Com essa
luminosa bondade, em que a sua razão pratica metamorfoseou a sua ironia
fundamental, João do Rio ou Paulo Barreto, da Academia Brasileira e da Academia
de Lisboa, vem oferecer-me a prova definitiva de um novo livro — Crônicas e Frases de Godofredo de Alencar.
Evocadas à luz pelo gênio da espécie, ressaltam assim as flores da mesma
circulação universal de seiva, e aflorando à publicidade, neste ocaso de ano
dramatizado e escurecido pelo Destino, o livro encantador semelha um dom
necessário, como todos os dons reais da Inteligência voltada para o Belo, à
plenitude harmônica do nosso próprio ser. Vislumbra-se a alma do leitor, entre
as páginas de Crônicas e frases, tão
perturbada e tão possuída quanto Dânae sob o granizo de ouro, em cuja
cintilação ardia o beijo fecundante.
Honoré de
Balzac, dentre os colossos da Arte escrita o mais complexo e ao mesmo tempo o
mais infantil, remirava-se por vezes no espelho da sua obra, envaidecido como
se fora um escolar premiado, em face dos seus temas. Devaneador e complacente,
acariciava nesses momentos o ideal de um gigante rabelaisiano: improvisar na
cimalha do alteroso palácio, construído em longos anos com Estudos de costumes,
Estudos filosóficos e Estudos analíticos, o friso hilariante dos Cent contes drolatiques. "E sobre
os fundamentos desse palácio (confidenciava o semideus, em 1834, a Mme.
Hanska), eu, pueril e jovial, deixarei traçado o imenso arabesco de cem contos
facetos..."
Em meio de uma literatura já numerosa,
arquitetada já por trinta volumes de inquéritos e comentários sociais, novelas,
teatro, conferências, viagens e traduções, João do Rio prefere helenicamente
dar-lhe a nobreza escultural das Crônicas
e frases por emblema e resumo. Nenhum dos livros, soando como disco ou
luzindo como dardos no tumultuar da sociedade contemporânea, de que eles são
produtos imediatos, revela a preocupação de número e simetria, com que as
páginas de agora surpreendem o leitor. Quatro formosos tríticos — o dos
Símbolos, o da Natureza, o do Desejo, o do Amor — constituem e ordenam a
perspectiva helênica, entremeados de frases, remordentes umas, relumbrantes
outras, que diríamos fios de pérolas vinculando grupos amáveis. Da crença e do
sonho, da fábula grega e da miragem atlântica emergem quatro novas alegorias, uma
para cada inierniezzo. E a Harmonia
dispõe no seu quadro essas figuras, sob a influência benigna de Cronos, entre
duas fantasias que nos dizem alacremente, gêmeas de Ariel voando na mesma claridade,
sobre os mesmos rosais, a ilusão do mês de dezembro e a esperança da hora final
do ano — mutável a primeira e eterna a segunda como o tempo, sorvedouro em que
se levantam e se desfazem os sóis, à maneira de bolhas iriantes e vãs...
A
complexidade estética de João do Rio, natureza vertuniana exuberando em
transfigurações imprevisíveis, desde o apólogo ao drama, já o tornou
criticamente um problema insolúvel, cada vez mais desesperador para os amigos
de etiquetas literárias. Entre as Religiões
no Rio e a Bela Mme. Vargas,
entre a Alma encantadora das ruas e a
alma viciosa ou enferma que rasteja Dentro
da Noite, quanta diferença, quanta mudança, quantos aspectos! Como que esse
Vertuno das nossas letras, porém, se configura omnimodamente no caleidoscópio
das Crônicas e Frases, localizando o
enigma de todas as suas metamorfoses. Páginas revividas e repensadas, fora da
torturante vulgaridade jornalística, encerram aí o dedutivo e o analista, o
sarcasta e o poeta, o elegante e o evocador, mas deveras com outra amplitude,
outro colorido, outra visão dos homens e das coisas. Sentimos que o artista fez
a sua peregrinação aos lares santos da Arte, desde o mosteiro da Batalha às
ruínas clássicas de Atenas, e compreendeu melhor a Beleza. Sentimos que o
observador fez o seu curso no "vasto livro do mundo", elogiado pelo
sublime Aristóteles, e compreendeu melhor a Verdade. Cronologicamente, a
autobiografia intelectual e emocional de Goethe nomeia em Wilhelm Meister duas partes: anos de aprendizagem, anos de viagem.
