1/19/2020

Atlante Esmagado (Poemas), de Luiz Delfino


NO JARDIM

Naquele engano d'alma ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito.

Camões — Lusíadas

I
(Tarde de verão)

Dejando a los dos iguales
Dicha y desdicha...

Calderón de la Barca — Comédia

Ah! meu bem, eu só lamento,
Que talvez essa ventura
Não seja de tanta dura,
Quanto era bom esperar!...
Já que o tempo tudo mata,
Farta-me bem meus desejos...
Ai! sacia-me de beijos,
E deixa o tempo matar!..

Tudo dura pouco ou muito:
A sorte o que nos destina?
Se hoje o gozo não termina,
Esperemo-lo amanhã...
Ai! esperemo-lo!... E enquanto,
Prende-te bem ao meu seio:
Não tolde nenhum receio.
A tua fronte louçã.

Gozemos. — Que importa o resto?
Terra, inferno, paraíso?
Perdemos dois o juízo
No mesmo aperto de mão...
No mesmo arfar do desejo,
No mesmo tremor do seio,
No mesmo confuso enleio
Na mesma doida emoção!

Caímos. — Tu te abraçaste
No mesmo abismo comigo:
O nosso maldito abrigo
Tinha um encanto fatal.
Dormimos no mesmo lodo
Ocultos do mundo inteiro;
Junto ao nosso travesseiro
Cantava o anjo do mal.

Sorrias!... E o sol passava,
Beijando-te o céu da fronte;
E procurava o horizonte
Morno... calmo... sem parar.
Eu te apertava em meus braços...
Convulsamente apertava...
E quanto mais te beijava,
Mais te queria beijar!...

Parecia-me que a noite
Do nosso céu de ventura,
Tenebrosa, feia, escura,
Acaso podia vir:
Que este clarão misterioso
Deste sol de felicidade,
No abismo da eternidade
Podia breve cai!

Volta o sol. — Mas a ventura
Não tem tão certeiro giro...
Gozemos pois no retiro...
Deus enche os abismos, dando
Tantas pérolas aos mares,
Astros à noite aos milhares,
Milhões de flores ao val.

Deu ao nosso fundo abismo,
Que tantas sombras reveste,
Esta ambrosia celeste
De leite, de mel, de amor!...
Gozemos. — Antes que chegue
O fim, que tudo ameaça,
Esvaziemos a taça,
Antes de em meio a depor...

Quem sabe? — Gozemos hoje...
Manhã por vir não é nossa...
E a vaga, que engrossa, engrossa,
Da praia estala ao sopé...
Quem sabe? — A árvore pende,
Com o fruto de ouro, e deixado,
Qualquer vento inopinado
Pode arrancá-lo! — não é?!

II
Não sei se fiz mal, se bem.

Bernardim Ribeiro — Menina e Moça

Pusera-se o sol. — Qual fumo
De uma caçoula apagada,
Via-se a névoa enrolada
Nos crespos cimos crescer.
Além da amplidão das águas
Mexidas ligeiramente,
Branca lua no oriente
Mal vinha então de nascer.

À aragem trêmula, — as flores
As róseas frontes baixavam,
E no caminho entornavam,
As urnas do seu olor:
Moldurava a natureza
Um quadro de ébano e prata...
Ao longe a sombria mata
Fazia surdo rumor!...

No tanque, que a lua banha
De moles clarões, nadava
Alvo cisne, que cortava
As águas sem as turvar...
Raras estrelas fixadas
No fundo dessa bacia,
Tinham tal melancolia
Que pareciam chorar!

Os nossos olhos buscavam
O que perto e longe havia...
Branca vela além corria,
— Branca pomba em branco mar —
Os remos iam fazendo
Leve rumor... leve espuma:
Um carro de bois, em suma,
Dorme, sem bois, junto ao lar.

Do raro arvoredo a sombra
Esparsa no chão flutua...
Nas vidraças bate a lua,
Dentro delas não há luz...
Não sei que mau pensamento
Nosso respirar comprime!...
Ai! talvez o anjo do crime
Ali a sós nos conduz.

