1/12/2020

Portira (Poema), de Machado de Assis


POTIRA

Os Tamoios, entre outras presas que fizeram,
levaram esta índia, a qual pretendeu
o capitão da empresa violar; resistiu valorosamente
dizendo em língua brasílica: “Eu sou cristã e casada;
não hei de fazer traição a Deus e a meu marido;
bem podes matar-me e fazer de mim o que quiseres.”
Deu-se por afrontado o bárbaro,
e em vingança lhe acabou a vida com grande crueldade.

VASC., CR. DA COMPANHIA DE JESUS, LIV. 3º

I
Moça cristã das solidões antigas,
Em que áurea folha reviveu teu nome?
Nem o eco das matas seculares,
Nem a voz das sonoras cachoeiras,
O transmitiu aos séculos futuros.
Assim da tarde estiva às auras frouxas
Tênue fumo do colmo no ar se perde;
Nem de outra sorte em moribundos lábios
A humana voz expira. O horror e o sangue
Da miseranda cena em que, de envolta
Co’os longos, magoadíssimos suspiros,
Cristã Lucrécia, abriu tua alma o voo
Para subir às regiões celestes,
Mal deixada memória aos homens lembra.
Isso apenas; não mais; teu nome obscuro,
Nem tua campa o brasileiro os sabe.

II
Já da férvida luta os ais e os gritos
Extintos eram. Nos baixéis ligeiros
Os tamoios incólumes embarcam;
Ferem co’os remos as serenas ondas
Até surgirem na remota aldeia.
Atrás ficava, lutuosa e triste,
A nascente cidade brasileira,
Do inopinado assalto espavorida,
Ao céu mandando em coro inúteis vozes.
Vinha já perto rareando a noite,
Alva aurora, que à vida acorda as selvas,
Quando a aldeia surgiu aos olhos torvos
Da expedição noturna. À praia saltam
Os vencedores em tropel; transportam
Às cabanas despojos e vencidos,
E, da vigília fatigados, buscam
Na curva leve rede amigo sono,
Exceto o chefe. Oh! esse não dormira
Longas noites, se a troco da vitória
Precisas fossem. Traz consigo o prêmio,
O desejado prêmio. Desmaiada
Conduz nos braços trêmulos a moça
Que renegou Tupã, e as rudes crenças
Lavou nas águas do batismo santo.
Na rede ornada de amarelas penas
Brandamente a depõe. Leve tecido
Da cativa gentil as formas cobre;
Veste-as de mais a sombra do crepúsculo,
Sombra que a tíbia luz da alva nascente
De todo não rompeu. Inquieto sangue
Nas veias ferve do índio. Os olhos luzem
De concentrada raiva triunfante.
Amor talvez lhes lança um leve toque
De ternura, ou já sôfrego desejo;
Amor, como ele, aspérrimo e selvagem,
Que outro não sente o herói.

III
Herói lhe chamam
Quantos o hão visto no fervor da guerra
Medo e morte espalhar entre os contrários
E avantajar-se nos certeiros golpes
Aos mais fortes da tribo. O arco e a flecha
Desde a infância os meneia ousado e afoito;
Cedo aprendeu nas solitárias brenhas
A pleitear às feras o caminho.
A força opõe à força, a astúcia à astúcia,
Qual se da onça e da serpente houvera
Colhido as armas. Traz ao colo os dentes
Dos contrários vencidos. Nem dos anos
O número supera o das vitórias;
Tem no espaçoso rosto a flor da vida,
A juventude, e goza entre os mais belos
De real primazia. A cinta e a fronte
Azuis, vermelhas plumas alardeiam,
Ingênuas galas do gentio inculto.

