2/08/2020

A vocação de romancista em Aluísio Azevedo (Ensaio)



A vocação de romancista em Aluísio Azevedo

Se São Luís do Maranhão era um meio acanhado, o Rio de Janeiro de 1876 seria apenas um palco maior para o jovem que sonhava entusiasticamente com Roma e a arte de Miguel Ângelo.

A permanência de dois anos Metrópole — dois anos de lutas árduas e atividade constante na imprensa como caricaturista — haveria de ser bastante útil ao maranhense aventureiro, ensinando-o a melhor conhecer os homens e o mundo e vindo a contribuir, decisivamente, para a formação do romancista. Até então, Aluísio Belo Gonçalves de Azevedo ignorava-se a si próprio. No Rio, para onde viera com o desejo de aperfeiçoar-se no desenho, tendo, na verdade, ao chegar, obtido matrícula na Academia de Belas Artes, inda tentou um último esforço para conseguir Roma, solicitando, nesse sentido, à Assembleia Maranhense, uma pensão — que lha recusaram...

O sonho desfeito das artes plásticas desanuviou o espírito atribulado do rapaz que se fizera ilustrador de revista para ganhar o pão, agora em contato com a realidade, renunciando definitivamente aos seus ideais de estética. Assim, em 1878, com a morte do pai — o cônsul de Portugal residente no Maranhão, Davi Gonçalves de Azevedo — regressando à província natal, Aluísio ali iria praticar o jornalismo colaborando na "Pacotilha", e depois no "O Pensador", despertando com a irreverência da pena o bucolismo da terra para, no ano seguinte, descobrir o seu caminho com a publicação de "Uma Lágrima de Mulher", o primeiro romance.

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Andou muito acertadamente Aluísio quando apôs ao título "Uma Lágrima de Mulher", a advertência “Romance Original”, que acima figura entre aspas, porque, na verdade, não há na história da literatura brasileira romance mais original do que este. É, por isto, ao nosso ver, de um grande valor este livro para a cronologia literária no Brasil, pois bem representa uma época mostrando-nos a que exageros chegou o romantismo neste país. A esse tempo, aliás, o "bacilo byroniano" para aqui já se transportara fazendo, às mancheias, poetas e tuberculosos, de tal forma que se vivia o mais artificialmente possível com os pés no Brasil e a alma perdida em êxtases nos templos de beleza do Velho Mundo...

Não admira, por conseguinte, o fato de o maranhense escrever aquela história falsa e piegas, escolhendo para cenário do romance uma das ilhas Lipari, entre gente estranha.

O livro é medíocre, horrível como romance, sem interesse e cheio da sonoridade de frases. Trata-se, evidentemente, de trabalho feito à base de leituras lamartinescas. Estavam, então, muito em voga, as novelas dessa espécie e, por certo, Aluísio se inspirou numa delas. Há quem fale, também, numa novela de Bernardin Saint-Pierre. (Em "O Mulato", o livro seguinte, escrito ainda no Maranhão, traçando o perfil romântico de Ana Rosa, o autor nos fala da "Graziela", de Lamartine, prova de que ele, Aluísio, se entregara a toda espécie de leituras desordenadas na biblioteca do pai). Embora fraquíssimo e com todos os seus defeitos de técnica, este pequeno trabalho de Aluísio, contudo, não se cogitando do valor que representa para o estudo da iniciação literária do escritor, nos revela o cuidado com que foi escrito e nos aponta mesmo algumas qualidades do romancista, que já se sobressai aqui e acolá, um trecho mais vivo de descrição da paisagem, muito embora seja essa paisagem exótica ou ilusória. O livreco, em si, é artificial e o enredo sentimental é banalíssimo. A ação tem início em Lipari, onde mora o pescador Maffei come a filha moça e uma velha criada. O pescador, levado por desejos de enriquecer abandona a ilha; a segunda parte da narrativa decorre em Nápoles, onde agora Maffei reside — novo-rico, instalado à Rua de Toledo, numa mansão em que “...das janelas de frente devassava-se a Chiaja, Villa Realle, e lados da Capo di Monte...

