1/12/2020

Luiz Delfino - Poemas (Algas e Musgos)

O VERSO

Juntai bem, e num grupo, coisas belas,
Coisas viris, ideais, em sons diversos,
Com frases de ouro, azuis, rubro-amarelas;
Dai-lhes o ritmo e a luz dos universos:

E da arte grande, donas e donzelas
Riam-se, e os parvos, rústicos, perversos...
Só sobre o tempo ficarão aquelas
Que o poeta salve em sonorosos versos.

Quando ninguém tiver mais na memória
De um rei a fama, um campo de batalha,
Algum retalho esplêndido de história:

Quando um império, enfim, já nada valha,
Nem deixe data, ou busto, ou vil medalha,
Pode um verso guardar-te o nome e a glória.



NUM CARRO DE BOIS
Cum sol oceano subest.

Horácio

Desde a infância, imortais, vós sonhadores sois!...
Vós, ó poetas, só vós, ouvis a sinfonia
Que espalhavam na estrada, ao declinar do dia,
Um velho, um carro tosco e dois morosos bois!...

Que véu de opala e de ouro em pó fino os cobria...
Como, a se entrerroçar, inclinavam-se os dois!...
Pelas cercas à flor a luz inda sorria,
Dulias de aroma à luz cantava a flor depois!...

Quando, a aguilhada ao ombro, o carreiro indolente,
Deixava-me ir na caixa, agarrado aos fueiros,
De lá eu via a sol descer pisando, ao poente,

Espáduas colossais de deuses prisioneiros;
Enquanto ouvia já passar furtivamente
As Dríades no vale, os Silfos nos outeiros...



A PEQUENA DIVINA COMÉDIA

Belo dia de campo!... A noite inteira
Choveu: o fio d’água da torrente
Aumenta, engrossa; a ponte de madeira
Resiste mal à cheia recrescente.

Vem, rio abaixo, ilhota florescente,
E traz num galho um ninho, de maneira
Que parece afundar-se, tão à beira
Vai da vaga ululante, hirta, iminente.

O ninho tem três pássaros arfando,
De olhos grandes, cerrados, nus, sem penas...
Da borda em cima a triste mãe piando,

Voa mais alto, e volta, e louca apenas
Busca salvar o grupo miserando
Nas pobres asas, úmidas, pequenas...



LUTAS

Vens para me perder. Desces à arena
Disposta já para a batalha rude,
Caída ao colo em ondas a melena,
E branca, como Ofélia no ataúde.

A orelha nua, o nimbo da virtude
C’roa-te a fronte plácida e serena;
Simples no gesto, casta na atitude...
A sala compreendendo-te... pequena,

Muda, cheia de enleio, e quase escura,
Para melhor fazer, como em moldura,
Brilhar a neve do teu rosto... então

Chego-me a ti com medo, a voz tardia,
O passo incerto, a mão molhada e fria...
E acho mais fria a tua própria mão!...


PENDANT...

Daqui a uns anos mais, que mais esperas?
Há de incender-se o céu de estrelas de ouro,
Pelas curvas azuis as primaveras
Espalharão o seu cabelo louro...

As covas se abrirão como crateras,
Berços e ninhos se encherão de choro,
E hão de fugir nas asas das quimeras
Os sorrisos e as lágrimas em coro...

Os dias, esfolhando as ígneas rosas,
Bem como um bando de águias luminosas,
Varrerão a amplidão dos céus risonhos...

E Deus, no entanto, sonolento, calmo,
Verá surgir a treva, palmo e palmo,
Sobre a nossa existência e os nossos sonhos!...



ÓDIO ESTÉRIL

Gosta de ver a multidão rendida
Esta mulher, mais velha irmã da aurora,
Que, há muito tempo, do botão da vida
Toda nova, a áurea fronte pôs de fora.

Contudo a luz da tarde amortecida
Doira-lhe a tez da cor triunfal de outrora,
E inda conta, sorrindo, hora por hora
Muita cabeça aos seus dois pés caída;

Seu poder, cheio de desdéns, não cansa:
E o alfanje rubro, o seu rir voluptuoso,
Abate a quantos enche de esperança.

Mas eu... por lhe não dar estranho gozo,
Dou-lhe o meu ódio... e sei que esta vingança
É um lobo a uivar por seu luar formoso!...