IV
Da cativa gentil cerrados olhos
Não se entreabrem à luz. Morta parece.
Uma só contração lhe não perturba
A paz serena do mimoso rosto.
Junto dela, cruzados sobre o peito
Os braços, Anajê contempla e espera;
Sôfrego espera, enquanto ideias negras
Estão a revoar-lhe em torno e a encher-lhe
A mente de projetos tenebrosos.
Tal no cimo do velho Corcovado
Próxima tempestade engloba as nuvens.
Súbito ao seio túrgido e macio
Ansiosas mãos estende; inda palpita
O coração, com desusada força,
Como se a vida toda ali buscasse
Refúgio certo e último. Impetuoso
O vestido cristão lhe despedaça,
E à luz já viva da manhã recente
Contempla as nuas formas. Era acaso
A síncope chegada ao termo próprio,
Ou, no pejo ofendida, às mãos estranhas
A desmaiada moça despertara.
Potira acorda, os olhos lança em torno,
Fita, vê, compreende, e inquieta busca
Fugir do vencedor às mãos e ao crime...
Mísera! opõe-se-lhe o irritado gesto
Do aspérrimo guerreiro; um ai lhe sobe
Angustioso e triste aos lábios trêmulos,
Sobe, murmura e sufocado expira.
Na rede envolve o corpo, e, desviando
Do terrível tamoio os lindos olhos,
Entrecortada prece aos céus envia,
E as faces banha de serenas lágrimas.

V
Longo tempo correra. Amplo silêncio
Reinou entre ambos. Do tamoio a fronte
Pouco a pouco despira o torvo aspecto.
Ao trabalhado espírito, revolto
De mil sinistros pensamentos, volve
Benigna calma. Tal de um rio engrossa
O volume extensíssimo das águas
Que vão enchendo de pavor os ecos,
Vencendo no arruído o vento e o raio,
E pouco a pouco atenuando as vozes,
Adelgaçando as ondas, tornam mansas
Ao primitivo leito. Ei-lo se inclina,
Para tomar nos braços a formosa
Por cujo amor incendiara a aldeia
Daquelas gentes pálidas de Europa.
Sente-lhe a moça as mãos, e erguendo o rosto,
O rosto inda de lágrimas molhado,
Do coração estas palavras solta:

“— Lá entre os meus, suave e amiga morte,
Ah! por que me não deste? Houvera ao menos
Quem escutasse de meus lábios frios
A prece derradeira; e a santa bênção
Levaria minha alma aos pés do Eterno...
Não, não te peço a vida; é tua, extingue-a;
Um só alívio imploro. Não receies
Embeber no meu sangue a ervada seta;
Mata-me, sim; mas leva-me onde eu possa
Ter em sagrado leito o último sono!”

Disse, e fitando no índio ávidos olhos,
Esperou. Anajê sacode a fronte,
Como se lhe pesara ideia triste;
Crava os olhos no chão; lentas lhe saem
Estas vozes do peito:
“Oh! nunca os padres
Pisado houvessem estas plagas virgens!
Nunca de um deus estranho as leis ignotas
Viessem perturbar as tribos, como
Perturba o vento as águas! Rosto a rosto
Os guerreiros pelejam; matam, morrem.
Ante o fulgor das armas inimigas
Não descora o tamoio. Assaz lhe pulsa
Valor nativo e raro em peito livre.
Armas, deu-lhas Tupã novas e eternas
Nestas matas vastíssimas. De sangue
Estranhos rios hão de, ao mar correndo,
Tristes novas levar à pátria deles,
Primeiro que o tamoio a frente incline
Aos inimigos peitos. Outra força,
Outra e maior nos move a guerra crua;
São eles, são os padres. Esses mostram
Cheia de riso a boca e o mel nas vozes,
Sereno o rosto e as brancas mãos inermes;
Ordens não trazem de cacique alheio,
Tudo nos levam, tudo. Uma por uma
As filhas de Tupã correm trás eles,
Com elas os guerreiros, e com todos
A nossa antiga fé. Vem perto o dia
Em que, na imensidão destes desertos,
Há de ao frio luar das longas noites
O pajé suspirar sozinho e triste
Sem povo nem Tupã!”

VI
Silenciosas
Lágrimas lhe espremeu dos olhos negros
Esta lembrança de futuros males.