O final é o que há de mais estúpido: “o lazaroni” Miguel Rizio, outrora apaixonado lírico de Lipari, surge um dia, diante da amada, que o desilude adiantando-lhe ter de casar-se, breve, com outro, segundo a vontade paterna; Miguel rumina os seus recalques e, vendo no velho pai da jovem um empecilho aos seus desejos, assassina-o uma noite, ficando o crime encoberto, porque acreditam num ataque apoplético que surpreendesse o ancião no jardim. Passados dias, Miguel apresenta-se esperançoso à moça, para sofrer cruel decepção: esta não mais o quer, recusando-lhe todas as propostas de amor. O infeliz tomba, então, dramaticamente morto e Rosalina, penalizada, chora-lhe sobre o corpo "uma lágrima de mulher".

O livrinho, embora estivesse muito ao gosto da época, quando Manuel Macedo e Alencar eram lidos religiosamente nas salas de jantar passou despercebido, ou quase despercebido, logrando, apenas, chamar um pouco de atenção na cidade pacata para o rapaz que tivera a pretensão de escrever um livro...

Hoje, não se dá a importância ao pequeno volume. Pouco vale, é exato, mas muito significa na história do romancista e para o estudo da literatura porque — se por um lado assinala a posição do escritor entre duas tendências literárias — por outro é um excelente exemplo dos desmandos românticos que levavam um romancista a forjar uma história falsa em um mundo igualmente falso, alheando-se por completo do meio que o cercava.

Em última hipótese, "Uma Lágrima de Mulher" poderia justificar alguns aplausos merecidos ao rapazelho de e dois anos, que, com surpresa geral, publicara um livro, mas nunca denunciaria o romancista de força que lançará, pouco depois, o "O Mulato", deixando toda São Luís escandalizada e boquiaberta com audácia do filho de D. Emília Amália.

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O romantismo declina.

A literatura russa se derrama pela Europa Ocidental, exercendo considerável influência sobre os escritores franceses, principalmente Tolstoi e Ivan Turgueniev, este mais do quo aquele, porque — cosmopolita — está quase sempre em Paris, e só de raro em raro se afasta para ligeira visita à terra natal.

O romance russo é diferente, tanto no fundo como na forma. Não se baseia exclusivamente na ficção, mas procura retratar o mundo exterior sob um aspecto simples e real, sugerindo apenas, para depois esboçar alguma coisa. Desse esboço nasce o confronto superficial de duas épocas que se distanciam pela mentalidade e, por fim, já é o apanhado flagrante de duas gerações em conflito, são os seus choques, os seus rancores, as suas lutas, o seu desequilíbrio que a situa em campos opostos.

Em França, novas doutrinas literárias se debatem. Zola fala em naturalismo e Flaubert não concebe "a forma sem o fundo, nem o fundo sem a forma". E se, em alguns, despertam admiração as frases sonoras e cheias de arrebatamento de Chateaubriand, outros acham-nas exageradas e ocas.

No Brasil, naturalmente, essas ideias têm que repercutir cedo ou tarde. A Corte se corresponde diretamente com a Europa, e de Portugal chegam livros, revistas e jornais. Os autores portugueses, mormente Alexandre Herculano e Camilo, causam muita impressão sobre os nossos, revivescência daquela literatura compilada que aqui se fizera.

O romantismo, porém, marcaria a emancipação literária, lançando, talvez, as primeiras raízes para a independência política. A segunda geração romântica floresce e Alencar, ao contato do indianismo de Chateaubriand, empreende nestas terras obra eminentemente americanista. O Império passa por sensíveis transformações e a literatura atravessa também um período de transição.

Depois de Macedo e Alencar, o romance brasileiro oscila entre duas tendências, incerto, impreciso, ainda, nos seus fins, mas já se impregnando vagamente do sentimento da terra e fugindo à ênfase, despindo-se da embriaguez da metáfora que conduz aos delírios da imaginação.

