2/06/2020

Dinheiro! Dinheiro! (Conto), de Camilo Castelo Branco



DINHEIRO! DINHEIRO!

Contaram-me, há poucas horas, um episódio da extraordinária vida de um homem, que apenas hoje conta vinte e cinco anos. Quem ele é não o direi eu, ainda que me façam... eu sei cá!? bacharel! Eu bem sei que não posso encarecer-me com este segredo, porque há aí uma boa dúzia de pessoas que o sabem, por triste experiência, mais miudamente que eu.

Mas o que é mais bonito, e não sei mesmo se mais romântico, é que eu conheço pelo menos quatro prima-donas, afora as comprimárias, desta partitura, que negam com toda a energia dos seus brios o importante papel que desempenharam.

Deixá-las negar, que eu também não digo quem elas são, ainda que me deem o hábito de Cristo.

Outra coisa:

O muito verídico arquivista dos fatos, que vão ler-se, pediu-me, por tudo quanto há sagrado no folhetim, que não divulgasse, nem por sombras, o seu nome.

Não o direi nunca, ainda que me façam... barão!

E está dito tudo.

Agora, gentis leitoras e eruditos leitores, começa o romance, em nome da moralidade, do decoro e dos interesses materiais...

 ***

DINHEIRO! DINHEIRO!


Foi assim que principiou o meu ilustre amigo:

― Ali onde o vês é um embrião de romances desgrenhados...

Referia-se a um rapaz que passava por debaixo das minhas janelas. Era uma boa figura, visto pelas costas; mas de frente não se podia contemplar-lhe o rosto sem recuar... não de medo, mas de um não sei que desabrido e repulsivo. E não era feio. Eu por mim, custou-me muito a sustentar cara firme quando ele me fitava com aqueles olhos negros e magnéticos. Fazia-me medo, palavra de honra! Depois afiz-me àquela petulância de olhar, àquele carregado provocante da sobrancelha, e, graças a Deus, já me não custa tanto.

Ora aí está, sem grave impertinência, traçado corporalmente o Sr. Álvaro de Sousa, que passava na minha rua.

― Com que então (disse eu) é um embrião de romances aquele senhor?! Bem me parecia a mim que a vida daquele homem não devia ser simétrica, pausada, e prosaicamente chata como a minha! Eu nem se quer lhe sei de nada! Ando cá tão fora das barreiras da sociedade, e dos dramas contemporâneos... que nem ao menos sei se a mazurca está no quinto grau da refinação, ou se as polcas cederam o terreno à restauração do minuete da corte... Que miséria!

― Não perdes nada, meu caro. Olha que a verdadeira miséria está escondida no manto de lentejoulas com que esta sociedade desdentada e trôpega se encobre. E, se não, deixa-me ler-te uma página da vida de Álvaro de Sousa, e verás como se vive por lá...

Como sabes, aquele rapaz é da plebe, e aspirou sempre a ser da fidalguia. O homem não podia tragar esta desigualdade de gozos imposta pela desigualdade do dinheiro. Sem dinheiro, e sem avós, Álvaro achava-se aos vinte anos neste mundo sem saber o fim para que viera, nem a fileira social em que devia perfilar-se.

― Pois não há tantos ofícios? ― interrompi eu.

― Essa pergunta não me parece tua! Pois tu querias sentar numa tripeça um homem de inteligência?

― Que dúvida! Os sapateiros de Lisboa não têm um jornal? Álvaro de Sousa seria um hábil redator do jornal dos sapateiros.

― Estás zombando!

― Palavra de honra, que não zombo! Tu sabes lá porque horizontes vai ampliar-se o espírito da arte? Sabes se a tripeça terá uma plástica e uma estética! Sabes se a bota de canhão terá um belo ideal? Sabes se a tomba e a intercospia terão uma filosofia? Sabes se as matemáticas virão, com a sua geometria aplicada à bota, regular as dimensões do salto? Sabes se a dinâmica será a última expressão do pino? E não achas aqui neste complexo de ciências um suculento pabulo para um sapateiro talentoso, para um sapateiro-Newton, para um sapateiro-Girardin?