Latiu um cão... Não sei onde...
Sombra do doce ruído,
Que ofendendo o nosso ouvido,
Convulsava o coração...
E eu sua mão apertava
Naquele jardim ameno...
E um lento, lento veneno
Me entrava por sua mão!...

Fez-se depois um silêncio,
Que espreitar-nos parecia;
Nenhuma folha caía,
Nenhum estranho rumor...
Nenhum estremecimento
Pelos troncos... nu, deserto
Céu, e mar, e terra... e ao perto
Tudo a espiar nosso amor!

Assim na vaga azulada,
Como nos braços da amante,
Asa aos ventos, branquejante,
Palpita, ofega o batel;
Não está longe a praia: ri-lhe
Perto a esperança fagueira:
Prende-o às vezes na carreira
Rude punho de um parcel...

Oh! quem pudera, meu anjo,
Prender esta natureza,
E ter a doce certeza
Que não nos fugira mais!...
Nós aqui juntos... sentindo-a,
Como o fremir de um navio
Atado às margens de um rio

Nas hastes dos palmeirais!...
Sim! no oceano dos tempos,
Que corre incessantemente,
Uma hora destas somente,
Quem pudera suspender!
Sentir os haustos profundos,
Que saem da imensidade...
Gozar dessa eternidade...
Depois... e depois?... morrer!...

Ai! morrer entre os teus beijos!
E à sombra do teu sorriso
Ir até ao paraíso
Levado por tua mão...
Nenhum parcel entre as vagas,
Nos rosais nenhum espinho...
Enfim seguir o caminho
Por onde os ditosos vão...

Eu que sabia que o tempo,
Que é tão tardo ao desgraçado,
Foge com voo dobrado
Dos felizes: exclamei:
— Podes fugir... leva... arrasta
Tudo em tua correnteza;
Fica-me embora a certeza,
De quanto... quanto gozei!...

Sei que virei talvez cedo,
Ao mesmo jardim querido...
Que tudo terei perdido
Com ela... pois o não sei?!...
Lua, brisa, troncos, flores,
Esta relva de veludo...
Sim! hei de ter talvez tudo...
E a ela só não terei!...

Terei do quadro a moldura:
Sim! terei a natureza!
Mas não terei a beleza,
Que fazia o encanto seu:
Que importa o estojo dourado,
Que tinha dentro o diamante,
Quando esta pedra brilhante,
Mau fado! já se perdeu?!...

Vaga inconstante do tempo,
Que sobre nós ambos corres,
Bem cedo, bem cedo morres!
Mas como ensopada vais
Dessas lágrimas tão doces
Que à alma arranca a ventura,
Porque nessa hora a criatura
Tem menos riso e mais ais!...

Eu prelibava a saudade
Deste tempo, que fugia...
E minha fronte caía,
Mau grado meu! de terror;
Ela entendeu-me a tristeza...
— Era a sua alma tão minha! —
Que a mesma tristeza vinha
Lavar-lhe a fronte em palor!

Nisto um suspiro saiu-lhe
Do lábio quase entreaberto;
E todo aquele deserto
Pareceu-me suspirar:
Assim quando o vento passa,
Branca vaga que se alteia,
Cresce... ondula... e cai na areia,
Geme... ondula... — e volta ao mar.

Assim transborda do vaso,
Alva gota cristalina;
Não do vaso, que se inclina,
E derrama o doce olor,
Porém de vaso tão cheio
De um licor ebrioso e santo...
Que é tanto... tanto... mas tanto...
Que há de algum por fora pôr.

E eu tonto... perdido... louco
Naquele deserto espaço,
Peito a peito, braço a braço,
Já não sabia falar...
Eu enleava-me em torno
Dessa divina cintura,
E já sentia a quentura,
Que me devia matar!

Dava-lhe a lua na fronte
Alva, bela, alabastrina...
Como uma espessa cortina,
Ou como sombrio véu;
Os bastos cabelos negros,
Que mansa brisa agitava,
Do mundo aos olhos furtava
Aquela visão do céu.