DEUS OMNIPOTENS

Sabem? O amor é o deus onipotente,
Que fecunda o universo, e o traz suspenso:
A ouvir-se um largo beijo (ouvi-lo eu penso)
A luz multiplicar-se em luz se sente.

O seio, que arfa, e ascende, e desce, o ardente
Astro acusa em si mesmo: é fogo denso;
Eu, como o argueiro e o espaço, ao sol pertenço;
Há pedaços de sol em nós somente.

Têm-se contado já num grão de areia
Muitas mil existências: porventura
Há céus, que amor em seus abismos creia?...

Ver mais mundos aí, será loucura?
Do amor, que aos sóis dá vida, a vida é cheia:
Vermes, deuses, e sóis amor mistura.



O AMOR DO MENDIGO

Gosto de todas: amo-as loucamente...
Uma, em que palpo o escultural contorno,
Dispo, tiro-lhe até o último adorno:
E ouço a forma cantar num corpo quente.

Fremindo o coração, em fogo a mente,
Chispa, cintila, como aceso forno;
E o meu olhar, vulcão sangrento e morno,
Dardeja-lhe punhais, que ela não sente...

Mendigo, em descalcez, roto, esgrouviado,
Tendo-a nua ao meu seio, amor ensaio...
Abre-me o sol um leito aveludado:

Aureola-me a fronte, em deus, com um raio
De um sonho róseo ao fundo, ela a meu lado...
Sob a umbela do céu azul desmaio.



A DREAM

Da paz maciça dos anacoretas,
Embebidos nas límpidas esferas,
Eram também as minhas horas feitas,
Quando era eu teu e minha então tu eras.

De ti em torno, como as borboletas,
Na verde luz das tuas primaveras,
Queimando as asas de ouro e das quimeras,
Mal, um dia, as abri, estavam pretas.

No fogo dos teus olhos que devora
O branco aroma às brancas açucenas,
Cria haver toda em corpo e em alma a aurora,

Enchendo o céu de amplas manhãs serenas,
Um céu sem fim, um céu pelo céu fora...
E isso tudo... era um largo sonho apenas...



AS NAUS

Sobre as asas pairando, as naus entram, na lenta
Marcha de aves do mar, que chegam fatigadas:
E, enquanto aos pés em flor uma vaga rebenta,
Outras cantam solaus, rindo em torno grupadas.

Parecem catedrais marmóreas, torreadas,
Fugindo a um velho mundo, e fugindo à tormenta,
Que entre nichos de pedra, e agulhas lanceoladas,
Rolam pesadamente a mole corpulenta.

Dromedários do mar — intérmino Saara —
Ó naus, vós afrontais os ciclones, o grito
Negro, que sai do abismo, e uracões, cara a cara:

Sois mais que esses troféus lendários de granito,
No seu panejamento enorme de Carrara...
Vós, cuja base é o oceano e a cúpula o infinito.


OS GRANDES ANÔNIMOS

Esboço rude dos Rembrandts infantes,
Alma que pelos sóis com deuses priva,
Raça frustrada de titãs errantes,
Quem te foi mestre em obra assim tão viva?

Que o ar, a sombra, a luz, em tudo plantes,
Dando ao conjunto estranha perspectiva!...
Assim o poeta às odes deslumbrantes
Ritmo, e harmonia, e graça, e ardor cativa.

Morangos, figos, pêssegos, amoras,
Maçãs, laranjas, mangas, ananases,
O que é desenho e cor embalde ignoras;

Mestre sublime, com teus frutos fazes
Quadro em que rufa um triunfal de auroras,
E ecoara o hino de pincéis audazes...


MIRABEAU E O CANTO DO CISNE

Luz divina e pagã, vem tu em meu socorro,
Vinde, flores com ela, e com ela a alegria
De um pedaço de sol, de um pedaço de dia,
De um pedaço de céu, onde o azul golfe a jorro.

Perfumes siderais, chamais-me? Eu vou; eu corro;
Por tarde o rouxinol, pela alva a cotovia,
Quem os pudera ouvir cantar, como os ouvia:
Mulheres, como é bom viver convosco, e eu morro.

Orquestrizai, clarins: — tempo, ebria-te, ó louco;
Amor, canta um idílio, e entre eu nele inda um pouco;
Glória, açula-me a carne, e acende-me aos teus sóis!

Atleta, estás de pé: ousa alguém desarmar-te?
Se é preciso partir, vai; é cedo, mas parte:
Deuses, vós conheceis os deuses e os heróis...