“Escuta!” diz Potira. O índio estende
Imperioso as mãos e assim prossegue:

Também com eles foste, e foi contigo
Da minha vida a flor! Teu pai mandara,
E com ele mandou Tupã, que eu fosse
Teu esposo; vedou-mo a voz dos padres,
Que me perdeu, levando-te consigo.
Não morri; vivi só para esta afronta;
Vivi para esta insólita tristeza
De maldizer teu nome e as graças tuas,
Chorar-te a vida e desejar-te a morte.
Ai! nos rudes combates em que a tribo
Rega de sangue o chão da virgem terra
Ou tinge a flor do mar, nunca a meu lado
Teu nobre vulto esteve. A aldeia toda,
Mais que o teu coração, ficou deserta.
Duas vezes, mimosas rebentaram
Do lacrimoso cajueiro as flores,
Desde o dia funesto em que deixaste
A cabana paterna. O extremo lume
Expirou de teu pai nos olhos tristes;
Piedosa chama consumiu seus restos,
E a aldeia toda o lastimou com prantos.
Não de todo se foi da nossa vida;
Parte ficou para sentir teus males.
Antes que o último sol à melindrosa
Flor do maracujá cerrasse as folhas
Um sonho tive. Merencório vulto,
Triste como uma fronte de vencido,
Cor da lua os cabelos venerandos,
O vulto de teu pai: “Guerreiro (disse),
Corre à vizinha habitação dos brancos,
Vai, arranca Potira à lei funesta
Dos pálidos pajés; Tupã to ordena;
Nos braços traze a fugitiva corça;
Vincula o teu destino ao dela; é tua.”

“Impossível! Que vale um vago sonho?
Sou esposa e cristã. Ímpio, respeita
O amor que Deus protege e santifica;
Mata-me; a minha vida te pertence;
Ou, se te pesa derramar o sangue
Daquela a quem amaste, e por quem foste
Lançar entre os cristãos a dor e o susto,
Faze-me escrava; servirei contente
Enquanto a vida alumiar meus olhos.
Toma, entrego-te o sangue e a liberdade;
Ordena ou fere. Tua esposa, nunca!”
Calou-se, e reclinada sobre a rede,
Potira murmurava ignota prece,
Olhos fitos no próximo arvoredo,
Olhos não ermos de profunda mágoa.

VII
Ó Cristo! em que alma penetrou teu nome
Que lhe não desse o bálsamo da vida?
Pelo vento dos séculos levado,
Vidente e cego, o máximo dos seres,
Que fora do homem nesta escassa terra,
Se ao mistério da vida lhe não desses,
Ó Cristo! a eterna chave da esperança?
Filosofia estoica, árdua virtude,
Criação de homem, tudo passa e expira.
Tu só, filha de Deus, palavra amiga,
Tu, suavíssima voz da eternidade,
Tu perduras, tu vales, tu confortas.
Neste sonho iriado de outros sonhos,
Vários como as feições da natureza,
Nesta confusa agitação da vida,
Que alma transpõe a derradeira idade
Farta de algumas passageiras glórias?
Torvo é o ar do sepulcro; ali não viçam
Essas cansadas rosas da existência
Que às vezes tantas lágrimas nos custam,
E tantas mais antes do ocaso expiram.
Flor do Evangelho, núncia de alvos dias,
Esperança cristã, não te há murchado
O vento árido e seco; és tu viçosa
Quando as da terra lânguidas inclinam
O seio, e a vida lentamente exalam.
Esta a consolação última e doce
Da esposa indiana foi. Cativa ou morta,
Antevia a celeste recompensa
Que aos humildes reserva a mão do Eterno.
Naquele rude coração das brenhas
A semente evangélica brotara.