De joelhos ao relento,
Vendo também as colinas
Em seu manto de neblinas
Ajoelhadas — talvez —
Naquela luz duvidosa,
Que toda a terra embebia...
Eu não sei o que fazia...
Ela... não soube o que fez!...


SONHAR! SONHAR!
(Num álbum)

Nel dolce tempo della prima etade...

Petrarca — Rime

Da vida ó mocidade, ó gentil primavera,
Em que tudo é rosal, luz, perfume, sorrir;
Em que, pra o moço, é curto o espaço desta esfera,
Em que ele pensa em breve a outra esfera subir;

E prepara em silêncio, e no estudo, e no olvido
As asas de condor, e mede o voo audaz;
E no palor da fronte, e olhar amortecido,
Como sob um lençol de cinza, — um vulcão traz;

Em que a esperança toda (ele o vê, ele o sente)
O arrebata fugaz por páramos além;
E a fé é o anjo puro, a guiá-lo de frente,
Lançando ponte da asa, onde um abismo vem;

Oh! nessa bela idade, em que o riso volteia
No ambiente, — em que a luz doira todo o existir,
Que por escada de ouro a mente galopeia,
E vai, num céu sem fim, como um tufão, cair...

Que eu não veja a descrença, erguendo a mão medonha,
Limpar-te os sonhos bons da fronte juvenil!...
O mais belo da vida é quando a gente sonha:
Que ninguém toque e quebre o teu sonho infantil.

Sonha que a liberdade o mundo inteiro cobre;
Sonha que o mundo é bom, sonha belo o porvir;
Sonha a virtude, a paz, o que há de belo e nobre;
Tudo quanto há de grande: — o sonhar é dormir!...

E nesse eterno sono o anjo da esperança,
Nos céus e em Deus o olhar sereno e paternal,
Te embala o berço puro, e leve-te, ó criança,
Do sonho deste mundo ao infinito real...

Vive a pérola assim no fundo do oceano,
Ruge por cima dela o feio temporal,
Cospem por cima dela as vagas todo o ano,
Vive a pérola branca em leito virginal.

Mas se acaso algum dia acordares do sonho,
Como às vezes se arranca a pérola do mar...
Então podes chorar... — O viver é medonho!
Hás de ter pena então do teu sonho acabar.

Então compreenderás a dor que em cada ruga
De nossa fronte habita, — e o vento que a cavou:
É que o sol da manhã muitas vezes enxuga
A lágrima que à noite o rosto nos molhou.

Assim em chão cavado, e seixos revolvidos,
— Leito de uma torrente antiga que passou, —
Bate o sol, cresce a relva e matagais floridos,
O rio já não corre e o leito ali ficou!...



FATALIDADE

Amor meus, pondus meum.

I
Quisera à luz dos teus olhos,
Pois dela se inundam tanto,
Soletrar o livro santo
Do teu coração, mulher:
Ler nessas páginas rubras,
Em que teu sangue crepita,
A minha sentença escrita,
A minha sorte sequer.

Ler através do teu riso,
De tua frase convulsa,
O teu coração, que pulsa,
Que diz o teu coração,
No teu desdém, no teu gesto,
Na tua voz, nos teus passos,
No movimento dos braços,
Na tua mesma emoção.
Ler, através do perfume,
Que todo teu corpo exala,
O que diz, e pensa, e fala
O teu livro virginal.
Lê-lo, como o sacerdote,
Ajoelhado, e contrito,
Segundo as normas do rito,
Lê no dourado missal.

Lê-lo: e cheio de respeito
Beijar a capa de fora,
Depois de fechá-lo embora,
Depois de sair do altar:
Ler assim teu livro belo
Com devoção e humildade,
Beijá-lo após; e quem há de
Lê-lo e pois o não beijar?

II
Mas a capa do teu livro
É essa epiderme fina
Que tu, ó mulher divina,
Não me deixaras tocar;
Nem me deixaras de leve
Passar o meu lábio ardente,
Embora o mais santamente
Que um lábio pode passar.

Se eu pudesse nessas folhas,
Escritas com sangue rubro,
Ver o que em ti não descubro
No olhar, no gesto, na voz,
E na página mais bela
Do teu virginal poema
Ler minha sentença extrema,
A minha sentença atroz...