― Tenho entendido que não queres a história do homem... Façamos tréguas... Eu dou-te o diploma de espirituoso, e tu fechas a torneira ao espírito por algum tempo... Guarda esse cabedal, que desperdiças, para os teus folhetins. Farás rir um fidalgo de raça, embora o seu quinto avô fizesse borzeguins para a tua quinta avó. Farás indignar o sapateiro, teu irmão pelo sangue, pelo osso, e pela carne, e teu irmão pela arte, porque, enfim, eu não sei se a sociedade dispensa mais depressa os teus folhetins que as botas...

E eu vi que o meu amigo tinha razão, e dei-lhe plena liberdade de historiar o episódio de Álvaro de Sousa, que continua assim:

― Álvaro, à custa de muitos vexames e afrontas conseguiu relacionar-se em algumas casas, onde compareciam algumas das primeiras mulheres. Eram talvez estas as notabilidades, as sacerdotisas de iniciação para os noviços que entravam no faustuoso templo das vestais em quinta mão.

O rapaz foi mais adiante nas suas ambições.

O coração pedia-lhe alimento, o espírito pedia-lhe amor, as aspirações ansiavam-lhe um ideal, e o altivo mancebo entendeu que aquelas mulheres deviam compreendê-lo no coração, no espírito, e nas aspirações.

Era, realmente, exigir muito, no ano do Senhor de 1849!

A primeira declaração, que balbuciou, teve em troca um sorrir de desprezo. Aventurou uma segunda centelha da lava, que o escaldava, por dentro, e achou de gelo todas aquelas mulheres. E não era isto só. Escarneciam-no. Lastimavam-lhe a mania das declarações; e algumas galhofeiras senhoras reuniram-se, uma noite de baile, para lhe dizerem que, todas juntas, iam devotamente cumprir uma novena a Santo Anastácio para que o servinho de Deus o livrasse daquela hidrofobia amorosa. É onde podia levar-se o insulto!

Álvaro de Sousa entrou no âmago da sua consciência, como num abismo sem luz, num segredo de torturas, e despedaçou um a um os sentimentos generosos com que entrara neste mundo ingrato.

Pobre! esta maldita palavra, estigma de reprovação, era o seu demônio das vigílias e dos sonhos!

Como o supersticioso, que recua espavorido à larva imaginaria do seu crime, Álvaro de Sousa fugia dos homens, como se eles, juízes implacáveis, devessem sentenciá-lo no crime da sua pobreza.

Mas um coração altivo de impotente orgulho não podia transigir com estas leis bárbaras da sociedade, que amputam no coração do pobre os mais augustos sentimentos da sua vitalidade.

Há uma aparente reconciliação entre a afronta e a pobreza: é a reconciliação do ódio: é um pacto de vingança, selado pelas lágrimas do afrontado; é uma letra de usura avara de desforço, a vencer-se, sem prazo fixo, mas a vencer-se um dia.

Esta fora a reconciliação de Álvaro de Sousa com as generosas mulheres da sua afeição.

― Elas, naturalmente, riam-se, se ele lhes desse parte dessa reconciliação...

― Riram muito. Alguém lhes disse: “Aquele pobre rapaz, que sentia freneticamente as suas paixões, fugiu da sociedade, e devora, na solidão do seu quarto, um rancor profundo... ― A mim: ― interrompeu uma delas ― Que pena! Oh Teresinha, não é uma verdadeira calamidade o ódio daquele rapaz? ― Ai! Maria da Luz! que triste futuro nos espera...”

E chasqueavam assim o seu ridículo inimigo, perguntando aos amigos dele em que dia finalmente as hostilidades se romperiam.

Isto ninguém o dizia a Álvaro, porque entre o ódio e a vingança impossível, nas almas fortes, está o suicídio.