VIII
Das duas condições deu-lhe o guerreiro
A pior, — fê-la escrava; e ei-la aparece
Da sua aldeia aos olhos espantados
Qual fora em dias de melhor ventura.
Despida vem das roupas que lhe há posto
Sobre as polidas formas uso estranho,
Não sabido jamais daqueles povos
Que a natureza ingênua doutrinara.
Vence na gentileza às mais da tribo,
E tem de sobra um sentimento novo,
Pudor de esposa e de cristã, — realce
Que ao índio acende a natural volúpia.
Simulada alegria lhe descerra
Os lábios; riso à flor, escasso e dúbio,
Que mal lhe encobre as vergonhosas mágoas.
À voz do seu senhor acorre humilde;
Não a assusta o labor; nem dos perigos
Conhece os medos. Nas ruidosas festas,
Quando ferve o cauim, e o ar atroa
Pocema de alegria ou de combate,
Como que se lhe fecha a flor do rosto.
Já lhe descai então no seio opresso
A graciosa fronte; os olhos fecha,
E ao céu voltando o pensamento puro,
Menos por si, que pelos outros pede.
Nem só o ardor da fé lhe abrasa o peito;
Lacera-lho também agra saudade;
Chora a separação do amado esposo,
Que, ou cedo a esquece, ou solitário geme.
Se, alguma vez, fugindo a estranhos olhos,
Não já cruéis, mas cobiçosos dela,
Entra desatinada o bosque antigo,
E a dor expande em lôbregos soluços,
Coo doce nome acorda ao longe os ecos,
Farta de amor e pródiga de vida,
Ouve-as a selva, e não lhe entende as mágoas.
Outras vezes pisando a ruiva areia
Das praias, ou galgando a penedia
Cujos pés orla o mar de nívea espuma,
As ondas murmurantes interroga;
Conta ao vento da noite as dores suas;
Mas... fiéis ao destino e à lei que as rege,
As preguiçosas ondas vão caminho,
Crespas do vento que sussurra e passa.

IX
Quando, ao sol da manhã, partem às vezes,
Com seus arcos, os destros caçadores,
E alguns da rija estaca desatando
Os nós de embira às rápidas igaras,
À pesca vão pelas ribeiras próximas,
Das esposas, das mães que os lares velam,
Grata alegria os corações inunda,
Menos o dela, que suspira e geme,
E não aguarda doce esposo ou filho.
Triste os vê na partida e no regresso,
E nessa melancólica postura,
Semelha a acácia langue e esmorecida,
Que já de orvalho ou sol não pede os beijos.
As outras... — Raro em lábios de felizes
Alheias mágoas travam. Não se pejam
De seus olhos azuis e alegres penas
Os saís sobre as árvores pousados,
Se ao perto voa na campina verde
De anuns lutuoso bando; nem os trilos
Das andorinhas interrompe a nota
Que a juriti suspira. — As outras folgam
Pelo arraial dispersas; vão-se à terra
Arrancar as raízes nutritivas,
E fazem os preparos do banquete
A que hão de vir mais tarde os destemidos
Senhores do arco, alegres vencedores
De quanto vive na água e na floresta.
Da cativa nenhuma inquire as mágoas.
Contudo, algumas vezes, curiosas
Virgens lhe dizem, apiedando o gesto:

— “Pois que à taba voltaste, em que teus olhos
Primeiro viram luz, que mágoa funda
Lhes destila tão longo e amargo pranto,
Amargo mais do que esse que não busca
Recatado silêncio?” — E às doces vozes
A cristã desterrada assim responde:

— “Potira é como aquela flor que chora
Lágrimas de alvo leite, se do galho
Mão cruel a cortou. Oh! não permita
O céu que ímpia fortuna vos separe
Daquele que escolherdes. dor é essa
Maior que um pobre coração de esposa.
Esperanças... Deixei-as nessas águas
Que me trouxeram, cúmplices do crime,
À taba de Tupã, não alumiada
Da palavra celeste. Algumas vezes,
Raras, alveja em minha noite escura
Não sei que tíbia aurora, e penso: Acaso
O sol que vem me guarda um raio amigo,
Que há de acender nestes cansados olhos
Ventura que já foi. As asas colhe
Guanumbi, e o aguçado bico embebe
No tronco, onde repousa adormecido
Até que volte uma estação de flores.
Ventura imita o guanumbi dos campos:
Acordará coas flores de outros dias.
Doce ilusão que rápido se escoa,
Como o pingo de orvalho mal fechado
Numa folha que o vento agita e entorna”.
E as virgens dizem, apiedando o gesto:
— “Potira é como aquela flor que chora
Lágrimas de alvo leite, se do galho
Mão cruel a cortou!”