Lê-la no estilo dos anjos,
Que falam às criaturas,
Como as estrelas mais puras
A Deus só devem falar...
Que eu lá não tinha uma letra
Em tudo que há lá gravado...
Ver o meu nome lançado,
Como um cadáver no mar?!...

Pousado à luz esplendente,
Que todo teu corpo escorre,
Boiando, como quem morre
Num naufrágio, sem ninguém,
Sem mãe, sem pai, sem amigo,
Enfim sem palmo de terra,
Que o corpo mais pobre encerra,
Que até um cão mesmo tem...

— Bendita... bendita sejas
Em tudo que de ti parte, —
Eu diria, sem lançar-te
O mais ligeiro sinal
Da funda dor, que cruciara
O meu coração ferido,
Roto, esmagado, vencido
No seu desastre total.

Para ti pedira a bênção,
Num inefável arroubo,
Aos dois extremos do globo,
Aos quatro extremos do céu:
Todas as brancas carícias
Afagando o teu futuro,
Um anjo as pedras de um muro
Erguendo contra o escarcéu...

Amo-te e nada te peço:
Teu corpo e tua alma eu quero
Mas sabes? eu nada espero,
Nem ainda compaixão:
Eu amo-te; — isto me basta:
Para amar não é preciso
Ter em paga algum sorriso,
Queira muito o coração.

Bendito o bem que me faças,
Mesmo o mal que me fizeres;
Entre todas as mulheres
És como o lírio do vale:
Nega-me tu teus perfumes,
Vota-me um ódio profundo;
Tu és o sol do meu mundo:
O meu amor é fatal.

III
São para mim teus olhos um mistério.
Que procuro sondar. — Embora cismo,
Procuro embora nesse fundo abismo
A luz, que me dirija; e é tudo em vão:
Tem da pomba a fremir o arrulho, o beijo,
Tem da estrela da tarde a luz serena,
Tem a suave, a doce cantilena
Do sabiá em noites de verão:

Tem da lágrima santa o doce brilho,
A languidez da juriti no mato,
Tem das virgens o trêmulo recato,
E a frescura do orvalho matinal:
Tem a oração da tímida criança.
Tem da mulher o voluptuoso encanto,
Tem sorriso e prazer, tem mágoa e pranto;
E é como um ninho em meio de um rosal.

E é como um ninho esplendoroso e quente,
Deixado acaso em perfumada moita,
Onde o rei das canções, que ali se acoita,
Com elas enche a extensa solidão;
Como um navio velejando à tarde
Entre o abismo dos céus e o azul dos mares,
Quando as brisas penduram-se aos palmares,
Que os nautas levam sobre o coração;

Oh! como um ninho, que tem dentro dele
Dois colibris, que voam noite e dia,
Dos cílios entre a fresquidão sombria,
No langue ardor da cálida estação:
Mas nesses olhos, onde os astros dormem,
Trocando o céu por outro céu mais belo,
A sombra negra da paixão de Otelo
Passa rugindo com um punhal na mão...

Os teus olhos!... o livro que procuro
Ler noite e dia, e sempre, e que não leio!...
Sei que é feito de luz e sangue, e cheio
De poemas, que os anjos ditam só,
Quando as escadas de ouro dos seus sonhos
Descem num bando alegre e luminoso,
E perturbando-a no infantil repouso,
Sacodem-lhe das asas todo o pó.

Quem há de ler o edênico poema,
De que ela só conserva a chave de ouro,
Guardando-a como quem guarda um tesouro,
Que não há de jamais dar a ninguém!
Ó meu amor, levanta um pouco a folha
Deste encantado livro; abre, um instante,
Uma página só; eu delirante
De joelhos lerei tudo que tem.

Mas quando haja uma estrofe, em que meu nome
Ferido, como Dante fulminava,
Quando o seu verso vingador cravava
No largo, enorme flanco de algum réu...
Torcido, atado ao poste do desprezo,
Nu, como Adão do paraíso, expulso,
E arremessado por teu pé convulso,
Anjo de amor, do teu formoso céu...

