2/23/2020

Filomena Borges (Resenha de época: 1884)



Filomena Borges
(Resenha de época: 1884)

Está publicado em livro este romance humorístico do Sr. Aluísio Azevedo, o jovem e corajoso escritor maranhense, a quem sem dúvida está reservado um auspicioso futuro, na comunhão das letras brasileiras.

Em Filomena Borges há páginas de uma felicidade inaudita; estamos certos que mais tarde, quando o autor afirmar definitivamente os seus créditos de romancista, vencendo a camada espessa da indiferença do público por todas as questões de arte, esse livro voltará à tona, e se fará em volta dele certo rumor literário, muito diverso do barulho especulativo que o precedeu.

A educação de Filomena é um traço de costumes nacionais; aquele caráter que, pela característica do gênero que se filiou a obra, a muitos parecerá exagerado, mas que é filho de uma observação muito rigorosa, aquele caráter, dizíamos, é o produto lógico, fatal, do sistema de educação adotado por D. Clementina, a mãe de Filomena.

Esta — dada a diferença da estética de Cervantes e da estética do Sr. Aluísio Azevedo — pode-se dizer que é o D. Quixote do romantismo, e o João Borges, um marido-escudeiro cheio de bom senso e de passividade, é naturalmente o seu Sancho-Pança.

Em verdade, que foi Nápoles para Filomena mais que os moinhos de vento para o cavalheiro da triste figura? Que foi para o Borges a jaula do urso ou o seu cômico disfarce em botocudo mais que a ilha da Barataria para Sancho?

O próprio asno anônimo da Serra-Morena tem o seu símile no urso, o cão e, mas e de uma fidelidade tão comovente e absoluta, que fora inverossímil se se não tratasse de um cão.

Filomena, naquele impagável episódio de Espanha, à caça de aventuras românticas, faz insensivelmente lembrar, para honra do Sr. Aluísio Azevedo, D. Quixote à caça de aventuras de cavalaria. Acresce que o lugar da ação é o mesmo, e — franqueza! — o do romancista nada perdeu neste arriscado pulo transatlântico.

A muitos ouvi perguntar de que moléstia faleceu Filomena Borges. A esses poderá responder o autor com uma frase em que envolverá todo o seu orgulho: — Matou-o a mesma doença que matou D. Quixote.

Não consta que o herói de Cervantes fosse auscultado, ou que se queixasse algum dia do fígado ou do baço.

Tanto um como outra morreram desta moléstia terrível — a desilusão.

Só quem nunca sentiu a mão gelada da realidade entrar-lhe na alma e arrancar lá de dentro, uma a uma, as ilusões, essas douradas partículas do ser.

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O Mequetrefe, 20 de fevereiro de 1884.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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