X
Era chegado
O fatal prazo, o desenlace triste.
Tudo morre, — a tristeza como o gozo;
Rosas de amor ou lírios de saudade,
Tarde ou cedo os esfolha a mão do tempo.
Costeando as longas praias, ou transpondo
Extensos vales e montanhas, correm
Mensageiros que às tabas mais vizinhas
Vão convidar à festa as gentes todas.
Era a festa da morte. Índio guerreiro,
Três luas há cativo, o instante aguarda
Em que às mãos de inimigos vencedores,
Caia expirante, e os vínculos rompendo
Da vida, a alma remonte além dos Andes.
Corre de boca em boca e de eco em eco
A alegre nova. Vem descendo os montes,
Ou abicando às povoadas praias
Gente da raça ilustre. A onda imensa
Pelo arraial se estende pressurosa.
De quantas cores natureza fértil
Tinge as próprias feições, copiam eles
Engraçadas, vistosas louçanias.
Vários na idade são, vários no aspecto,
Todos iguais e irmãos no herdado brio.
Dado o amplexo de amigo, acompanhado
De suspiros e pêsames sinceros
Pelas fadigas da viagem longa,
Rompem ruidosas danças. Ao tamoio
Deu o Ibaque os segredos da poesia;
Cantos festivos, moduladas vozes,
Enchem os ares, celebrando a festa
Do sacrifício próximo. Ah! não cubra
Véu de nojo ou tristeza o rosto aos filhos
Destes polidos tempos! Rudes eram
Aqueles homens de ásperos costumes,
Que ante o sangue de irmãos folgavam livres,
E nós, soberbos filhos de outra idade,
Que a voz falamos da razão severa
E na luz nos banhamos do Calvário,
Que somos nós mais que eles? Raça triste
De Cains, raça eterna...

XI
Os cantos cessam.
Calou-se o maracá. As roucas vozes
Dos férvidos guerreiros já reclamam
O brutal sacrifício. Às mãos das servas
A taça do cauim passara exausta.
Inquieto aguarda o prisioneiro a morte.
Da nação guaianás nos rudes campos
Nasceu. Nos campos da saudosa pátria
Industriosa mão não sabe ainda
Alevantar as tabas. Cova funda
Da terra, mãe comum, no seio aberta,
Os acolhe e protege. O chão lhes forra
A pele do tapir; contínua chama
Lhes supre a luz do sol. É uso antigo
Do guaianás que chega a extrema idade,
Ou de mortal doença acometido,
Não expirar aos olhos de outros homens;
Vivo o guardam no bojo da igaçaba,
E à fria terra o dão, como se fora
Pasto melhor (melhor!) aos frios vermes.
Do almo, doce licor que extrai das flores
Mãe do mel, iramaia, larga cópia
Pelos robustos membros lhe coaram
Seis anciãs da tribo. Rubras penas
Na vasta fronte e nos nervosos braços
Garridamente o enfeitam. Longa e forte
A muçurana os rins lhe cinge e aperta.
Entra na praça o fúnebre cortejo.
Olhar tranquilo, inda que fero, espalha
O indomado cativo. Em pé, defronte,
Grave, silencioso, ao sol mostrando
De feias cores e vistosas plumas
Singular harmonia, aguarda a vítima
O executor. Nas mãos lhe pende a enorme
Tagapema enfeitada, arma certeira,
Arma triunfal de morte e de extermínio.
Medem-se rosto a rosto os dois contrários
C'um sorriso feroz. Confusas vozes
Enchem súbito o espaço. Não lhe é dado
Ao vencido guerreiro haver a morte
Silenciosa e triste em que se passa
Da curva rede à fria sepultura.
Meigas aves que vão de um clima a outro
Abrem placidamente as asas leves,
Não tu, guerreiro, que encaraste a morte,
Tu combate! Vencido e vencedores
Derradeiros escárnios se arremessam;
Gritos, injúrias, convulsões de raiva,
Vivo clamor acorda os longos ecos
Das penedias próximas. A clava
Do executor girou no ar três vezes
E de leve caiu na grossa espádua
Do arquejante cativo. Já na boca
Que o desprezo e o furor num riso entreabrem,
Orla de espuma alveja. Avança, corre,
Estaca... Não lhe dá mais amplo espaço
A muçurana, cujas pontas tiram
Dois mancebos robustos. Nas cavernas
Do longo peito lhe murmura o ódio,
Surdo, como o rumor da terra inquieta,
Pejada de vulcões. Os lábios morde,
E, como derradeira injúria, à face
Do executor lhe cospe espuma e sangue.
Não vibra o arco mais veloz o tiro,
Nem mais segura no aterrado cervo
Feroz sucuriúba os nós enrosca,
Do que a pesada, enorme tagapema
A cabeça de um golpe lhe esmigalha.
Cai fulminada a vítima na terra,
E alegre o povo longamente aplaude.