Assim mesmo mendigo, e inda orgulhoso,
Sem te pedir da compaixão a esmola,
Mesmo de longe, ó pérola, consola
Meu coração por ti cair, morrer:
É-lhe inda gozo o último suspiro,
E, ao convulsar da última agonia,
Dizer: — Mulher, eu nada te pedia:
Amo-te, acabo, morro: é meu prazer. —

Mas, arcanjo de luz, eu só deliro:
No livro dos teus olhos nada leio:
Quem assim perturbar minha alma veio,
Como quem lança o vento no areal?
Teus olhos têm da pomba o doce arrulho,
Da estrela a luz tremida, e a macieza,
Quando dentro das águas brilha presa,
Como uma gota de ouro num cristal;

Tem o encanto que cega, e que fascina,
Tem o gemer da juriti viúva,
Tem o murmúrio e o cintilar da chuva
Por entre as folhas cheias de arrebol,
Tem a carícia branca da criança,
O lascivo calor da primavera...
Seus olhos rolam na serena esfera
O céu todo banhado em luz do sol.

IV
Mas a cor deles? Pela cor das águas
Se sabe a profundeza do oceano:
E o que há no fundo coração humano,
Os olhos... ai! os olhos não dirão?
Todavia a cor deles é suave,
Como um clarão de tíbia estrela à tarde:
A cetinosa luz, que há neles, arde,
Como o balbuciar de uma oração.

Dizer aquela cor de olhos tão puros,
Em cujo abismo o meu destino ponho,
Não sei: é um lago de encantado sonho
Mais extenso que o céu: a doce luz
Que o banha, tão profundamente desce
Que chega ao coração e volta quente:
Como o sol no vastíssimo oriente,
Calor suave o seu olhar produz.

Mas a cor deles? — Banho-me em seu olhos,
Como quem entra pelo mar em fora:
Bebo a luz deles, entro pela aurora
Balsâmica, que os doira; e acho-me bem:
Nado naquele espaço limitado,
Como quem nada pelo espaço infindo:
Como é tépido e bom, macio e lindo!...
A cor dos olhos seus pois a que vem?...

Bom. — Saiba o mundo a cor dessas cadeias,
Que eu, como Prometeu vencido, arrasto,
Mas... que eu de mim jamais iroso afasto,
E encontro mesmo amargo encanto e ebriez:
Pois são castanhos com reflexos negros,
Bem como negra nuvem na enxurrada
Dos incêndios vermelhos da alvorada,
Que inda de todo a noite não desfez.

Oh! que me importa a cor, quando eu perdido
Na vastidão daquele mar sereno,
Vejo-a só grande, e tudo mais pequeno?!...
A terra, o céu, o oceano, o sol, e Deus,
Porvir, passado, a eternidade, o espaço,
O que quero, o que sonho, o que procuro,
Luz, carícia, prazer, amor, futuro,
Todo o universo está nos olhos seus.

V
Vou como a queda de uma catapulta,
Que o braço move, e após seu próprio peso:
Vou, sim! como quem segue um fogo aceso;
Mau grado meu, eu te seguindo vou:
Atrai-me a direção da mesma linha,
Imaculada força, amor, virtude,
Parte dessa divina infinitude,
De que eu também mínima parte sou.

Ouvir a voz do pássaro que canta,
Que canta só em tua linda aurora...
Se não o ouvir cantar em ti agora,
Quando hei de ouvi-lo, em que manhã? Não sei.
Para ouvi-lo em jardins paradisíacos,
Moitas cheirosas, burilados lagos,
À sombra, que derramam teus afagos,
Crera-me um deus: — pouco era o crer-me um rei.

Pudera, a uma das mãos erguera abismos,
Com outra dentro os teus desdéns lançara,
E, com a voz, ao céu dissera: — Para: —
Para ter sóis, que te deitar aos pés:
Vendo essa poeira de ouro solta, ondeando,
Num rio a crepitar de luz fluente,
Eu ficaria estático, e contente,
Ao ouvir-te perguntar-me então: — Quem és? —

Oh! não fujas!... Não vás além do oceano
Levar os lagos, em que eu mato a sede
Do belo e do infinito: e que não hei de
Jamais... jamais na terra achar sem ti:
Fica: — nessas lagoas esplendentes
Dos olhos teus eu dormirei sonhando:
Num barco de ouro e azul irei passando,
E sonhando morrer, como vivi.