DOIDO SUBLIME
(Ante o quadro de Driendl, representando Ferreira Vianna)

Da idade média esplêndida figura
À geração moderna transplantada;
Tem de um nimbo de santo a fronte orlada,
Azul, do muito céu que lhe mistura.

Foi o Pedro Eremita da Cruzada,
E, como Conde ou Rei, a sepultura
Buscou de Cristo, a arder na fé mais pura,
Reluzindo-lhe às mãos tremenda espada.

A doce cor do rosto macilento
Acusa o asceta ao fundo de um convento,
Crendo em visões, melhor sabendo vê-las.

Saiu do horror das lutas de um Sínodo,
Ébrio de luz, sublimemente doido,
Bom para andar num cárcere de estrelas.


DRAMA ESQUÍLICO

À tarde. — A casa à praia. — A brisa harmoniosa.
Movendo a juba de ouro, amarelo, de lei,
O mar era o leão de forma fabulosa;
Lentamente a estendia ao sol, o velho rei.

E as crianças riam, quando a mestra corajosa
Lhes disse, a rir também: — Aos vossos pais dizei
Que o colégio acabou, e que eu mesmo acabei...
E para sempre — adeus, anjinhos cor-de-rosa.

— Ó mãe, clama a família então, — findou a escola?...
Mãe... ó mãe, amanhã pediremos esmola!!...
Aquela voz, que ulula, e acusa, — a ré, a ouvi-la,

Ergueu-se, e o peito em chaga aos filhos mostra... e os sonda...
O céu se abria atrás da úlcera hedionda:
E a úlcera era uma estrela em radiação tranquila!...


SUB PARVA LUCERNA
(Pauperis somni aula)

Sobre a cômoda antiga o oratório domina:
Tem ele um Cristo velho e mau, à cruz pregado
Ao centro: a um lado um santo, a Virgem de outro lado...
Anda lá fora, ao luar, um pássaro que trina.

Pelas fisgas da porta entra o vento. — Franzina
Criatura, formosa e alegre, destrançado
O comprido cabelo ao colo, inda se inclina
Sobre o berço de um louro anjinho entreacordado.

Ela só alvoroça em festa o pobre asilo;
Um atleta, ao rir bom do seu olhar tranquilo,
Dorme assim como o mar, que ronca num escolho.

E esse impalpável corvo, a escuridão, de um canto,
Busca a alcova meter sob as asas, enquanto
A tênue luz de longe a fita, como um olho.


RENVOI
(A Valentim Magalhães)

Salta-te em casa a aurora peregrina,
Num berço de ouro, num alegre espanto:
Eis que a ouves cantar, e o próprio canto
Faz-te sofrer de embriaguez divina.

Teu astro tem frescura matutina
Em vítreo azul cheiroso e calmo, e entanto
Pensas que ele do meio ao ocaso inclina:
Ébrio de luz, é de prazer teu pranto.

Pois não veem?!... Porque chilram passarinhos
Entre os verdes palmares dos caminhos,
Porque te entrou mais um do aéreo bando,

Porque tens mais um coração a amar-te,
Ficas todo a chorar, e dás-nos parte
Que tens no lar um novo sol cantando!...



AOS CEM DIAS DE UM JORNAL

Quando, cheias as velas, a galera
Ia zarpar às Índias Orientais,
Na praia havia muita gente à espera,
Toldavam pavilhões os arsenais.

Via-se a mole triunfante e fera
Ante os mares dos Gamas e Cabrais,
Certo, que se não faz a volta a esfera,
Sem calma agora, agora temporais.

Tu, pequenina nau do ipê mais duro,
Há cem dias navegas a bom vento,
Alerta ao leme um sábio palinuro.

Cavando o oceano após o pensamento,
Vais buscando as ideias do futuro,
Forte na fé do teu descobrimento...



VOTOS
(Num aniversário)

Criança, a quem na alegre festa brindo,
Bebendo este áureo, espumaroso vinho,
Auroras brancas forrem-te o caminho,
Doure-te a vida a luz do sol mais lindo;

Beijem-te as faces primaveras rindo,
Deem-te flores o aroma, e não o espinho,
Vias-lácteas de opala, e prasio, e arminho
Deixem-te os ombros seus pisar subindo.

