2/05/2020

Morrer por capricho (Conto), de Camilo Castelo Branco



MORRER POR CAPRICHO

Os meus amigos, decerto, não sabem o que é caçar coelhos na neve?

Não admira.

Imaginem-se em qualquer aldeia, nas vizinhanças do Marão. Olhem em redor de si, e contemplem o quadro que os viajantes na Suíça lhes descrevem todos os dias, suposto que nunca saíssem da sua terra.

A primeira impressão que recebem é a do assombro. Léguas em roda, nem na terra nem no céu, se descobre uma crista de rochedo, a franja de uma árvore, a dobra de uma nuvem, que não seja branca, alvíssima, desde um horizonte a outro horizonte.

E, depois, há aí em toda essa natureza amortalhada um silêncio fúnebre. Não cantam as aves, não balam os cordeiros, não silva o búzio de pegureiro, não soam nas quebradas as campainhas da arreata de machos.

Se ouvis um rugido assobiado ao qual respondem outros, não vos afasteis para longe da casa de onde presenciais, com o coração confrangido, esta cena. É uma alcateia de lobos, que descem famintos da serra, e serão capazes de vos irem buscar à cozinha, onde naturalmente tiritais de frio, sentados ao pé do toro de carvalho.

Faço-vos esta recomendação porque sois uns homens afeminados, que nunca saístes dos salões, dos botequins, dos teatros, e das praças. Aposto que se désseis de face com um lobo, de garras arqueadas, e fauces inflamadas, antes que o lobo vos desse o cordial abraço da fome, já vós tínheis perdida a sensibilidade, e consciência da vida, e até o direito que todo o homem tem de matar não só o seu semelhante, mas até um lobo, em justa defesa!

Se eu pudesse contar com o vosso ânimo, aconselhar-vos-ia, que em uma dessas manhãs de neve, com meio côvado de altura nos terrenos chãos, tomásseis um cajado, e, com duas finas cadelas de coelho, fosseis dar na serra um passeio dalgumas horas.

O pior que podia suceder-vos era o desvio do caminho, que só com muita prática se acerta, e, quando mal vos precatásseis, resvalar num abismo de neve, onde nem as orelhas de fora dissessem ao passageiro que um moço, a todos os respeitos excelente, fora ali absorvido por um sorvete dos que a natureza oferece aos amantes de refrescos, com menos economia que o Guichard.

Afora este inconveniente, ainda há o dos lobos, que muitas vezes tomam conta das nossas cadelas, devoram-nas com uma perfeição e rapidez fabulosas, e, quando Deus quer, fazem dos nossos corpos um suplemento nutritivo às nossas cadelas, deixando-nos a alma por muito grande obséquio.

O terceiro percalço, afeto à caça do coelho na neve, aconteceu-me a mim, último dos mortais, em 26 de dezembro de 1844.

É o que tereis a bondade de procurar saber no capítulo seguinte.

***

Fui convidado por alguns amigos a acompanhá-los à serra, porque o sol refrangia-se em cintilas na neve, que parecia desfazer-se em laminas de prata.

Fui muito contente da consideração que se me dava, como caçador, porque, em verdade vos digo, atirei com certeiro olho a perdizes e galinholas. Se nunca matei nenhuma, o que também é verdade, deve-se à péssima pólvora das nossas fabricas. Em compensação, matei muito melro e tordo nas cerdeiras, e consegui matar de noite uma coruja, tarefa que muitos caçadores famosos decerto não fizeram. Eu fui um grande homem antes de escrever folhetins! Deus perdoe a quem me torceu a vocação! Eu podia, a estas horas, ser um hábil corredor de lebres, e assim tornei-me a lebre dos galgos sociais.

Estes galgos sociais, meu leitor, se tu és um deles, permite-me dizer-te que tens o faro muito descaçado, e que eu hei de saltar por cima de ti, quando cuidares que me abocas. Se não és galgo, sensato amigo, aqui rasgo o diploma de tolo, que te concedi, sem te levar direitos de mercê.

Agora, vai entrar a história direitinha até ao fim.

***

Subimos à esplanada da serra. Éramos seis. Dividimo-nos em três grupos, e combinamos em nos darmos sinais com tiros no caso de nos perdermos encobertos pelo nevoeiro, que poderia de improviso esconder-nos os cabeços das serras, únicas balizas que nos serviam de guia.