Nas almas fortes! (atalhei eu com gravidade filosófica). Então não sei eu o que são “almas fortes!” Cobardes chamo eu aqueles que desesperam. A suprema das misérias humanas é a vingança reservada por causa de amores desprezados. O tal Álvaro de Sousa será muito romanesco, mas também é um grande tolo. Com que direito queria ele impor-se ao amor dessas mulheres? “Despresaram-no porque era pobre” respondes tu. E se o desprezassem por que era feio? Achas que a pobreza tenha muitas seduções? E por que não foi Álvaro de Sousa amar uma peixeira que as há bem bonitas? Se a sua alma de poeta aspirava a um ideal olímpico e metafisicamente imponderável por que foi ele procurar o seu ideal nas mulheres carnalmente vestidas de tafetás e veludos? A mulher ordinária, virgem na alma, sem a depravação das Aspásias que o repudiaram, não lhe seria mais interessante pela candura, pela inocência, e pelo angélico cismar dos singelos devaneios? Eu não posso sofrer estes Werters caricatos que apelam para o suicídio, quando a mulher dos seus sonhos não pode altear-se às delicadas concepções da sua alma! Vai a ver-se a mulher em que eles empregam todo o seu cabedal de sentimentalismo, e depara-se uma estragada de espírito, abastardada nos instintos, incapaz de conceber a generosidade, gelada para as suaves impressões de uma amizade honesta, e finalmente uma Ninon sem o espírito da francesa, mas opulenta como ela de matéria. Repito: por que não vão estes impostores queimar o incenso das suas angélicas adorações aos pés de uma donzelinha de olhos tímidos, e faces purpurinas? Não é tão belo surpreender o pejo da inocência!? Não há tanta poesia naquelas lágrimas de um primeiro amor que desconfia da sombra de uma mulher, que passa ao longe do seu Medro! Não há aí tantas Angélicas obscuras, tantas Virgínias, segregadas dos salões das Frineias? Enfim, meu sentimental historiador de paixões desgrenhadas, eu não posso sentir contigo as desventuras do Sr. Álvaro. Quero ouvi-las, porque enfim, escrevo folhetins, e minto quase sempre para encher um espaço de papel. Pode ser que digas alguma coisa que valha a pena de captar a atenção deste público portuense, que lê constantemente, e, à falta de romances, por não poder emendar o costume de ler sempre, começa a mastigar profundas lucubrações sobre a doença das vinhas. ― Ora, diz lá.

***

O meu amigo continuou:

― Álvaro reconcentrou-se em uma tal misantropia, que nem ao menos os íntimos amigos recebia em casa. Dir-se-ia que aquela vida estava a levedar-se do amargo fermento de rancor que as mulheres lhe levaram à alma. Eu vi-o uma vez. Parecia um Smarra, um mágico, uma coisa de um outro mundo, onde os homens conversam com as larvas. Morava no quarto o terror. A sombra da asa da morte empanava aquele rosto, de onde a viveza e o lume fugira, deixando como vestígios, as rugas cadavéricas de uma lenta agonia.

― Devia ser um demônio! Cuidei que uns figurões assim eram privilegio dos romances!... E os cabelos? naturalmente arrepiados como os do Asaverus, de Orestes, ou de qualquer outro estafermo, não é verdade?

― O que tu quiseres... O caso é que eu julguei-o demente, ou, pelo menos, desgraçado, que não sei se é menos, por toda a vida.

Agora, levanta-se o pano do segundo ato.

Uma bela manhã, sai um homem de um navio com quatro baús atrás de si. Este homem procurou a morada de um seu irmão; este irmão, que tinha morrido, era o pai de Álvaro. O tio de Álvaro, por consequência, era um rico brasileiro, que acabava de manifestar seiscentos contos.

