Flor e Bela
Quando Florbela Espanca veio
habitar o mundo que é nosso, sua mãe perguntou num misto de ternura e ansiedade:
“Menino?”
Uma voz lhe respondeu: “Não, menina.
Uma flor!” Sim, Florbela chegava com o destino das flores: possuiria beleza,
espargiria encanto, como também seria amarfanhada, torturada! Haveria de sofrer
desconhecidas tristezas, vazios infindos nos quais se perderia sua alma
insatisfeita.
Sendo mulher e artista, Florbela
torna-se princesa, infanta, monja, árvore, pedra, terra, túmulo, além de
identificar-se com a nuvem, o som, a luz, com os próprios deuses.
Quando a realidade a surpreende,
tortura-se com a tragicidade de desencontro:
E quanto mais
no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando
Acordo do meu sonho...
E quando mais no alto ando voando
Acordo do meu sonho...
E não sou nada!
Busca sempre o incognoscível,
algo eterno e nunca definido.
Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!
Muita vez a emoção suplanta-lhe a
linguagem. Florbela não esconde o desencanto:
São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!
Maravilha-se com o pressentir da
plenitude. Tão inacessível ela se lhe afigura...
Sonho que um verso meu tem claridade para encher todo o mudo!
Florbela Espanca procura na
poesia a forma primeira te libertação:
Eu fui na vida a irmã dum só irmão,
já não sou a irmã de ninguém mais!
Ora, sua mensagem é a do
desengano:
... pelo mundo, na vida, o que é que esperas?
Aonde estão os beijos que sonhaste,
Maria das Quimeras sem quimeras?”
Ora, a da transfiguração erótica:
Em ti sou Glória, Altura e poesia!
E vejo-me milagre cheio de graça
dentro de ti, em ti-igual a Deus!
Em se tratando de amor, as
exigências de Florbela perdiam-se no infinito.
José Régio, que tão bem lhe soube
captar a sensibilidade, manifesta-se a respeito:
"Nem o Deus se viesse a amar
Florbela, sendo um Deus, lograria satisfazer sua ansiedade! Por certo o acharia
demasiado humano: e até com ele se repetiria a tragédia do desencontro."
Ela própria declara em seus
poemas sofridos:
Minha alma é como a pedra funerária
Erguida na montanha solitária
Interrogando a vibração dos céus:
O amor dum homem? — Terra tão pisada,
Gota de chuva ao vento balouçada...
Um homem — quando eu sonho o amor dum deus.
Atingindo a transcendência das
coisas, participando do seu mistério, Florbela haveria de revelar a experiência
do sofrimento, do sofrimento por ela transformado em beleza — na mesma beleza que
lhe fora legada ao nascer. Florbela Espanca haveria de cumprir o seu destino de
flor.
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ÍRIS CARVALHO DE MENDONÇA
ÍRIS CARVALHO DE MENDONÇA
Revista "Leitura", abril de 1962.
Ilustração: Maria Liberata Campos (1949)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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