Assim combinados, cada grupo, com dois cães, seguiu as pegadas dos coelhos impressas de fresco na neve. Eram muitos, e morriam à pancada, porque os pobrezinhos alapados debaixo das urzes, se fugiam, eram logo mordidos pelos cães; se esperavam eram apanhados à mão. Alguns, mais previdentes, tinham emigrado para as fundas colheitas, formadas pelas sinuosidades interiores dos penedos aglomerados. A estes perseguia-os o furão, que eu levava no meu cacifo, desalapava-os, e os cães, farejando as avenidas da colheita, recebiam-os nos dentes, sacudiam-nos com o rancor do instinto, e atiravam-nos mortos aos nossos pés.

Andamos assim uma hora, tão entretidos, tão esquecidos do mundo, que nunca tão distraída hora eu tive na minha vida, a não ser aquelas em que durmo, e sonho que hei de tornar àqueles meus dias de candura, depois de lidar muito com a inocência destas angélicas criaturas, que vestiriam, por inocentes, como Adão e Eva, se a serpente lhes não dissesse que andavam indecentes.

Ao cabo dessa hora, toldou-se o ar, e caiu uma segunda camada de neve.

O meu companheiro quis logo voltar sobre os seus vestígios, porque (dizia ele) daqui a minutos as nossas pegadas estarão cobertas, e não saberemos caminhar para o nascente nem para o poente.

― Eu, por ora, não vou― lhe disse eu.

― Por quê?

― Estou bem aqui. Acho muita poesia neste quadro. Imagino que esta chuva de neve se transforma em chuva de fogo... Este nevoeiro, que rola em ondas aos nossos pés, e sobre a nossa cabeça, afigura-se-me o fumo do grande incêndio no juízo final! Olha... não te parece que o vento espalha já as cinzas de uma grande cidade! Não vês Sodoma lá embaixo vomitando colunas de fumo?...

― Eu não vejo nada... Acho de muito mau gosto as tuas visões... vamos embora...

― Vai tu... e quando encontrares os nossos companheiros, dá um tiro, que eu lá vou ter. Estou bem aqui; não me mudo por coisa nenhuma.

― Até logo.

***

E eu continuei a ver as minhas visões.

Parece-me que, por esses tempos, fui poeta, muito poeta, em elevações d’alma para coisas de imaginação, que não era esta fria imaginação, que tenho hoje.

Absorvido no meu quadro do juízo final, que só uma fantasia abrasada poderia dar-me, transfigurando a neve em fogo, ouvi um tiro, e não fiz caso. Ouvi segundo, e senti um piedoso desdém por aqueles homens, prosa vil, que não tiravam partido do grandioso panorama, que a mão liberal da natureza desenrolava diante de meus olhos absortos.

Não sabeis que o nevoeiro embriaga?

É uma verdade. A cabeça enfraquece; nos ouvidos há um zunido, que vos faz perder o rumo. Sentis uma sensação desagradável, semelhante à do giro penoso em que a indigestão do vinho vos traz a cabeça vertiginosa.

Foi o que eu senti, quando me furtei às minhas contemplações impróprias do tempo e do lugar.

Ergui-me, e não sabia já designar a direção que levara o meu companheiro, nem o ponto onde se deram os tiros. Desfechei a minha clavina, mas a umidade inutilizara a escorva. Os cães, que poderiam ensinar-me o caminho, tinham seguido o meu companheiro. Não desanimei.

Tal direção pareceu-me que deveria ser a melhor, e segui-a. O nevoeiro deixava-me ver apenas o espaço que pisava. Atravessei a lombada da serra, e comecei a descer. Escorreguei muitas vezes nos algares da encosta, e senti a neve pela cintura. Gastei duas horas, três, quatro, descendo, descendo, sem encontrar uma povoação. Conheci que estava perdido. A neve aumentava. A noite aproximava-se, e nem um sintoma de vida! Então, sim; tive medo, e imaginei que a minha sepultura, sem solenidade alguma, deveria encontrá-la brevemente no estômago de algum lobo.

E, de mais a mais, eu tinha fome.

Todos os provimentos, que eu levava na minha rede, eram um pedaço de broa para o meu furão. Reparti-o entre nós. O animalzinho comeu com apetite, e pilhando-se solto, como o seu ofício era desenlapar coelhos, entrou na primeira lura que viu, e fez saltar fora um gato bravo, que espirrava diabolicamente por cima dos tojos coroados de neve.