De carícias, amor, enche-lhe a cama,
Segui-o em bando, deusas da memória,
Do ideal do belo, natureza, o inflama;

Dá-lhe uma folha do teu livro, história,
Epopeias, prendei-lhe o nome e a fama,
Amplas portas do templo abre-lhe, ó glória...


CRISTO NUMA MEDALHA

Foi com amor igual ao do que inda arde e ateia
Ximenes, Becerril, Arfe, que estoutro inventa,
Com desejo infinito, e paciência lenta,
Esmaltar um metal, a que um Cristo encadeia;

De um fundo flavo e quente a cabeça rebenta,
Como uma flor que inclina o sopro de uma ideia,
E o Salvador do mundo, o filho da Judeia,
‘Stá na criança já, que o mundo à mão sustenta.

O seu olhar é doce, é calmo, é transparente;
Subir da alma e transpor céus em fora se sente;
Há sobre tudo um pó de amortecida luz.

Como de uma caçoula, edênico perfume
Sai do manto, que faz já dele estranho nume,
E um nimbo de ouro à fronte encima este Jesus.



UM CRISTO DE REGISTRO

Num quarto de papel comum, com quatro pregos
Sustentado à parede esboroada e escura,
Um Jesus Cristo à cruz, sangrento, se pendura:

A cabeça caída ao peito, os olhos cegos
Pelo frio da morte; o corpo na postura
De um cadáver que já força alguma segura...

A candeia apagou-se em um supremo arranco,
Vermiculando de fumo e centelhas tudo:
E o grande Morto jaz imóvel, grave, mudo,
Sem que a luz o acoberte em seu velario branco...

Dormem por perto. O ar, que se respira, é quente:
E um besouro, que vem, que vai, sem que alguém veja,
Como um órgão de sons enchendo alguma igreja,
Mete uma nota austera e rouca em todo o ambiente...


UM CRISTO NO TIROL

Quando a terra de Dante e de Petrarca, a amiga
Itália Heine pisou, o sol no azul radiava,
E aos sons d’água a correr um tirolês cantava
Ora um hino guerreiro, ora velha cantiga.

Sentada no poial, graciosa rapariga
À porta do palazzo, em ruínas já, fiava,
Como grega rainha, ou como grega escrava,
No belo ideal de Homero. — A Penélope antiga.

Um Cristo no jardim, obra de antepassados,
Fronteiro à mole imensa, e a vedá-la, existia:
Perto o pombal, mais longe os montes azulados.

Como as crianças outrora, as pombas recebia
Nos seus dois braços nus, à cruz inda pregados,
Bom sempre, inda que triste, o filho de Maria...



O CRISTO ROMANO

Eis o rei triunfador, que aclama a populaça,
Em cujas faces ri em cheio a mocidade;
O que une o céu à terra, a terra ao céu abraça,
E abre, pelo sepulcro, édens à humanidade.

Tem nos gritos da cor a voz da tempestade:
A chama, a luz, o ostro é multidão que passa
Pontuando o manto azul, roubando a austeridade
Do Jesus do evangelho amor, bondade e graça.

Um grande coração, que o fogo purpureja,
Brilha, em pleno, ante o peito; e um dedo longo e fino
Do próprio Cristo o aponta: a auréola dardeja

Raios em torno à fronte; arde o olhar sibilino...
Mas este Deus só quer salvar a sua igreja,
E não o mundo ao erro e à cruz do seu destino...


TELA ACHADA

Essa rosa que fulge ali no vale,
Entre outras, olha, vê, é a mais rosa:
Porém não sabe o que é, nem quanto vale,
E a apanha a mão primeira e descuidosa.

É como tu: quem há que a ti se iguale?
Sabes o brilho, e o aroma, e a primorosa
Cor que te veste a pele cetinosa?
Ninguém te disse o que és? não há quem fale?

Mas o tempo reduz tudo à ruína:
Não te sentes cair, mulher divina?
Mesmo assim, quem te beija, amor, te goza.

És como tela de pintor de fama,
Perdida e achada soterrada em lama,
Rota no centro, rica, e inda formosa...


PARTIDA DE UMA ANDORINHA

Podeis ir, sóis de amor, não mais vos fecho
Às mãos; — parti, rolai noutras esferas:
Céu azul de minha alma, isto é deveras?
Este era pois o lúgubre desfecho?

Que veiga toda a abrir-se em flores deixo!
Vale cheio de sombra e de quimeras,
Meu confidente e o dela há pouco inda eras!...
Deuses, não, não de vós, de mim me queixo.