Paulo Barreto aprendeu e viajou intensamente como Wilhelm Meister, chegando,
através da maturescência, à perfeição. E o seu último livro é bem a sinopse do
esteta, a suma do pensador.
Sendo um
emotivo e um imaginativo, com essa imaginação entre plástica e vaga, fatal aos
utopistas, ele adquiriu na vida vertiginosa e devoradora, que é o jornalismo, a
frase mais relampeante para os conceitos mais leves ou mais graves. Escravo da
atualidade, condenado a exprimir por instantâneos a sua percepção dos fatos e
das formas, individuou-se artisticamente, a despeito do mecanismo e da urgência
profissionais. Desenleado, assim, de ornamentos e floreios inúteis, evoluiu
para a celeridade e a precisão, mas evoluiu conforme o seu próprio ritmo,
quebrando moldes imprestáveis, fundindo com energia um estilo seu, direto,
penetrante, acerado, gravativo como o buril no metal. Reduzido a fórmulas para
o automatismo dos copistas, o seu estilo é desolador. Animado pela
sensibilidade, pela imaginação, pela graça e pela flama de um artista como João
do Rio, é o maior encanto do nosso momento literário.
O atualismo
profissional, tendência motriz desse escritor, vem acercar o Trítico dos Símbolos, inesperadamente,
do seu primeiro livro. Com As Religiões
no Rio, visionara Paulo Barreto a urbs
carioca do século XIX encadeada, apesar de todos os progressos e requintes, ao
fundo comum de superstições da cidade antiga, mesmo da barbaria feudal, nas
extravagâncias litúrgicas, no uso dos talismãs, nos êxtases e nos delírios, nas
práticas rituais agravadas pelo fetichismo africano. Quinze anos após, a
leitura da Bíblia e de Homero, dos poemas indianos e das crônicas árabes,
textos veneráveis que a psicologia, a história e a observação lhe confirmaram,
sugere ao escritor a identidade e a perpetuidade dos nossos estados d'alma
entre o Ignoto e o Destino. E eis que os símbolos, depois das cerimônias,
perpassam agora, modernizados, nas Crônicas
e Frases: o poder de ressurreição, pelo qual se afere em literatura o
sentimento do Passado, é aqui um poder de transposição, atualizando imagens ou ideias,
canários ou episódios em que se mesclam ao nosso materialismo e ao nosso ceticismo,
que eram já os da Grécia, a poesia helênica e a poesia cristã — Maria e Afrodisia,
os magos e Orfeus. Da antiguidade religiosa, interpretada psicologicamente, saem
Pilatos e Judas nossos coevos, porque em dois mil anos variam só as datas e os
acontecimentos, não as paixões e os instintos do homem, cuja estrutura é obra
de períodos incalculáveis. Quando lhe surgem no campo da visão Ídolos crepusculares,
em vez de figuras oblíquas ou hediondas, a ironia de João do Rio não os
amortalha em púrpura, como a de Renan: combina as suas origens e os nossos
prejuízos, os seus mitos e as nossas duvidas, a sua transcendência e a nossa
frivolidade. É uma das combinações mais perversas e raras, que nos pôde oferecer
no seu laboratório a química sutil dos ironistas.
Com o Trítico da Natureza floresce uma
qualidade inédita na obra de João do Rio, toda ela social, cruamente analítica,
preocupada até hoje com os fatos, as sensações, os desequilíbrios, as torpezas,
as variantes anormais da espécie classificada entre os lobos pelo amoralismo inglês.
Vede aqui o primeiro enlace do artista com a natureza. De onde em onde, unem-se
os dois no mesmo prodigioso amplexo, e é tudo, esquecida a gravitação humana
para o mal, paisagem lírica, sussurro de árvores beijadas pelo vento, oceano,
luar.. Depois de algumas paginas como No
Miradouro dos Céus, respira-se algo desse livro, esparsamente, na
translucidez e na doçura do ar, na curva telúrica das nossas montanhas e na
curva atmosférica dos nossos horizontes, no azul imensurável para a liberdade e
intangível para a adoração, no mistério umbroso dos vegetais, no mistério
ondulante das águas.