Nunca me esqueceram os espirros deste gato bravo!

Continuei o meu caminho, sem esperanças de encontrar pousada.

Escureceu.

Encostei-me, desalentado, a um castanheiro, e fiz da minha pobre cabeça uma cabeça acadêmica.

Pensei muito, estabeleci vários raciocínios, que conspiraram em provar-me, que, perto dali, devia existir uma povoação, por isso que os castanheiros, campos, e paredes eram indícios de aldeia próxima. Neste comenos, ouvi um mugido de boi, e em seguida uma sineta, que tocava às “Ave-Marias.”

Aquelas três badaladas ergueram a Deus o meu espírito reconhecido. Orei com a devoção dos dezoito anos. Não vos digo mais nada a este respeito, porque me não entenderíeis. Sois excelentes pessoas para devorar um romance em dez volumes; mas não leríeis, sem abrir três vezes a boca, uma página de sentimentos embalsamados do aroma do céu, que o poeta não deve nunca profanar, misturando-os a frioleiras de uma história, ao alcance de todas as capacidades.

Eu creio que entre vós há entendimentos muito finos, paladares muito apurados no sabor do belo, corações muito brandos para emoções suaves. Creio que sim; mas o melhor é fazer de conta que os não há.

***

Minutos depois, achava-me numa povoação, onde nunca estivera. Encontrei uma velha que castigava um porco, rebelde à invocação de sua ama, com uma roca.

Perguntei-lhe que povo era aquele.

― Alpedrinha ― disse ela.

Ora, Alpedrinha distava duas léguas e meia de minha casa. Era necessário pernoitar ali. Perguntei à dita velha onde morava o pároco. Mostrou-me a casa. Pedi gasalhado ao reverendo, que nesse momento voltava da igreja. Disse-me que subisse. Quis saber quem eu era, e tratou-me delicadamente, quando lhe citei um médico, pessoa de minha família.

O Sr. padre Joaquim era um padre admirável. Tinha maneiras da corte. Vestia com muita limpeza. Falava com prodigiosa correção, e oferecia aos seus hóspedes aguardente e biscoitos, tudo do melhor, e servido em bons cristais e polida salva de prata.

Momentos depois que eu chegara, apeou à porta do meu simpático sacerdote um cavaleiro, ainda moço, muito pálido e magro, com chapéu espanhol, faixa vermelha, e botas d’água.

Era um estudante de Coimbra, que voltava doente para sua casa, e costumava pernoitar em Alpedrinha, com aquela família.

A primeira pergunta do acadêmico foi esta:

― Como está a Sra. D. Amélia?

― O mesmo...― respondeu padre Joaquim.

― E seu mano? Tem vindo a casa?

― Não senhor: desde que foi delegado para***, há três meses, não voltou...

Eu estava ansioso por conhecer a Sra. D. Amélia, porque até ao momento em que o estudante chegou, supunha eu que toda a família do pároco se limitaria a alguma ama, e alguns pequenitos, que, de ordinário, são afilhados do padre. Depois das perguntas do meu ilustre companheiro de hospedagem, fiquei sabendo que naquela casa existia uma Sra. D. Amélia, e um senhor delegado de ***.

Padre Joaquim contou ao acadêmico as minhas aventuras de caçador; disse-lhe que me tinha achado muito fino (referia-se naturalmente à magreza), e fez a apologia dos meus olhos, que, naturalmente, revelavam uma extraordinária esperteza, espiritualizados pelo espírito de vinho, que o sacerdote me injetou nas veias marasmadas pelo frio.

Conversei com o acadêmico. Perguntei-lhe muitas coisas de Coimbra: quantos canelões sofria um calouro; o cálculo aproximado dos puxões de orelhas; a solenidade indecente de certo vaso na cabeça...

O acadêmico respondia-me com muito agrado, e oferecia-se para meu protetor em Coimbra, no ano seguinte, que devia ser o da minha partida.

***

― Sr. Valadares ― disse o padre ao estudante ― minha cunhada ergueu-se da cama para vir cumprimentá-lo...

― É uma grande consideração, que eu lhe não mereço; mas a delicadeza da Sra. D. Amélia é sempre um severo preceito que ela se impõe.

Falou bem.