Álvaro recebeu-o com sinistra rudeza. O Sr. Manoel da Silva abraçou seu sobrinho, chorando a morte de seu irmão, que era muito semelhante com seu sobrinho. Deu graças à Providência por encontrar um herdeiro do seu ouro e do seu sangue; e, deixa-me assim dizer sem ofensa da metafisica, insuflou uma alma nova naquela casa, uma alma muito grande, maior que a alma universal de Platão! só comparável à alma que faz girar um sangue azul nas veias de um merceeiro.

Álvaro, quando de improviso se viu rico, partiu a pedra do seu túmulo, e respirou o ar dos vivos. Os olhos faiscaram-lhe um novo lume. Os lábios vibraram-lhe uma eloquência nova. O coração bateu-lhe pulsações de um orgulho expansivo. O corpo endireitou-se na linha vertical que a Providência geométrica marcou a todos os que podem parodiar Luís XIV, e dizer: o dinheiro sou eu!

O brasileiro não era abdominoso nem vermelho das bochechas. Era um homem regular, com sentimentos de homem não bestializado pelo ouro.

Achando uma casa pobre, enriqueceu-a, ampliou-a, abriu-lhe os flancos, e deu-lhe as formas arrogantes de um palacete. Um tílburi, uma carruagem, e duas parelhas de éguas hanoverianas harmonizaram o fausto daquela magica metamorfose.

E tudo era feito a bel-prazer de Álvaro. O tio autorizara-o para tudo, menos para casar-se, porque detestava as mulheres.

Ele lá sabia o porquê, e, se eu o souber um dia, conta com um folhetim.

― Muito obrigado; não me despeço do favor.

― Agora vais tu conhecer a astucia da inteligência, que não prescinde, na riqueza, da vingança premeditada no infortúnio.

Álvaro de Sousa não ostentou, como era de esperar, as suas éguas, a sua carruagem, e os seus lacaios de verde e prata. Viveu, dois meses, ao fogão, conversando com o tio, e conquistou-lhe assim um conceito de grave sisudez, e uma plena confiança.

Na primavera, Álvaro apareceu com as flores, e, agradável como elas, granjeou amizades, que não tinha...

― Necessariamente... Olha que novidade me dás!... É melhor dizer... comprou amizades, que não tinha...

― Não posso assim dizer absolutamente. Álvaro, em quanto pobre, era desabridamente orgulhoso, e desconfiado... Um olhar de través irritava-o, e uma palavra equivoca enfurecia-o. Era como os que sofrem reumatismo agudo, que não consentem uma mosca no travesseiro. E a pobreza, seja dito em proveito da patologia, é o reumatismo agudíssimo da humanidade...

Depois de rico, parece que a sua grandeza estava na consciência dela. O dinheiro tornou-o afável, carinhoso, solicito em procurar as relações dos que lhe eram muito inferiores, e até daqueles que repelira na infelicidade. É realmente um fenômeno, mas tu sabes que eu não te minto.

― E as mulheres que faziam?

― As mulheres? Agora vamos nós lá... Isso é uma história muito complicada...

― Quais são as que figuram?

― Vamos por partes. A mulher, que, primeiro, o repeliu foi a Maria da Luz. Esta mulher é casada, e era solteira, mas solteira de trinta e tantos anos, quando Álvaro a requestou. Não sei porque, Maria da Luz, era a preferida no ódio, talvez porque sendo a primeira a repeli-lo, desairou-o, para todas as outras... Não sei.

Álvaro foi com seu tio pagar uma visita ao marido desta mulher, porque a influência do brasileiro em certos homens do poder obrigara aquele a catar-lhe a benevolência para conservar certos proventos, que estavam muito em perigo.

O sobrinho começou a jogar com a influência do tio. Quis ler-lhe o seu programa de vingança, mas achou que era cedo, ou imoral. Calou-se e esperou.

Na visita, que fizeram, Maria da Luz veio à sala, e quis sustentar a dignidade matrimonial, com os artifícios de uma etiqueta safada. Álvaro ria-se por dentro, mas fingia-se parvo por fora. Dava-se uns ares de esquecido, e apertava a mão da sua vítima com a cordialidade de um bom homem. E Maria da Luz espantou-se.