VI
Quando me vejo lá dentro,
Com tanta luz transparente,
Que o céu rumoroso e quente
Tem dos belos olhos teus,
Eu não invejo as estrelas
No seu ninho azul celeste:
Pelo lugar, que me deste,
Não troco o que dera Deus.

Não troco o céu: não trocara
Do céu o eterno destino
Por esse Éden pequenino,
Em que estou lá tão feliz;
Lá dentro, na carne dela,
Fundido, unido, agarrado,
Como um animal deixado,
Que alguém enxotar não quis.

Mas orgulhoso e tão cheio
Da minha nobre conquista,
Que ao céu levantando a vista,
Achava pequeno o céu,
Com o seu Deus, os seus astros,
E a sua falange imensa:
Ninguém sabe ninguém pensa;
Seus olhos são meu troféu.

E eu ali dentro, no meio
Daqueles lagos brilhantes,
Nadando breves instantes,
Cisne dos lagos da luz,
Surdo ao rumor do teu tédio,
Como a voz das ondas quérulas
Ouve a pérola das pérolas,
Quando entra as águas de Ormuz.

VII
Mas... quem me diz a mim, que é com desprezo,
Que ela me vê, que me recebe, e deixa?
Aos ventos lanço minha eterna queixa,
Sem mágoas dela, sem razão de ser;
Se ela não sabe deste incêndio grande,
Grande, como os incêndios de uma aurora,
Que a alma toda me queima, e me devora,
Em que por ela me consumo a arder!...

Ó minha cinza tépida e brilhante,
Que o vento há de espalhar na terra um dia.
Muda em notas de amplíssima harmonia
As fibras do queimado coração;
Ele foi uma lira dedilhada
Constantemente aos pés dos seus altares,
E o canto, que murmura inda nos ares,
Só dela teve vida e inspiração.

Ai! tudo diz que ela bem sabe e palpa
Todo amor que bebi a lentos tragos,
Como o cisne que vive em mansos lagos,
E nunca dentro as asas mergulhou:
Mas eu... para molhar as penas brancas,
Fui meter-me no fundo cristalino:
Meti-me em todo aquele ser divino,
E ela em seu infinito me afogou...

Ai! sou dela!... Ela só me tem agora
Nessas águas divinas balouçado,
Como um tronco das margens arrancado,
Vou por onde a corrente me levar:
Vou no esplendor e no marulho brando,
O céu estrelas sacudindo, — e eu cantos:
Rio, que espelha a luz dos seus encantos,
Irei assim à eternidade... ao mar.

VIII
Que importa? Deus está dentro em mim mesmo:
Eu tenho em mim o inferno e o paraíso:
Um é teu tédio, o outro teu sorriso;
E é minha a infinidade e eu dela sou.
Eu sei que andas em mim ao mesmo tempo
Na família, na raça, e ideia e esforço;
Que anda o universo sobre o nosso dorso
Que nele tu e nele eu mesmo vou.

Do belo o instinto, a norma da justiça,
Jaz em nós mesmos, como planta em germe;
Busco amor, como amor consigo quer-me;
A tendência do bem é lei fatal;
Tu hás de em ti sentir o mesmo impulso;
Há em nós o equilíbrio das estrelas;
Elas nos veem e nós estamos a vê-las:
Nos leva a todos nós o mesmo ideal.

Está começo e fim de tudo em tudo:
Do abismo o fundo, o fundo do sublime,
Um enchendo a virtude, um outro o crime,
No fim do tempo a misturar-se vêm.
Não haverá eleitos, nem precitos;
A dor e o tempo tudo purifica:
O que há de ser, enfim tudo o que fica,
É um grande esplendor de sol — o Bem

Nós somos como a serpe mutilada,
Cujos anéis procuram-se, saltando;
Que hão de unir-se em um dia... não sei quando...
A eternidade longa margem dá:
Mundos novos virão depois dos velhos,
Feitos de mortos sóis, que irão na cova
Buscar novo alimento e vida nova...
Novo e velho!... o que existe inda haverá...