Nisto, entrou uma senhora, com um ar de tanta nobreza, que me pareceu uma coisa nova. Eu não conhecia assim nenhuma. Era alta, muito magra no rosto, mas muito bela nos olhos, nos lábios, nos cabelos, em tudo se via tanta formosura, tanto donaire, um senhoril tão estreme do vulgo, que eu, criança e poeta, senti-me tão acanhado como o mais boçal dos pastores de cabras daquela freguesia.

― Como passou, Sr. Valadares? ― perguntou ela com voz trêmula, tossindo a cada palavra, e aconchegando da face a gola de veludo da sua capa.

― Sempre doente, minha senhora... Por não poder mais, recolho-me a casa...

― Eu bem lhe disse que não fosse... vossa senhoria teimou, agora já sabe que os conselhos de uma mulher não são sempre pieguices...

― E os de vossa excelência nunca poderão sê-lo... E a Sra. D. Amélia como está?

― Deste modo que vê... Tossindo sempre, sempre mal, sem descanso deste lado, que me parece que já não vive, se não para matar o resto de vida que tenho...

D. Amélia indicava o coração.

― Por que não dá um passeio até Lisboa? ― tornou o acadêmico.

― Isso lhe tenho eu dito todos os dias ― atalhou o padre.

― De que me serve Lisboa?

― São ares pátrios, minha senhora. Talvez o contato do coração com as suas amigas de colégio...

― Eu já não tenho coração para contato com amigas nem inimigas, Sr. Valadares...

― O que vossa excelência tem é uma ardentíssima imaginação, alma de poeta, que só tem a sensibilidade do que é triste, e não sabe tirar recursos da esperança...

― Esperança!... ― murmurou ela com um triste sorriso, e voltando-se para mim, perguntou-me:

― Já sei que este senhor esteve em risco de passar uma noite divertida com os lobos...

― É verdade, minha senhora; mas a Providência encaminhou-me ao paraíso, depois de me ter mostrado o inferno.

― Ora aí tem uma resposta de um moço, que seria pena comerem-no os lobos!...― disse o padre, desafiando um gracioso sorriso de Amélia.

― Há de dizer ao seu parente médico que me salve da sepultura assim como nós esta noite o salvaremos de ser vítima dos lobos ― disse-me ela, apertando afetuosamente a mão de Valadares, em despedida, porque a tosse exasperava-se cada vez mais.

Esta rápida aparição impressionou-me muito. Queria fazer mil perguntas; mas eu não tinha a quem. O padre e o estudante falaram em assuntos, que me não interessavam nada. O que eu queria era a vida, a história, os sofrimentos, a poesia daquela mulher. Eu tinha lido, dias antes, não sei que romance, onde vira uma mulher assim...

Apareceu um tabuleiro com a ceia. O abade fez o prato de D. Amélia. Era uma asa de galinha, que ele mesmo lhe serviu.

Valadares também comeu do púcaro da doente. Eu, com o abade, entramos corajosamente num coelho guisado, cuja retaguarda cortamos com um excelente caldo verde, e lourejantes castanhas assadas com manteiga.

No fim, demos graças a Deus.

O padre, segundo o seu costume, foi sentar-se à cabeceira de sua cunhada. Eu e Valadares entramos num quarto comum.

***

O acadêmico tinha uma fisionomia franca e insinuante. Conversava comigo sem desdenhosa superioridade. Familiarizamo-nos depressa, como dois futuros companheiros de casa em Coimbra.

Eu fui um grande falador, naquela idade, em que pensava menos. O meu recente amigo simpatizou com a minha garrula eloquência, e dava sinais de desenfado, quando naturalmente devera querer dormir, depois de uma fatigante jornada, em dia de neve.

Eu não era rapaz que, por delicadeza, calasse a minha curiosidade a respeito de D. Amélia.

― O senhor faz-me o favor de me dizer uma coisa? ― disse eu.

― Que é? quantas horas são?... são 10... quer dormir?

― Não, senhor: queria saber quem é esta Sra. D. Amélia?

― É cunhada do padre, e casada com um sujeito, delegado em***.

― Isso já eu sabia... pouco mais ou menos.

― Então sabe tanto como eu...

― Mas é daqui desta aldeia esta senhora? Creio que ouvi dizer que era de Lisboa.

― É verdade... nasceu em Lisboa...

― E como veio parar aqui neste matagal? Naturalmente perdeu-se, como eu, na serra, por causa da neve, e veio cá bater, e cá ficou! Pois eu dou-lhe a minha palavra de honra, que apenas vir luzir o buraco, retiro-me sem mais cerimônias deste delicioso covil de cabras.