XII
Na voz universal perdeu-se um grito
De piedade e terror: tão fundo entrara
Naquela alma roubada à noite escura
Raio de sol cristão! Potira foge,
Pelos bosques atônita se entranha
E para à margem de um pequeno rio;
Pousa na relva os trêmulos joelhos
E nas mimosas mãos esconde o rosto.
Não de lágrimas era aquele sítio
Ou só de doces lágrimas choradas
De olhos que amor venceu: — macia relva,
Leito de sesta a amores fugitivos.
Da verde, rara abóbada de folhas
Tépida e doce a luz coava a frouxo
Do sol, que, além das árvores, tranquilo,
Metade da jornada ia transpondo.
Longe era ainda a hora melancólica
Em que a jurema cerra a miúda folha,
E o lume azul o pirilampo acende.
De pé, a um velho tronco descoroado
Da copada ramagem, resto apenas,
Vestígio do tufão, a indiana moça
Languidamente encosta o esbelto corpo.
Neste ameno recesso tudo é triste,
Porque é alegre tudo. Não mui longe
Um desfolhado ipê conserva e guarda
Flores que lhe ficaram de outro estio,
Como esperança de folhagem nova,
Flores que a desventura lhe há negado,
A ela, alma esquecida nesta terra,
Que nada espera da estação vindoura.
Olha, e de inveja o coração lhe estala.
Pelo tronco das árvores se enroscam
Parasitas, esposas do arvoredo,
Mais fiéis não, mais venturosas que ela.
Morrer? Descanso fora às mágoas suas,
Mais que descanso, perdurável gozo,
Que a nossa eterna pátria aos infelizes
Deste desterro guarda alvas capelas
De não murchandas e cheirosas flores.
Tal lhe falava no íntimo do peito
Desespero cruel. Alguns instantes
Pela cansada mente lhe vagaram
De voluntária, abreviada morte,
Lutuosas ideias. mal compreende
Esses desmaios da criatura humana
Quem não sentiu no coração rasgado
Abatimento e enojo; ou, mais do que isto,
Esse contraste imenso e irreparável
Do amor interno e a solidão da vida.
Rápido espaço foi. Pronto lhe volve
Doce resignação, cristã virtude,
Que desafia e que assoberba os males.
As débeis mãos levanta. Já dos lábios
Solta nas asas de oração singela
Lástimas suas... Na folhagem seca
Ouve de cautos pés rumor sumido,
Volve a cabeça...

XIII
Trêmulo, calado,
Anajê crava nela os olhos turvos
Dos vapores da festa. As mãos inermes
Lhe pendem; mas o peito — ó mísera! — esse,
Esse de mal contido amor transborda.
Longo instante passou. Alfim: “Deixaste
A festa nossa (o bárbaro murmura);
Misteriosa vieste. Dos guerreiros
Nenhum te viu; mas eu senti teus passos,
E vim contigo ao ermo. Ave mesquinha,
Inútil foges; gavião te espreita,
Minha te fez Tupã.” Em pé, sorrindo,
Escutava Potira a voz severa
De Anajê. Breve espaço abria entre ambos
Alcatifado chão. A fatal hora
Chegara ao fim? Não o perscruta a moça;
Tudo aceita das mãos do seu destino,
Tudo, exceto... No próximo arvoredo
Ouve de uma ave o pio melancólico;
Era a voz de seu pai? a voz do esposo?
De ambos talvez. No ânimo da escrava
Restos havia dessa crença antiga
Antiga e sempre nova: o peito humano
Raro de obscuros elos se liberta.