IX
Quando virem boiando ao tom das águas
Um cadáver de luz, ide buscá-lo:
É minha alma em meus cantos: quanto falo,
Quanto gemo, minha alma em si levou:
É minha alma em meus cantos: — Pobre Ofélia,
Louca morrendo sobre as suas flores,
À espera de uns fantásticos amores,
Que só na morte enfim ela encontrou.

Quem sabe se inda debruçada um dia
Rubros os olhos seus, túrgido o peito,
Não terei nela a palidez de Hamleto,
Sobre um cadáver delirando em dor!?
Ai! estarei mudo, como estava Ofélia,
Sem poder levantar-me, e erguer meus braços,
Enquanto além no fundo dos espaços,
Beijam-se os astros trêmulos de amor!

Enquanto canta um pássaro tardio
Nas franças do arvoredo, que se agita:
Enquanto pela abóbada infinita
A alma das coisas suspirando vai:
Enquanto o ninho aquece o par, que dorme,
E há de amanhã ao sol andar em festa:
Enquanto dos mistérios da floresta
Surdo gemido de água em fúria sai...

X
Será pois que profundo amor não pode
Existir neste mísero planeta,
Que de Romeu flutua à Julieta,
Achando sempre um doloroso fim?
Ó grandes bebedores de ambrosia,
Grandes ébrios de luz e de ventura,
Só podereis fazer na sepultura
Vosso primeiro e último festim?

Heis de matar a fome, que enlouquece,
Nas brancuras da espádua adormecida?
E a luz do amor, que há só gozar em vida,
Permite Deus que acabe de uma vez?
Taça da fé, por onde o sol se bebe,
Eternidade! ó sonhos!... esperanças!...
Estes amantes, tímidas crianças,
Ai! precisam que vós os consoleis.

Como soa vazio este universo,
Dando um som cavo; taciturno e oco,
Quando perdido, arrebatado, louco,
Encontro o espaço e a eternidade só!
Ó Julieta, ó Beatriz, ó Laura,
Este universo não... não está deserto,
Se Deus não está por aí ou longe, ou perto,
Por força está no céu de vosso pó.

XI
Almas feitas de fogo e de harmonias,
Almas feitas de amor e tempestades,
Puros Romeus de todas as idades,
Ó vós, poetas, sonhadores vãos,
Após de qual quimera ides perdidos?
Qual é pois o ideal que vos fascina?
Morrer de amor pela mulher divina,
Morrer apenas lhe beijando as mãos?

É este o vosso sonho, ó loucos? Este
É o corcel de esplêndidas batalhas,
Cravando os pés nas asas das metralhas,
Lá dentro indo aos vulcões buscar troféus?
Isto vos faz atravessar os mares,
Agarrados nas clinas da tormenta,
Por que aí longe claridade lenta
Vos mostra a porta ideal de uns róseos céus?

Doidos! Abris as veias inflamadas
De um sangue feito de metal fundido,
E abrasando com ele o chão, vencido,
Cada um de vós, ou vencedor morreis?
Amo os vossos farrapos gloriosos:
Sóis, as vossas misérias quero tê-las:
Vossos rasgões, alvéolos de estrelas,
Valem mais do que as púrpuras dos reis.

Feridos, dos profundos surcos golfam,
Astros em jorro, em trêmulas cascatas:
Corcéis de luz, as rumorosas patas
Fazem saltar do chão mais luz, mais sóis!
Passam, lançando incêndios, e arruídos...
0 mundo, que os aplaude, enche-os de apodos:
São para os povos, que iluminam, doidos:
Mas a história, que os guarda, os chama heróis.

Ai! mulheres, contudo a sombra vossa,
Uma flor seca, um fio de cabelo,
Mártir, herói, prodígio, assombro fê-lo,
Correndo à glória dos lauréis após.
São vossos nomes talismãs preciosos
Naquelas grandes almas enterrados!
Vós, mulheres, fazei-os desgraçados,
Mas também grandes só fazei-os vós.