O meu amigo ria-se. Estava disposto a achar-me graça, e o leitor pode também rir-se, se lhe aprouver.

E acrescentou ao sorriso:

― Parece-lhe impossível que a tal senhora viesse de Lisboa para aqui sem ser impelida por um acaso?

― Decerto... Já não admira que ela tenha tosse de tísica... O que me espanta é ela viver, se cá está desde ontem!... Quando veio ela?

― Há dois anos.

― Então é eterna... ou santa. Hei de dizer que encontrei esta mártir a uma minha tia, que é capaz de jurar que a viu fazer milagres...

― O menino é sarcástico! Se o não visse tão inclinado a rir-se de coisas serias, contava-lhe uma história triste...

― E eu gosto muito de histórias tristes... Verá que me não rio, quando me dizem alguma coisa que me toque o sentimento. A minha família chama-me poeta; os vizinhos chamam-me tolo; não sei bem o que sou; mas o que não sou é insensível... Vê... já não tenho vontade de gracejar... Conte-me agora a história, que eu prometo contar-lhe outra que me fez chorar, porque é uma passagem tão infeliz, que, se eu fizesse novelas, escrevia uma.

― Talvez as escreva no futuro...

― Eu?... Deixe-se disso... O meu mestre de lógica diz que eu sou um alarve, e o de reitoria já me mandou ser aprendiz de alfaiate... Não tenho habilidade nenhuma. O meu gosto é ler os sonetos do abade de Jazente, e as quintilhas do Nicolau Tolentino. Não sei mais nada, nem quero saber... Vamos à história, sim?

― Então aproxime-se de mim, que eu quero falar baixo. Mas, antes de mais nada, promete não contar a ninguém o que vou dizer-lhe?

― Pois é segredo!

― É.

― Prometo...

― Pois aí vai.

***

― Esta senhora viveu em Lisboa até aos dezesseis anos. Hoje o mais que pode ter são vinte e dois.

― Só?! Eu calculava trinta e tantos bons, como diz minha tia, quando quer fazer todas as pessoas mais velhas que ela.

― Pois deixemos lá sua tia, que deve ser, pouco mais ou menos, como todas as tias... Vamos com a nossa história, e depressa, senão adormeço, e o meu curioso amigo perde a ocasião de saber quem é a Sra. D. Amélia...

― Isso de modo nenhum ― atalhei eu com sobressalto ― Prometo não interromper a história.

― Pois bem. O pai desta senhora morreu em Lisboa, e o conselho de família deliberou que a órfã viesse para a província, onde tinha tios, e o seu patrimônio em quintas.

Quando apareceu em***, os rapazes fizeram-lhe montaria, e disputaram a primazia no namoro. D. Amélia não aceitava, nem repelia a corte de nenhum. Tinha o mesmo riso para todos, e falava a todos com a mesma delicadeza.

Havia ali um rapaz que não frequentava a sociedade de Amélia, porque não frequentava sociedade nenhuma. Fora educado em Gênova, viera de lá aos quinze anos, vivera no Porto até aos vinte e cinco, e quando recolheu à província, de onde saíra de três anos, com a sua família que emigrara em 1828, ninguém o conhecia, e ele mesmo não queria conhecer ninguém.

Chamavam-lhe célebre, esquisito, excêntrico, orgulhoso, impostor, e não sei que muitas outras lisonjas do charco de certos espíritos, que não podem sair da pequena esfera de lama, que a natureza lhes deu por homenagem.

D. Amélia viu este rapaz num cemitério: leu um epitáfio que ele mandara abrir na sepultura de seu pai que o deixara em Gênova no colégio, e viera morrer em 1836 à pátria: cumprimentou-o de passagem, respondendo a um distinto cortejo do melancólico poeta; e parece que, desde esse encontro, Amélia transfigurou-se para todos os homens, deu que pensar à sua família, queria todos os dias visitar o cemitério, e retirava quase sempre mais triste, porque muito raras vezes encontrou ali o invisível extravagante da opinião pública.

― Como se chamava ele? Eu conheço alguns rapazes de*** que foram meus condiscípulos em lógica.

― Não é nenhum dos seus condiscípulos. Já lhe disse que este sujeito veio do Porto para a província, com vinte e tantos anos pelo menos. O seu apelido é Corte-Real, conhece?