Passaram-se alguns meses. Álvaro, que participava da influencia do tio nos destinos da pátria, reconcentrou toda a sua energia em realizar desgraçadamente os terrores do marido de Maria da Luz. Quando menos se esperava, este homem é demitido, e obrigado pela fazenda a um saldo de contas que o empobrecia. O brasileiro, que neste tempo já era visconde de Sousa, quis salvá-lo, mas encontrou em seu sobrinho um violento acusador das imoralidades daquele mau funcionário, cuja desonra refletia na face de quem o protegesse. As instancias redobradas encontraram frio o visconde, que, por fim, declarou que não intervinha em certos negócios que delegara em seu sobrinho, mais conhecedor das conveniências do país, e da moralidade dos funcionários. Com este fragmento de artigo do fundo, foi despedido o marido da Luz, cujo decair para o abismo de miséria era rápido como a facilidade com que subira.

Maria da Luz compreendeu a vingança, e achou-a vil.

― Realmente era...

― Mas não há vinganças nobres, creio eu. A mulher, que eu princípio a chamar pobre, fechara os seus salões, e não esperou que os alheios se lhe fechassem. A tristeza sentara-se nos sofás daquelas salas desertas, onde viria brevemente sentar-se o escrivão da penhora. A desgraça, ainda assim, não lhe aniquilava a soberba. Julgava ela que, humilhando-se a Álvaro, encontraria uma proteção, mas também uma ignominia. O marido, que caíra primeiro na sua miséria, perdeu, primeiro, a dignidade. Excitou-a para que escrevesse a Álvaro, e encontrou-a sempre negativa.

E Álvaro respirava com sofreguidão um momento que devia chegar.

Ao mesmo tempo, desenvolvia-se o plano de outra vingança. Teresa da Cruz era a segunda vítima de Álvaro. Esta não podia ser ferida nos interesses materiais. Era rica das suas propriedades. Era solteira, e amava profundamente um homem casado.

Este homem era delirantemente amado por sua mulher, e prezava-a, senão posso dizer que a adorava. Teresa da Cruz fascinava-lhe a cabeça daquele amor-apetite que Stendhal judiciosamente distingue do amor-paixão. Mas Teresa da Cruz detestava a virtuosa esposa do seu amante, com toda a raiva de um ciúme reconcentrado.

E Álvaro sabia-o.

Era-lhe necessário quebrar aquelas ligações com estrondo e desonra para Teresa da Cruz.

O que ele fez é uma ignominia, é, porém uma vingança que medrara em fel durante três anos de torturas sufocadas.

Álvaro obteve uma carta da mulher do amante de Teresa da Cruz, escrita a uma sua amiga.

O dinheiro proporcionou-lhe um falsificador de letra, perfeito na sua perversa habilidade.

Mandou-lhe escrever algumas cartas amorosas pelo molde daquela letra. E não deixou uma ligeira dúvida sobre o gênero de relações que a prendiam a um homem, que se não nomeava.

Estas cartas enviadas a Teresa da Cruz, foram incluídas numa anônima, que dizia assim:

 “Minha querida amiga,

Sei que detestas Miquelina, e que procuras perdê-la no conceito do marido, para conquistares plenamente uma alma digna de ti. Queres castigar o orgulho dessa hipócrita que lamenta a nossa prostituição? Aí tens essas cartas, que eu pude obter de um amante, que a desprezou por mim. Tira as teias de aranha dos olhos desse piegas, e faz-lhe ver que sua mulher não é melhor que tu: porque tu és livre, e ela é casada. Saberás o meu nome, no primeiro baile onde nos reunirmos.

Tua amiga d’alma.”