XIV
— “Nasceste para ser senhora e dona:
Anajê não te veda a liberdade;
Quebra tu mesma os nós do cativeiro.
Faze-te esposa. Vem coroar meus dias;
Vem, tudo esqueço. A fronte do guerreiro,
Adornada por ti, será mais nobre;
Mais forte o braço em que pousar teu rosto.
Sou menos belo que esse esposo ausente?
Rudes feições compensa amor sobejo.
Vem; ver-me-ás companheira nos combates,
E, se inimiga frecha entrar meu seio,
Morrerei a teus pés. Tens medo aos padres?
Outro destino escolhe. Cauteloso,
Tece o japu nos elevados ramos
Das elevadas árvores o ninho,
Onde o inimigo lhe não roube a prole.
Ninho há na serra ao nosso amor propício;
Viveremos ali. Troveje embaixo
A inúbia convidando à guerra os povos;
Leva de arcos transforme estas aldeias
Em campos de combate, — ou já dispersas
As fugitivas tribos vão buscando
Longes sertões para chorar seus males,
Viveremos ali. Talvez, um dia,
Quando eu passar à misteriosa estância
Das delícias eternas, me pergunte
Meu velho pai: — “Teu arco de guerreiro
Em que deserta praia o abandonaste?"
Salvar-me-á teu amor do eterno pejo.”

XV
Doce era a voz e triste. Rasos d’água
Os olhos. Foi desmaio de tristeza
Que o gesto dissipou da esquiva moça.
Volve ao Tamoio vingativa ideia.
— “Minha (diz ele) ou morres!” Estremece
Potira, como quando a brisa passa
Ao de leve na folha da palmeira,
E logo fria ao bárbaro responde:
— “Jaz esquecido em nossas velhas tabas
O respeito da esposa? Acaso é digna
Do sangue do Tamoio esta ameaça?
Que desvalia aos olhos teus me coube,
Se a outro me ligaram natureza,
Religião, destino? A liberdade
Nas tuas mãos depus; com ela a vida.
É tudo, quase tudo. Honra de esposa,
Oh! essa deves respeitá-la! Vai-te!
Ceva teu ódio nas sangrentas carnes
Do prostrado cativo. Aqui chorando,
Na solidão destes bosques mal fechados,
Às maviosas brisas meus suspiros
Entregarei; levá-los-ão nas asas
Lá onde geme solitário o esposo.
Vai-te!”
E as mimosas mãos colhendo ao rosto,
Alçou a Deus o pensamento amante,
Como a centelha viva que a fogueira
Extinta aos ares sobe. Imóvel, muda,
Longo tempo ficou. Diante dela,
Como ela imóvel, o tamoio estava.
Amor, ódio, ciúme, orgulho, pena,
Opostos sentimentos se combatem
No atribulado peito. Generoso
Era, mas não domado amor lhe dava
Inspiração de crimes. Não mais pronto
Cai sobre a triste corça fugitiva
Jaguar de longa fome esporeado,
Do que ele as mãos lançou ao colo e à fronte
Da mísera Potira. Ai! não, não diga
A minha voz o lamentoso instante
Em que ela, ao seu algoz volvendo ansiosa
Turvos olhos: “Perdoo-te!” murmura,
Os lábios cerra e imaculada expira!

XVI
Estro maior teu nome obscuro cante,
Moça cristã das solidões antigas,
E eterno o cinja de virentes flores,
Que as mereces. De não sabido bardo
Estes gemidos são. Lânguidas brisas
No taquaral à noite sussurrando,
Ou enrugando o mole dorso às vagas,
Não tem a voz com que domina os ecos
Despenhada cachoeira. São, contudo,
Mas que débeis e tristes, no concerto
Da orquestra universal cabidas notas.
Alveja a nebulosa entre as estrelas,
E abre ao pé do rosal a flor da murta.

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