― Nada, não conheço; mas ouço falar todos os dias nesse rapaz.

― Que ouve dizer?

― Que está em Lisboa, doido, no hospital...

― O senhor afiança-me isso? Há que tempo endoideceu?

― Há dois ou três meses...

― Quem lho disse?

― Um médico, meu parente, que o mandou conduzir para a enfermaria dos doidos.

O acadêmico fez-me sinal de silêncio, e mandou-me ouvir.

― Não ouve? ― disse ele.

― Ouço... é alguém que soluça...

― É ela...

― D. Amélia?

― Sim... Ouviu a nossa conversa... Tem ouvidos de tísica...

― É admirável!... Pois o quarto dela não é longe deste?

― Passam-se três quartos, mas os repartimentos são de tabique, e eu não me lembrei de tal... Calemo-nos...

― E a história?... Fale mais baixo, que ela não ouvirá mais nada...

― Agora, é impossível... Aqueles soluços transtornaram-me a cabeça... Deite-se, e amanhã falaremos antes de nos despedirmos...

***


À cabeceira do meu leito, estava um volume das Viagens de Ciro, e o quinto volume de uma Miscelânea curiosa e proveitosa, onde encontrei uma longa poesia a D. Inês de Castro, que me fez dormir até às 8 horas da manhã.

O meu companheiro, quando abri os olhos, estava sentado na cama, e escrevendo nas páginas de uma carteira.

― O senhor está a fazer versos? ― perguntei eu.

― Adivinhou.

― Faz favor de recitar, se não é segredo!


― Recito: olhe lá se entende:

Eras um anjo? Se o eras
Que torvo facho do inferno
Te queimou as asas? Diz:
Porque, tão cedo, infeliz
Cais no abismo eterno!... ETERNO!

― Entendeu?

― Não, senhor.

― Veja se entende agora:

Eras pura, quando lágrimas
Tu me deste, e me pediste...
Tu choraste aqui, choravas...
Mas por quê? profetizavas
Este abismo em que caíste?

― Entendeu?

― Nada... Ora diga-me os versos tem alguma coisa com a história que ficou suspensa?

― Não, senhor; pertencem a outra, que nasceu aqui nesta casa, e que é toda minha...

― Esta casa parece-me uma casa de novela... Estou a ver se aqui arranjo também alguma história para contar a minha tia, que está rezando o quadragésimo responso a Santo Antônio por minha causa, se é que já me não rezou por alma... Então o senhor não conta ao menos a primeira história completa?

― Hei de contar.

― Quando? Eu vou-me embora logo.

― Não vai. Já aqui esteve o padre, e disse que não sairíamos daqui hoje, porque aumentou de noite a neve.

― Deixá-la; mas a minha família, se eu não apareço, nem dou parte de mim, julga-me morto, e é capaz de me fazer ofício de corpo ausente.

― Não se assuste, que o padre ontem à noite mesmo fez partir para a sua aldeia um criado com a certeza de que o senhor ficava vivo, e mais o seu furão.

― A propósito, sabe se já dariam de almoçar ao meu furão.

― É natural que sim... Aí vem o Sr. abade; perguntemos-lhe... Sr. padre Joaquim, pergunta ali o nosso amigo se o furão já almoçou.

― Comeu quatro ovos, e está agora brincando com minha cunhada, que é muito amiga de bichos.

― E como passou ela? ― perguntou Valadares.

― Penso que melhor... Ergueu-se muito cedo: a criada disse que a vira chorar toda a noite; mas agora fui, com grande espanto meu, encontrá-la com o furão no regaço, a sorrir-se como quem é muito criança e muito feliz... Sabe o senhor que...

Não sei bem o que o padre disse ao ouvido do estudante. Desconfio, pela resposta, que o resto do segredo era o receio de que ela endoidecesse.

Tudo isto, apurava-me o desejo de saber o que era a demência de Corte-Real, e a tísica de Amélia.

***

Almoçamos.

D. Amélia esteve conosco alguns minutos, ouvindo não sei que palavras a meia voz, do meu amigo, ininteligíveis para mim, suposto que aí se falasse duas ou três vezes numa D. Miquelina. Tudo mistérios!

O padre foi dizer missa. D. Amélia foi com ele. Fiquei com Valadares, tremendo de frio, ao pé de uma bacia de brasas. O atencioso levita teve a delicadeza de nos não convidar a participarmos da sua missa, que naquele dia, com tal frio, faria hereges espíritos devotos.