D. Teresa, recebendo estes cartas, sentiu uma alegria infernal. Daria por elas a reputação de honrada, se a tivesse.

Por fatalidade, o amante, na noite daquele dia tratou-a com indiferença. A orgulhosa, enraivecida de um tédio que não podia suportar, esforçou-se por chamar a conversação a respeito de mulheres casadas, e avançou a proposição de que não havia uma na primeira roda, que não fosse adúltera. O amante protestou colericamente contra o absoluto da proposição. Defendeu sua mulher com ares de Colatino, e exprobrou acremente a maledicência da insolente.

A indignação ferveu: trocaram-se epítetos ultrajantes. D. Teresa foi uma eloquente regateira, e o seu apaixonado repetiu as frases mais peculiares da tarimba. Por fim, D. Teresa, chegado o momento dramático, apresentou-lhe as supostas cartas da esposa.

O homem abriu-as com frenesi: reconheceu a letra e saiu como um vexado pelo demônio.

D. Teresa da Cruz, sentiu, pela primeira vez, um momento de completa felicidade em sua vida!...

― E depois?

***

― Depois, o furioso entrou na câmara de sua mulher, e encontro-a velando o sono de um filhinho, que tinha no berço. Perguntou-lhe o marido o que ela fazia a pé à uma hora da noite. Miquelina respondeu que o esperava para lhe servir a ceia, por isso que as criadas, fatigadas de trabalho, não podiam esperar que seu amo se recolhesse, alta noite, para repousarem.

O marido recebeu com um sorriso feroz esta resposta digna de uma senhora virtuosa, e sentou-se junto dela. Tocado da faísca elétrica de tirano de melodrama, enturvou os olhos, franziu a testa, arrancou a voz dos subterrâneos do pulmão, e falou assim, com uma carta aberta: “Conhece esta letra, senhora?” ― É minha, penso eu― respondeu ela com prontidão. ― “Já sabe naturalmente que carta é esta.” ― Não sei... será escrita à Antoninha? ou à prima Ângela? eu não escrevo a mais ninguém. ― “A mais ninguém, infame!... a senhora não escreve a mais ninguém?” ― Juro que não, juro que não... deixa-me ver essa carta, Luís, deixa-me vê-la, eu to peço pela boa sorte da nossa filhinha. ― “Veja.”

Miquelina leu estas duas linhas da carta: Dois dias é uma ausência insuportável!... Vem, meu anjo, faz que a minha vida tenha algumas flores...

Não continuou. Prorrompeu em palavras inarticuladas. Eram os gritos da desesperação! A surpresa transtornara-lhe o espírito, até converter-lhe o dom da palavra em alarido selvagem. Parecia doida. O próprio marido retirou aterrado diante daquela angústia sublime. Houve em casa um motim, um tropel de criados, que se olhavam estupidamente. Miquelina, exausta de forças, e convencida da realidade daquela infame alusão, desmaiou. Seu marido tateou-lhe o pulso e o coração. Reconheceu que havia ali uma dor legítima. Ficou estupidamente perplexo, e fazia dó nesta dúvida aflitiva. Mas a inocência, filha da justiça de Deus, devia triunfar.

Miquelina foi logo entregue aos cuidados da medicina. Julgaram-na subindo a gradação de uma demência, e Luís de Abreu aterrou-se seriamente.

Às dez horas do dia seguinte, Luís de Abreu recebia a seguinte carta: ― “Deves possuir quatro cartas, que te foram dadas por Teresa da Cruz. São quatro documentos inqualificáveis da infâmia dessa mulher. Tua virtuosa senhora escrevera uma carta a sua prima Ângela. Teresa da Cruz pode obter essa carta, de que se serviu para fazer imitar a letra da que ela chama sua rival. Remeto a carta de que ela se serviu. Tua senhora é inocente como os anjos. Pede-lhe perdão, se lhe já lançaste em rosto a calunia forjada pela ignóbil mulher a que vives associado. Se apesar de tudo, tiveres a impudência de continuar relações com Teresa da Cruz, hei de eu, com os teus amigos, apregoar a baixeza do teu caráter para engrandecer a nobreza de tua deplorável esposa.