Nela um cálido raio de ouro eu tinha
Daquele olhar divinamente terno,
Idílio bom, que embala a quem caminha.

E eu, que julgava este meu sonho eterno,
Busco inda o voo à última andorinha.
Mas donde vem assim tão cedo o inverno?...



ALTAR SEM DEUS

Inda não voltas? — Como a vida salta
Destes quadros de esplêndidas molduras:
Mulheres nuas, raras formosuras...
Só a tua nudez entre elas falta...

Pede-te o espelho de armação tão alta,
Onde revias tuas formas puras;
Pedem-te as cegas, lúbricas alvuras
Do linho, que a paixão no leito exalta.

Pedem-te os vasos cheios de perfume,
Os dunquerques, as mesas, as cortinas,
Tudo quanto a mulher de bom resume,

Escolhido por suas mãos divinas...
E sai do teu altar vazio, ó nume,
A tristeza indizível das ruínas...



IGNOTUS!

Há Deus, se alguém de um Deus a prova exata der-me.
Não vale Paganini um pássaro no ninho;
De Theard ou de Wurtz o opulento cadinho
Não dará nunca ao mundo o óvulo de um verme.

Que prova? — Isso mais nada. E eterna, muda, inerme,
A esfinge!... A esfinge sempre em meio do caminho:
Um céu findando noutro, os céus em torvelinho,
E num giro fatal o esterquilínio e o germe!...

Como uma sombra informe atravessando um muro,
Pelo fundo do abismo azul um vulto escuro
Passa às vezes — Quem foi? O esquema de um de nós

Loucamente buscando a mão que enflora o monte,
Ou quem esculpe a noite, e lhe circula à fronte
A tiara de ouro, a tiara enlhamada de sóis!...



SOBRE O PÉGASO

Upa, ginete, aos céus, em marcha. — Espora às ancas,
Rédeas presas às mãos, a velha estrada mudo...
Rasguemos regiões mais límpidas, mais francas,
Quero ver se esta eterna dor da vida iludo.

Vamos. Sinto-me alado, e firme, e ereto, e mudo;
Amor, nem mesmo tu destes azuis me arrancas:
Voo como envolvido em duas asas brancas,
Que são a minha guarda e a minha força em tudo.

Aqui de longe, aqui, por uma esfera vasta,
Tendo sob os meus pés o globo, que se arrasta,
O dardo ao flanco, ao passo o tédio do cansaço;

Vendo o orgulho com que vão nele os homens todos,
Num alarido, como um turbilhão de doidos.
Upa! grito ao ginete, em marcha, espaço... espaço!...


CAMONIANA
(Glorificação brasileira a Luís de Camões
no terceiro centenário da morte do poeta
10 de Junho de 1880)

I — A LUÍS DE CAMÕES: LEÃO ALADO

Como um leão, que volta, e vem do firmamento,
Tinta a boca de luz dos astros imortais,
E que na fulva garra — ousado e famulento, —
Arranca ao céu azul pedaços colossais...

E sacudindo a crina e as asas de ouro ao vento,
Como às girafas dos seus pátrios areais,
Das estrelas no colo — indômito e violento, —
Mete o dente... e revoa em procura de mais...

Seu gênio assim — Leão alado da harmonia, —
Roubava as ideais estrelas da poesia,
Pendurando-as da pátria aos múltiplos florões...

Quem não ouve o fremir dos mundos fulgurosos,
Nos ombros carregando os versos sonorosos
Do canto secular que nos legou Camões?!


II — A LUÍS DE CAMÕES

Dai-me o vosso rumor, indiânicos mares,
Vosso aroma e verdor, matas orientais,
Vossa voz, ó leões, vossa sombra, ó palmares,
Ó céus, o vosso azul, e os sóis, com que brilhais;

Fragrâncias de Ceilão, que volitais nos ares,
Macau em cuja gruta inda ecoam seus ais,
Eu desejo somente encher-lhe os seus altares
Da luz, da voz, do amor com que inda o festejais.

Ó rei, maior que os reis da nação que cantaste,
E que de eterna luz a cova alumiaste
Da terra onde estendeste as estreladas mãos...

Ergueste o sólio augusto em penhas de Calvário,
Ó poeta imortal, três vezes centenário,
Mendigo que tiveste os sóis por teus irmãos.