Com Bernardo Guimarães, evocando suas reminiscências de província desenvolvidas no meio rude dos campos onde se movem negros, vaqueiros, matutos é todo o conglomerado humano que agrupa nas fazendas; Franklin Távora, utilizando o mesmo material do primeiro com algumas tentativas felizes de fixar tipos regionais, e, por último, Taunay, fazendo romance harmonioso e sóbrio, quase se aproximando da objetividade — o romance nacional, na verdade, ganha tal expressão, vestindo fisionomia própria e se preocupando, agora, com a terra e o homem. Franklin Távora, nesse ponto, revela mais do que qualquer outro o interesse pelo homem, descrevendo-o humilhado e pequeno na grandiosidade do meio que o cerca. "O Cabeleira", "Lourenço" e "O Matuto" não são três grandes romances, mas nos parecem três livros realmente notáveis que dão ao autor um lugar à parte na literatura brasileira, observando-se a época em que foram escritos e os propósitos verdadeiramente nacionalistas que os inspiraram.

Franklin Távora, com estes três livros, abre caminho definitivamente a outros que virão mais tarde, numa geração de mentalidade diferente da sua, inquieta e revoltada.

Há, por enquanto, um meio-naturalismo, de cambiantes mais vivas, sem os arroubos da poesia de um Alencar ante simples trecho de paisagem ou o langor dos romances admiravelmente ingênuos de Manuel de Macedo, que fazem suspirar às donzelas...

O romance se coloca entre duas alternativas, passado o efêmero surto indianista inaugurado na prosa, por Alencar, com o "Guarani" e "Iracema", e seguido por Teixeira de Sousa nos "Índios do Jaguaribe": ou lança mão do material de Bernardo Guimarães e Franklin Távora e, neste caso, teremos o gênero sertanejo ou campesino, com o mesmo desencanto, a mesma sensaboria, e o mesmo tédio da coisa que é repetida com poucas alterações e nenhuma habilidade — ou explora o amor platônico e é o gênero sentimental, o terra-à-terra dos enamorados idílicos tão comuns em Macedo e Alencar.

Macedo continua lido e tem grande poder sobre as novas vocações de romancista. O "Inocência" de Taunay e "Ressurreição", de Machado de Assis, aliás publicados no mesmo ano, em 1872, são o melhor exemplo da influência que exerceram através toda uma etapa literária, aquelas duas exponenciais figuras da ficção brasileira que encheram o seu tempo. Taunay ficaria, infelizmente, na sua pequena obra-prima, superando o próprio autor de "A Moreninha", jamais produzindo sucesso igual. Machado de Assis, este se experimenta em romances de segunda plana para conceber a obra definitiva. No entanto, existe um nome ingloriamente olvidado. Trata-se de Manuel Antônio de Almeida, um obscuro estudante de medicina que escreveu um livro diferente e único na sua espécie, até então. Manuel Antônio de Almeida procurou escapar-se do corriqueiro e do vulgar a que estava subordinado o romance, mais ou menos no mesmo ramerrão e quis inovar, transferindo-o para o meio citadino, ao contrário do que vinha sendo feito com a prevalência rigorosa de um regionalismo pálido. "As Memórias de um Sargento de Milícias" dão a Manuel de Almeida as palmas do primeiro romance realista do Brasil, atentando-se, seja dito, na estreita significação desse termo, porque pensamos como Maurois, quando acha que a palavra realismo não pode definir uma arte, isto é, abranger uma arte em toda a sua extensão.

Manuel Antônio de Almeida fez romance de costumes, pintando admiravelmente aspectos da vida social brasileira. Não foi compreendido, porém, pelo grande público que habituara o paladar àquela literatura sentimentalista, terreno em que Macedo era mestre, e, no dizer de Ronald de Carvalho, "sabia pisar como ninguém". O infortunado autor das reminiscências de um sargento de milícias, por isso, quase não se divulgou, ficando despercebido.

O vulto de Alencar absorveu-o. Pouco depois, Manuel Antônio de Almeida pereceria num naufrágio. Pesou-lhe sobre a obra injustificável silêncio e, mesmo nos dias hodiernos, apenas os historiadores literários o conhecem, citando-o, às vezes, evasivamente ou, quando muito, dedicando-lhe meia dúzia de linhas nas suas antologias. A única homenagem que se lhe prestou, foi a de Patrono da Cadeira nº 28 dós Sócios Efetivos, na Academia Brasileira de Letras.

Com Manuel Antônio de Almeida, pois, Taunay e mais algum outro, porventura, se operam nas letras brasileiras os processos de escola naturalista, movimento que culminaria com o "O Mulato", em 1881, e que José Veríssimo não precisa exatamente na sua “História da Literatura Brasileira”, limitando-o entre os anos de 1875 e 1880. Questões de data, tão somente...