Um teu amigo.”

Luís de Abreu entrou na câmara de sua mulher. Estavam com ela dois médicos e duas criadas. Miquelina estremeceu ao vê-lo. Mal sabia ela que esse homem ia ajoelhar-se na sua presença! Eram tocantes as lágrimas que ele chorava, ajoelhado, balbuciando palavras ininteligíveis. Miquelina ergueu a face para testemunhar aquela nova surpresa. Os circunstantes aquinhoavam do entusiasmo daquela cena, sem a compreenderem.

“Peço perdão a minha virtuosa mulher! (exclamou ele) perdão de uma afronta, de uma calunia, que a reduziu a esta situação... Na presença de todo o mundo eu quisera que ela me perdoasse...” ― Sim, sim, ― bradou ela com entusiasmo febril― eu perdoo-te de toda a minha alma, Luís, de todo o meu coração, meu esposo querido!...

Luís de Abreu ergueu-se, chorou sobre a mão que beijava, e foi feliz, verdadeiramente feliz, naquela hora solene da sua vida.

Foram muito sensíveis os progressos nas melhoras de Miquelina.

Na tarde desse dia, Abreu, com o mais carinhoso bilhete, pediu uma entrevista, à meia-noite, a Teresa da Cruz. Foi-lhe concedida.

Ao dar da meia-noite estava Luís de Abreu encostado à porta que devia ser-lhe aberta por Teresa da Cruz. Abriu-se a porta. Abreu tomou aquela mulher pelos cabelos, arrastou-a para o meio da rua, e, sem dizer-lhe um monossílabo, encheu-lhe o corpo dos vergões de um chicote. Teresa suportara as primeiras chicotadas com o silêncio da vergonha; mas quando a dor física dominou a moral, gritou. Abreu retirou a passo rápido. Teresa fugia, quando um segundo homem lhe lançou a mão. Ela reconheceu-o, e pediu que a deixasse. “Não, minha senhora, ― replicou o seu conhecido ― eu não posso consentir que vossa excelência seja assim desfeiteada na rua como uma mulher de alcouce...” ― Deixe-me, deixe-me... por piedade, Sr. Álvaro de Sousa!

E debatia-se entre as mãos de Álvaro como atacada de gota coral.

Aproximou-se a patrulha. Lançou mão de ambos, e perguntou a D. Teresa se aquele homem a insultara. D. Teresa respondeu que não, que ninguém a insultara. Álvaro, que nem zombando mentia, desmentiu a sua velha amiga, dizendo que ele a vira chicoteada cruelmente por um homem, que fugira; e que o mais que a tal respeito podia dizer era que esta senhora morava naquela casa, era uma respeitável fidalga, e chamava-se D. Teresa da Cruz. A patrulha não prescindiu destas informações ratificadas por sua excelência. Perguntou-lhe o nome do agressor, e ela respondeu que o não dizia.

Imagina, meu amigo folhetinista, a cólica despedaçadora em que a pobre mulher se viu! A patrulha não queria largá-la; mas Álvaro de Sousa capitulou por uma libra com as imperiosas exigências da guarda municipal, e conseguiu a liberdade da pobre mulher.

E, ao despedir-se de D. Teresa, fê-la parar um momento, para dizer-lhe com a mais fleumática placidez: “Minha querida senhora! Eu comprei com uma libra a satisfação de pagar a vossa excelência a menor parte de um grande serviço que lhe devo... Eu não pude esquecer-me nunca de que vossa excelência com algumas amigas suas, cumpriram uma novena a Santo Anastácio, para que o servinho de Deus alcançasse curar-me da hidrofobia do amor, que me atacou... Tenha vossa excelência uma noite feliz.”

E retirou-se. Teresa da Cruz não respondeu uma palavra.

Álvaro de Sousa estava vingado.

― Tens mentido com a mais soberana presença de espírito! ― atalhei eu.

