarefa de investigação de
linhagens, desentranhando do cadoz dos pergaminhos da arqueologia literária os
seus atestados de filiação. Pois se cuidam isto, cuidam mal. Bulhão Pato nunca
pensou em escolas poéticas, e é justamente desta isenção de pensamentos que lhe
resulta a liberdade que desde os primeiros anos inculcará a individualidade do
seu engenho. Bulhão Pato canta como o rouxinol trina, como a rola geme, como a
andorinha pipila, sem outra ciência nem outra pretensão senão o desabafo dos
ímpetos que lhe agitam a alma, sem outro auxílio mais do que a nota espontânea
e natural. É um poeta intuitivo, afetuoso e expansivo, e tão fácil em derramar
lágrimas e mover-se a todos os transportes, tão debatido envergado pelos ventos
da paixão, tão inspirado só pelos abalos íntimos, tão estranho a escolas e
artifícios da arte, que lendo-o, e ainda mais, ouvindo-o recitar os seus
próprios versos com a veemência e admirável naturalidade com que ele os recita,
é impossível não considerar a poesia como independente de todo o fim
convencional, e não ver nela o simples dom do poeta chorar, compadecer ou
exaltar as suas angústias, envolvendo na melodia o seu sofrimento. E é por isto
que ele pertence, não intencionalmente, mas pela organização do seu ser
poético, à mesma família de cantores naturais e espontâneos que em combinações
rítmicas de extrema singeleza, acolhiam por únicas inspirações a natureza, a
glória e o amor.
---
J. M. DE ANDRADE FERREIRA
J. M. DE ANDRADE FERREIRA
O Futuro, 15
de fevereiro de 1863.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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