Reais amantes, ou ficções divinas,
Ó Fausto, ó nunca impura Margarida,
Ó Werther, ó Carlota, e pois a vida
Há de ser sempre um delirar sem fim?
Os corações passando lado a lado
Cheios de amor, sem se entenderem nunca,
E a dor, voraz abutre, a garra adunca,
Dilacerando-os para atroz festim?

Mas... quando eles beijando as mãos à Ofélia
Louca de amor, à Julieta morta,
Acham a sombra de não sei que importa,
Que não era a mulher dos sonhos seus,
Não podem procurar a verdadeira?
Ó Fornarina, ó Laura, ó Formosura,
A chama deles sempre é nova e pura:
Ó Lovelaces, inda sois Romeus...

XII
Mas quem és tu, brilhante grão de areia
Do tamanho de um mar em meu destino?
Chave de ouro de um céu, que eu imagino,
E cujas portas nunca se abrirão,
Eu conheci-te em breve, e amei-te logo:
Eras a irmã da aurora, que nascia;
A luz do céu na tua fronte ria;
Era um mundo de luz teu coração.

Entre os jardins da Ilha dos amores
Podia ter-te deslizado a vida:
Podias ser do grande Tasso a Armida,
Rica, formosa, grácil e gentil:
Um céu de flores te abraçava em torno,
Um céu de encantos te coroava a fronte,
Um céu de estrelas era-te o horizonte:
Era o mar outro céu de brando anil.

Eras a fada que podia tudo:
Tinhas na mão fatídica varinha;
E tão naturalmente eras rainha,
Que em tudo tu mostravas teu poder:
Muito céu te afagava os pés e a fronte,
Mágica flor dos carmes do Oriente,
Porém o céu melhor, mais doce e quente
Era o teu coração, em sóis a arder.

Ai! o teu coração!... Vi noutro tempo
Nas veias do teu rosto transparente
O paraíso luminosamente,
Em um deslumbramento de esplendor:
Ele radiava no tremer dos lábios,
Do corpo esbelto no gentil meneio,
Nas duas ondas límpidas do seio,
Nas duas mãos de matutino alvor.

Podia ser amada e amar-me. Amar-me?
Fora preciso ser maior que Dante,
Mais feliz do que Tasso, o louco amante,
Para tão insensata aspiração:
Ela era um céu de um mundo de harmonias,
Só para ela Atlante, e enfim Colombo;
E eu era apenas taciturno pombo,
Vivendo até na estranha solidão.

Ó orgulho! ó miséria! ó lodo! infâmia!
Tu és mais que o demônio em nossas almas;
As mais brilhantes, mais formosas palmas
Por ti deixamos de colher talvez:
Tu nos segredos baixo, e cauteloso,
A ironia e o desprezo ao bom, e ao belo:
Pões o punhal a arder nas mãos de Otelo,
Pões na fronte de Hamleto a insensatez.

Ó tu, orgulho, velho chocarreiro,
Cedi à malvadez dos teus conselhos,
E em vez de ter o céu nos meus joelhos,
Ao luar do seu rosto, ali feliz
Saindo das auroras dos seus braços
Para milhões de estrelas dos seus beijos,
Fartando os seus, fartando os meus desejos,
Louco, orgulhoso, infame, mau... não quis.

Agora choro. Agora é tarde: agora
Vou da noite profunda às horas mortas
Sentar-me ao limiar daquelas portas,
Que abrem para esse céu, que abandonei.
Dormes, fada, lá dentro em teus castelos?
Eva inocente, em teus vergéis descansas?
E dar-me-ias a esmola de esperanças,
Se eu tas pedisse, envilecido rei?

Ai! o que quero, que tu possas dar-mo?
Quero sentar-me apenas ao teu lado,
Como a pomba, a quem dás o pão deixado
Cair dos céus de tuas mãos gentis...
Um cantinho do céu nos teus vestidos,
Para saber como é que Deus nos fala:
E sob o aroma, que teu corpo exala,
Reparar aos teus pés o mal que fiz...

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