― Não minto, juro-te que não minto...

Estás muito em ocasião de verificar estes fatos... Deseja conseguir a verdade, que hás de consegui-la.

E eu acreditei-o; e amanhã acreditarei também que qualquer destemido despejou um bacamarte nos intestinos do seu anjo...

― O rigor da cronologia ― prosseguiu o implacável noticiador ― exige que eu te conte agora a vingança de Maria da Luz.

A hora da miséria extrema tinha soado. Os bens de [128]raiz confiscou-os a fazenda: os moveis estava designado o dia de leilão em que deviam ser vendidos.

O marido de Maria da Luz, que por nome não perca, soubera que sua mulher ridiculizara as pretensões de Álvaro de Sousa naqueles dias de vergonhosa pobreza. Bem conhecia ele a indignidade a que tentava forçar sua mulher, instigando-a a que se valesse do préstimo de um homem que tinha fortes razões de aborrecê-la. Todavia, Álvaro gozava de um tal conceito de nobreza de coração, e sensibilidade d’alma que qualquer marido, mais escrupuloso ainda, não duvidaria instar, na hora crítica de uma penhora, pela humildade da sua suposta Lucrécia.

Maria da Luz, por fim, conveio na péssima situação em que se achavam os negócios de seu marido. A fome avizinhava-se, e a desonra é menos negra que a fome, segundo a opinião de alguns moralistas entendidos nestas cores.

Álvaro de Sousa recebeu uma carta de Maria da Luz, em que lhe era pedido o empréstimo de doze mil cruzados, pagáveis em doze anos.

O cavalheiro respondeu que a obrigação onde eram estipulados doze anos seria reformada pelo prazo de duas horas...

Maria da Luz compreendeu-o. O primeiro abalo, que sentiu no coração, foi a raiva: o segundo foi a vergonha: o terceiro foi a negociação com as condições do título reformado, conforme a vontade do credor.

E respondeu afirmativamente, com a sagrada condição de um segredo inviolável para seu marido.

E Álvaro de Sousa enviou doze mil cruzados ao marido de Maria da Luz, com esta carta:

“Meu caro senhor,

Conforme à negociação que acabo de fazer com sua senhora, remeto doze mil cruzados. Da inclusa carta da excelentíssima senhora D. Maria da Luz, verá vossa senhoria que este contrato é bilateral, e a parte que eu tenho nele em vantagem minha é a renúncia que a dita senhora me faz de uma propriedade que eu não sei se está hipotecada a vossa senhoria Suposto me devessem ter sido dados estes esclarecimentos antes da remessa do dinheiro, eu não tenho dúvida em sujeitar-me a qualquer outra transação que possamos ambos amigavelmente fazer, visto que, de hora em diante, nos devemos ambos considerar com mais ou menos jus à mesma propriedade. E, como eu tenha resolvido cedê-la em benefício de meu lacaio, vossa senhoria não terá dúvida em considerá-lo com os direitos que eu possuía.

De vossa senhoria atento venerador
Álvaro de Sousa.”

― E depois? ― interrompi com ansiedade.

― Depois....... tu vais dizer que eu te minto!...

― Não digo... palavra de honra!

― Depois, o codilhado foi Álvaro de Sousa, porque o marido da Maria da Luz empregou convenientemente os doze mil cruzados e vive perfeitamente com sua mulher.

― Mas Álvaro de Sousa? nunca mais se importou com ela?

― Nunca mais. A consciência diz-lhe que está vingado.

― E das outras?

― Das outras... vingou-se sem ruído... Tomou delas uma vingança que não pode ser romantizada por ser muito simples.

O meu amigo viu passar uma mulher, e foi atrás dela.

Eu escrevi tudo isto com as reminiscências vivíssimas do diálogo.

Querem saber onde tudo isto aconteceu?

Agora é que vossas excelências vão ficar surpreendidas...

Foi em Pequim!

Salvei a moral pública!

Cante-se o hino!

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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