Em pleno Trítico do Desejo reaparece o Paulo
Barreto invejado e familiar dos paradoxos, das audácias verbais, dos juízos
insólitos, cuja singularidade atrai o esnobismo e o preciosismo cariocas, à maneira
do cravo verde de Oscar Wilde, impressionando estaticamente Londres. Passemos
com o mesmo sorriso do autor, enquanto os salões do Rio aplaudem Salomé e o seu
mundanismo, a volúpia que eu chamaria d'annunziana, se tropical não fosse, do Coração e a Nuvem. Contrastando formas
ligeiras de prazer sociável, irrompe com estridor, pesadamente, o símbolo do
prazer atordoante, obtuso, violento, o formidável símbolo carnavalesco do Todo
urbano — Zé Pereira — , que faz
ressoar na pele de um bombo a alma coletiva, inflada pela jactância, endurecida
pelo egoísmo, e é quase uma vingança de artista encolerizado. Não verte menos
fel contra o meio hostil, nas suas intenções, a grave placidez conceituosa das
Ideias de Esopo.
Mas o homem
chegará sem azedume ao Trítico do Amor.
Pelo caminho excelso dos bosques onde a lira órfica desperta os rochedos, enleva
as plantas, subjuga as feras, não tardará João do Rio a encontrar, sorrindo e
benfazendo, a clara piedade que vem estender sobre a inocência de Maria Rosa,
num bordel, as azas protetoras do anjo da guarda, e salva da miséria
inenarrável, com a mais linda crônica de que tenho notícias no Brasil, a
cegueira de Maria das Dores.
Como as ideias,
para a Inteligência criadora, são afinal os germens de que se originam as formas,
bem podemos aqui surpreender ao escritor a direção e a síntese do seu
pensamento. À semelhança da raiz que vai buscar o alimento mineral no húmus,
essa literatura imerge na vontade nietzschiana de Poder, e toda se enflora e se
esmalta, fixando luz, para exaltar no Sonho
da Atlântida a energia que arranca aos mares tenebrosos a ilha da
Felicidade, em César onipotente, herói ou deva, super-homem necessário à beleza
do mundo. Frederico Nietzsche, porém, viu apenas o desencadeamento das forças
humanas, ultrapassando o Bem e o Mal, traduzindo valores novos, e é preciso
ver- lhes, por outro lado, a correspondência, a limitação, o equilíbrio, sem
confundir super-humanidade e inumanidade. O culto de Zaratustra deve coexistir,
e em Paulo Barreto coexiste magnificamente, com o de Orfeus revelador. Ele
avista no progresso, desde o ciclo industrial da Fenícia ao da Germânia, o
carro de triunfo manchado pelo sangue dos escravos, mas ouve também nesse
fragor a divina lira que instrui, redime, aperfeiçoa os homens. Compreendendo o
heroísmo social da Bondade, paralelo ao da Força, escreve com a sabedoria digna
de um forte: "Cristo era Orfeu. Davi foi Orfeu. São Orfeus os apóstolos,
os que ensinam um bem novo, os poetas que mostram uma beleza nova, os homens
que trazem mais um clarão de poesia à continua revelação da sempre incompleta
verdade". Esse nietzschiano, aceitando embora a Verdade de poder e a Genealogia
da Moral, repudiou O Anticristo.
Morficamente,
não sei bem se as Crônicas de Godofredo
de Alencar ainda são exemplares do obsoleto gênero fradesco, modernizado e
aligeirado, há cinquenta anos ou mais, pelos folhetinistas parisienses. Creio
na incessante evolução dos gêneros literários, e outras variedades, outras
espécies repontam aos meus olhos, aguardando um Linneu classificador, no Jardin d'Epicure, de Anatole France, nos
Rameaux d'olivier, de Maurice Maeterlinck,
em algumas páginas ilustradas de João do Rio. Concentram essas miniaturas, de
quando em quando, intuições e lampejos tais, que a sua matéria prima, em vez do
mármore e do bronze clássicos, deveria lembrar analogicamente o radium. A trama diamantina, fúlgida,
inquebrantável — ce réseau de diamant,
— atribuída ao sistema das próprias ideias pelos hegelianos, só rebrilha nesses
cristais minúsculos da Arte.
Lapidado por
símios que o arremedam, João do Rio continua a ser triunfalmente o esplendor e
o orgulho da sua geração. Ante o seu novo livro, não haverá entre os homens de
bom senso e bom gosto senão um movimento de sinceridade intelectual: correr
para o vocabulário, como para um jardim, e atirar-lhe mancheias de rosas.
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CELSO
VIEIRA
"O Semeador" (1911)
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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