Na Europa — de onde nos alimentávamos espiritualmente e continuamos a fazê-lo, com a diferença de, naquele tempo, com enorme atraso e, hoje, um pouco mais rápido, devido ao há um choque de ideias que porá fim ao romantismo, extinguindo a chama poética de que ele viveu. O homem olha objetivamente as coisas que o rodeiam, sem os enfeites da imaginação que, no fundo, não resultavam senão da impossibilidade de explicá-las. As mais, contrárias doutrinas filosóficas se afirmam, impelindo-o para o mundo da meditação, da análise e do estudo. A individualidade, a excelsitude do eu, no romantismo, foi o que apressou o seu fim. O artista deve sentir o mundo onde pousa os pés. Ele não pode se divorciar do seu tempo. Que é arte? Arte não é o belo, porém o útil. O positivismo de Comte, o intelectualismo de Taine, as teorias evolucionistas de Spencer, darão à cultura um panorama novo, abrindo largas trilhas aos espíritos afoitos.

Émile Zola revoluciona o romance francês, lançando por terra os rígidos preconceitos que constituíam tabu e eram mesmo reflexos remotos de poder das classes autocráticas sobre os homens de pensamento. Zola só fez sátira à sociedade do seu tempo ou foi o observador sagaz dos mistérios psíquicos da criatura humana; ele proclamou a independência da arte. O artista deve viver em função da sua arte e não em função do seu tempo. Universaliza-se, e não egocentralizar-se. Dois postulados que se equidistanciam no espaço: no segundo, está o princípio e o fim do romantismo: no primeiro, o objeto do naturalismo.

Isto, Aluísio demonstrará haver compreendido, perfeitamente, no livro em que trabalha, sob o domínio das ideias e métodos de Zola. Ele será o maior discípulo deste no Brasil, cabendo-lhe escrever o primeiro grande romance moldado inteiramente nas novas fórmulas.

Aluísio está em São Luís, na vida preguiçosa da província e não mais possui as colunas do "O Pensador" para escrever e desabafar-se nos seus momentos de inquietação de espírito.

São Luís do Maranhão é um pequeno burgo de jesuítas. "O Pensador" entra em conflito com os padres do Convento de Santo Antônio, que mantêm um jornal católico. As autoridades eclesiásticas processam o jornalzinho do Dr. Eduardo Ribeiro e "O Pensador" tem a publicação suspensa. O artigo, considerado injurioso pelos padres e que dá motivo à quezília, é de autoria de Aluísio.

Privado da colaboração do jornal, onde exercitava a pena e amoldava o estilo à linguagem fluente do jornalismo, Aluísio, para espairecer, lê e escreve.

Balzac, Zola e provavelmente, Flaubert, constituem a leitura predileta.

Aluísio sonha sonhos de glória.

Sente-se capaz de realizar alguma coisa. Bom ou mau, decalcado ou não, o certo é que escrevera um livro. Aquele "Uma Lágrima de Mulher", já esquecido de todos, lhe desvendara a estrada ampla das letras. Ele tem plena consciência de que poderá escrever outro livro, seu, fruto do seu esforço e das suas observações pessoais. Aluísio cultiva, também, os seus recalques íntimos e quer ferir em cheio o orgulho da sociedade maranhense, mostrando-se superior ao meio. Volta-se à meditação e ao estudo, ao mesmo tempo em que lê os autores brasileiros da época com a intuição de que algo de novo precisa de ser introduzido, alterando a estrutura do romance que obedece a certos cânones, mais ou menos estabelecidos, no mesmo plano de monotonia romântica.

Há pobreza de ideia, evidentemente.

Sem estímulo, isolado na província, ao fim de quase dois anos, Aluísio conclui o seu livro, ao qual dará o título de "O Mulato", publicando-o numa tipografia de segunda ordem. São Luís ficará estarrecida e melindrada, mas, pela primeira vez, um escritor jovem do fundo da província se projetará na Metrópole.

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FERNANDO MARINHO
Revista "Letras Brasileiras", janeiro de 1945. Direção de Heitor Moniz.

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