― Aí vai agora a continuação da história ― disse o acadêmico, engolindo o fumo de quatro cigarros sucessivos ― A família desta senhora é muito realista, muito fanática, arde em ódio contra os ímpios, que são todos, menos os sectários de D. Miguel, e alguns, senão todos, de D. Sebastião. A família de Corte-Real é ultraliberal, odeia os realistas com aquele ódio saturado na emigração, e não admite honra, inteligência, nem merecimento em homem que não fosse capaz de cortar as orelhas a um miguelista, se ele estiver por isso. Já vê que as duas famílias detestam-se. De parte a parte no momento em que as relações de Amélia com Corte-Real fossem percebidas, imagine o meu amigo que não iria!

― Então eles namoravam-se?

― Pois eu não lhe disse já que sim?

― Não, senhor: disse-me que Amélia passeava repetidas vezes no cemitério para vê-lo, mas que não o via muitas vezes. Eu queria saber como se encontraram... porque... desejo saber como é que a gente pode sair de um encontro desses!... Não há muito que me vi entalado com um desses encontros... Eu tinha o recado na ponta da língua, e, quando vi a mocetona, que não era coisa de atarantar um estudante de lógica, pegou-se-me a língua ao céu da boca, como diz não sei que poeta... vox faucibus hoesit... Que lhe disse ele quando a viu?

― Isso é que eu não sei, porque não ouvi. O que sei é que se falavam por cartas, e entretiveram assim relações seis meses. Por fim, descobre-se o namoro. Corte-Real falava da rua para a janela com Amélia: um tio dela é avisado; espera-o no pátio, com a porta fechada, e, quando ele principia a dizer belas coisas, o tal bruto abre a porta, e descarrega-lhe quatro bordoadas, que o puseram fora do combate. No dia seguinte, mandou-lhe a casa a capa, o chapéu, e uma clavina, que fora três vezes batida à queima roupa do tal varredor de feiras.

― E depois?

― D. Amélia, duas horas depois, foi mandada entrar numa liteira, e conduzida a casa deste padre.

― Para quê?

― Para ninguém saber o seu destino, enquanto vinha de Lisboa, onde ela tinha o conselho de família, uma ordem para ser recolhida a um convento.

― E Corte-Real que fez?

― Curou as feridas da cabeça, e indagou o destino de Amélia. Como o não soube, caiu numa melancolia profunda, teve acessos de loucura, e, pelo que o senhor me disse, está hoje no hospital de Rilhafoles.

― E Amélia casou-se?

― Pois no casamento é que está o interessante da história.

Quinze dias depois da sua vinda para aqui, chegou de Coimbra o irmão do padre. Parece que sentiu por Amélia o que era muito natural que sentisse. Amou-a, mas não ousou declarar-se, porque sabia os precedentes, que a trouxeram a esta casa. Ela, por si, tratava-o com a fria delicadeza da indiferença, até ao momento, em que recebeu de uma sua tia a notícia de que viera ordem do conselho de família para ser conduzida a Lisboa, e lá recolhida em um convento.

Lida a carta, Amélia ofereceu-se como esposa do bacharel. O imprudente sem mais nem menos, aceitou a oferta. Alcançou do arcebispo dispensa de banhos e consentimento do tutor: o irmão, sem consultar a filosofia, a religião, e a consciência, casou-os. Na tarde do dia das bodas, chegou a liteira que devia levar a órfã a Lisboa. Amélia apresentou-se a seu tio com um desdenhoso sorriso, e disse: “Não tenho dúvida nenhuma em ir para Lisboa, e para um convento, mas é necessário que meu marido vá comigo.”

― Seu marido! ― exclamou o tio estupefato.

***

― Dias depois, esta vítima dos seus caprichos, caiu doente. O médico capitulou-lhe a enfermidade de tísica no primeiro grau. O marido arrependeu-se muito cedo. Ela não se arrependeu, porque sabia que dava um passo que devia matá-la. E, com efeito, está ali... está morta...

...Aí vem ela e o padre... Falemos de outra coisa...

***

CONCLUSÃO

Um ano depois, em Coimbra, dizia-me Valadares:

― Olha que tive carta do abade de Alpedrinha. D. Amélia morreu, e as suas últimas palavras ao marido foram estas: MORRO POR CAPRICHO.

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Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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