1/16/2020

Resenha do livro “Fogo Morto”, de José Lins do Rego


Por:
 Paulo Marçaioli
Cena do filme "Fogo Morto: a amarga saga do açúcar", de Marcos Farias

“Fogo Morto” – José Lins do Rego 
Editora Nova Fronteira – 27ª Edição.


Quando da publicação de “Fogo Morto” no ano de 1943, José Lins do Rego já era um escritor consagrado. Trata-se do seu décimo livro, escrito após a publicação de outras obras de destaque, como “Menino de Engenho” (1932), “Doidinho” (1933), “Banguê” (1934) e “Usina” (1936). Em todo o caso foi este romance considerado a obra prima, o ponto mais alto da produção literária regionalista do escritor paraibano.

O autor nasceu em 3 de Junho de 1901 no engenho Corredor, Município do Pilar, Estado da Paraíba. Seus pais eram da família Rego Cavalcanti, ligada há muitas gerações ao mundo rural do nordeste. Desde menino José Lins do Rego ouvia histórias nas fazendas, sabia dos contos populares, das músicas e de um folclores regional que retrataria em seus livros. Sua obra reflete o patriarcalismo rural dentro de uma perspectiva que parte do particular para o  universal – ainda que seus personagens sejam sertanejos com uma fala coloquial e popular, suas cogitações e emoções pessoais são retratadas de modo a produzir personagens facilmente identificáveis e compreendidos por leitores de qualquer época e lugar.

Frise-se que a história deste “Fogo Morto” se passa justamente no Pilar, entre os anos de 1848 até os anos posteriores à abolição da escravatura (1888) e advento da República (1889). O cenário envolve fazendas de cana de açúcar e algodão, coronéis, foreiros, escravos, trabalhadores livres pobres, cangaceiros, sinhás que vão estudar no Recife.

O livro se situa num contexto histórico de decadência de uma sociedade constituída sob as bases da economia do açúcar, do mandonismo dos senhores de engenho, do trabalho escravo. Nos três séculos de ocupação colonial do nordeste, o ciclo da cana constituiu a base da riqueza e opulência de senhores de engenho – com a crise da economia do açúcar e a mudança do eixo econômico do país do nordeste para o sudeste, particularmente com a expansão da economia do café em meados do século XIX, aquela sociedade fortemente hierarquizada e desigual caminha no sentido da desagregação.  Este movimento descendente foi muito bem retratado nos livros “Casa Grande e Senzala” e “Ordem e Progresso” de Gilberto Freyre, trabalho que influenciou pessoalmente o romancista.  

Esta decadência é produto de uma modernização tardia do Brasil que o historiador Nelson Werneck Sodré em seu livro sobre o II Império caracteriza como o advento da “República dos Letrados”. Um contexto de desenvolvimento das cidades, da constituição de jurisdição, de juízes e bacharéis que substituem a imposição da lei pelo poder inconteste do senhor de engenho. E, principalmente, um contexto de decadência da própria economia agrária de origem colonial, coroada com o fim tardio do trabalho escravo: neste “Fogo Morto”, uma das passagens mais interessantes é justamente a descrição do abandono da fazenda de Santa Fé pelos escravos do Coronel Lula. Este coronel era particularmente violento com os seus escravos, que festejavam sua liberdade com festa e dança na rua, sem, contudo, esboçar a menor intenção de se vingar.

Grandes obras de arte se diferenciam entre outros aspectos por alcançar um nível de profundidade nas análises das diferentes subjetividades de modo que escapa ao leitor qualquer cogitação no sentido de se identificar vilões e heróis, mocinhos e bandidos, bem e mal. Tanto o coronel quanto o escravo, o delegado de polícia e o cangaceiro, o marido, a mulher e a filha no âmbito da família – todos são retratados neste romance encarando suas contradições, suscitando as suas alegrias e sofrimentos de modo a engendrar a compaixão do leitor. Todos parecem ser vítimas de uma realidade subjacente de desigualdade e arbitrariedade imposta por forças invisíveis – sabe-se que cangaceiros lutam contra as tropas do governo, mas não se tem notícia da origem e das razões essenciais do conflito. Não há espaço para maniqueísmos, e a crítica social neste caso não resvala num estéril proselitismo, na mera defesa panfletária do oprimido contra o opressor.   


MODERNISMO

José Lins do Rego se situa no contexto do nosso modernismo literário em sua 2ª Fase, no mesmo âmbito de escritores como Graciliano Ramos, Rachel de Queirós e José Américo de Almeida. Trata-se de escritores que vêm a consolidar o movimento modernista oriundo da geração de 1922, com a proposta de se romper com uma arte tradicional vinculada a modelos e formas importadas da literatura estrangeira – do romantismo, do realismo e do naturalismo literário se verifica composições que formalmente se baseiam nas escolas artísticas europeias, enquanto o movimento vanguardista modernista propunha a antropofagia artística, a incorporação da cultura estrangeira sem com isso imitá-la ou utilizá-la como modelo formal acabado.

A chamada geração de 1930 teve como foco os romances regionalistas, com destaque para os problemas sociais e com uma prosa com linguagem coloquial e regional. A narrativa preza pela objetividade, com temáticas politizadas sem com isso abandonar a introspecção e a análise psicológica das personagens.


HISTÓRIA

O romance conta a história de três homens, cujos detalhes e ambientações se entrelaçam para formar um único enredo: Mestre José Amaro, seleiro, foreiro, homem extremamente austero consigo mesmo e com os outros, confundido pela população com lobisomem; o Coronel Lula do engenho do Santa Fé; e o curioso Capitão Vitorino, comparado por alguns críticos ao personagem Dom Quixote, um velho envolvido com a política local, muito desbocado, mas de bom coração.

A obra é dividida em três capítulos, cada um focado no ponto de vista dos três personagens – como num painel, as histórias vão se entrelaçando formando um quadro em que se contempla as diferentes perspectivas, conforme o olhar de cada personagem.  A história também possui um interesse suplementar na medida em que este modernismo é tributário da tradição do realismo literário: a objetividade da narrativa revela aspectos da sociedade, economia e cultura do nordeste Brasileiro do séc. XIX, de interesse para o historiador. Mais uma vez, a literatura nos serve para a melhor compreensão da questão nacional.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...