III — A LUÍS DE CAMÕES

Enquanto ao fogo intenso, em que o peito te ardia,
Do teu grande padrão fundias o metal,
Enquanto o eterno molde a tua fantasia
Riscava do poema enorme e colossal...

Enquanto o monumento acabado saía
Selado por teu gênio olímpico e imortal,
Enquanto a eternidade a tua obra envolvia,
E punhas ante Homero o seu maior rival...

Enquanto se ebriava a terra a ler teus versos,
E vinham do horizonte ouvir povos diversos
A epopeia do mar e da navegação...

Ó Luís de Camões, ó grande sombra morta,
Nas ruas de Lisboa um jau de porta em porta
Para seu amo esmola um pedaço de pão.


IV — A LUÍS DE CAMÕES

Devias ter colhido estrelas luminosas
Para fazer o fogo enorme e criador,
E o bronze preparar das formas grandiosas
Da estátua do feroz e horrendo Adamastor.

Devias ter bebido às curvas graciosas
Do céu o leite doce e cheio de vigor,
Que sai dos seios nus das cintilantes rosas,
Para pintar Inês — a pérola do amor.

Devias ter sorvido as lágrimas da aurora,
Para a Vênus gentil pintar, quando ela chora
Perturbando no Olimpo os deuses imortais.

Mas para encher de sóis teu canto imorredouro
Devias ter roubado ao Deus a pena de ouro,
Com que ele pinta o azul a traços colossais.


V — A LUÍS DE CAMÕES: A VOZ DA SOMBRA

E para responder, a sombra despertando,
Quando lhe foram lá por ele perguntar,
Dos braços nus terror e anos gotejando,
A fronte levantou da pedra tumular.

Tinha terrenas cãs, o aspecto venerando,
Maciça noite de três séculos no olhar,
Estrelas nos rasgões do fato miserando,
E o silêncio que canta em noites de luar.

E disse: — Quando o Eterno ergueu o firmamento,
Nos sóis e turbilhões fixou seu pensamento,
E escondeu-se detrás de sua obra imortal.

Por que buscais Camões num túmulo sombrio?
Jesus também deixou seu túmulo vazio,
E o túmulo de um Deus é a alma universal.



NUVENS E RAIOS

VERITAS VERITATUM

É mais louco talvez quem mais estuda!
Dizer que a luz se extingue e tudo alaga,
Que aquilo que morreu, não morre, muda...
Morre e não morre, apaga e não apaga!...

A vaga treme, expira, e é sempre vaga!
A morte vive em cada coisa muda;
A dor que morre, qual! não morre, e ajuda
A dor que canta no seu ninho — a chaga.

Alma feita de lutas e procelas,
Na espumarada vã das coisas mansas
Rolam mortas milhões de coisas belas,

Boiam milhões de mortas esperanças;
E, tu, minh’alma, morta em cima delas,
Morta... vives ainda, e não descansas!...



WISH

És a corrente, eu sou a barca apenas:
Tu vais, eu vou singrando ao sol, que a doura;
E quando venha a noite sonhadora
Encher-te o seio azul de cantilenas,

Enquanto o céu a fronte de açucenas
Cinge, como se negra noiva fora,
E banha as vagas límpidas, serenas
De quanta branca pérola entesoura,

És a corrente, eu vou: vais ao infinito?
Irei também: caminho, e não reflito:
Não há contigo para mim mau porto.

Mas... se um dia lançar-me uma onda à sirte,
Que inda assim cante o escolho, e o escolho a rir-te,
Mostre na água dançando alegre e morto...



TERROR DO PARAÍSO

Eu que tenho vulcões jorrando fogo e lava,
Eu, que os ouço bramir, e lacerar-te em chama:
E em que manhã brutal de um céu feroz derrama
Punhais de ouro e de luz, que nos meus seios crava:

Eu, que ouço o temporal, que hórridas pugnas trava,
Que ruge, ulula, raiva, estoira, morde, brama,
Sendo minh’alma o palco em que se move o drama
Colossal, como em bronze Ésquilo os moldurava...

Que ouço em meu sangue ruir os sopros da procela,
Só em vê-la, a sonhar, somente em pensar nela,
Quando a vejo em nudez iluminada, a sós.

Quando o meu coração ao seu conchego, absorto
Empalideço, tremo, e caio, como um morto
Hirto, frio, sem ar, sem luz, sem cor, sem voz...

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