2/04/2020

Salve, Rei! (Poema), de Camilo Castelo Branco



SALVE, REI!

Em 1911, quando fazíamos ainda parte da redação da Nação, reproduzimos naquele periódico, nº 15.255, de 13 de outubro, a poesia Salve, Rei!, de Camilo Castelo Branco, de que mandamos tirar uma separata, de 32 exemplares numerados, sendo 3 em papel Whatman e os restantes em papel de linho nacional.

Estando todos aqueles exemplares distribuídos, e sendo muitos os camilianistas que desejam possuir a poesia Salve, Rei!, resolvemos, sem nenhuns intuitos mercantis, que também da primeira vez não tivemos, pois que a edição foi destinada unicamente a ofertas, fazer a presente reedição daquela pouco conhecida produção do Maior de Todos, como justificadamente os seus mais entusiastas admiradores cognominaram o autor do Amor de Perdição e de tantíssimas obras que honram a literatura portuguesa.
Eis a razão desta nova espécie da extensíssima bibliografia camiliana.

***

A poesia que se segue, dedicada a El-Rei Dom Miguel I, por ocasião do seu casamento, foi impressa originalmente, em janeiro de 1852, em uma folha solta, e reproduzida no diário legitimista A Nação, nº 1834, de 22 de novembro de 1853, em paralelo com uma outra poesia do mesmo Camilo, transcrita do jornal O Portuense, de 17 de novembro de 1853, em honra de Dona Maria II, a quando do seu falecimento.

Na sua preciosa Bibliografia Camiliana, refere-se o nosso presado amigo Sr. Henrique Marques a esta pouco conhecida produção do notabilíssimo e fecundíssimo espírito que foi Camilo Castelo Branco, dizendo que viu um exemplar da folha solta, na Biblioteca Pública do Porto, e informando mais que o Jornal da Manhã, daquela cidade, a reproduziu no seu nº 137, de 19 de maio de 1890.

FRAZÃO DE VASCONCELOS
Novembro de 1915.

SALVE, REI!

Cantor de outrora, quando vi sem flores
Os mágicos jardins da fantasia,
 Minha lira depus.
Não mais pedi inspirações terrenas.
Curvei-me ante o altar, sagrei meu estro
 Aos cânticos da cruz.
E, sem magoa, quebrei prisões da terra,
Mas uma, se então quis também quebrá-la,
 Não pude... em vão tentei...
Eram saudades a viver de esperanças,
Saudades, que nem Deus manda esquecê-las,
 Saudades do meu Rei!

Ficava-me no mundo um nome grande,
Um símbolo de amor, de luz radiante,
 Sob um manto real...
Imagem do que vi na minha infância,
Sentado no dossel, herança augusta
 Dos Reis de Portugal

Cristão, pedi com fé — senti que a tinha
Prostrado ante o altar, quando eu pedi
 Recursos ao meu Deus...
Recursos, não para mim que nasci servo,
Recursos para Vós, Rei desterrado
 Sob inóspitos céus! —

Pulsou-me o coração, senti no lábio,
Em vez da oração, soltar-se o hino
 Dum peito português!
Às lágrimas sucede essa alegria
Dos êxtases que à mente imprimem voos
 De enérgica altivez!

Rei! no dia em que descestes
Do Vosso trono real
Apagou-se a luz da glória,
Cerrou-se o livro da história
Do Reino de Portugal.
Surge o anjo do extermínio
Sobre as trevas infernais!
Traz de fogo a fera espada,
E com mão ensanguentada
Rasgas as purpuras reais.

Sobre o sólio dos Afonsos
Férreo cetro esmaga a lei:
Ruge ali o despotismo
Se não verga ao servilismo
Quem lhe diz “Tu não és Rei!”
Não és Rei! és uma afronta
Feita ao povo português!
Não és Rei que não herdaste
Este chão que escravizaste
A quem falso Rei te fez!

Vaga o anjo do extermínio
Como inspiração do algoz!
Corações com Vossa imagem,
Oh meu Rei! são a carnagem
Do punhal que fere atroz!
Foram dias de martírio,
De terror e maldição!
Mas o mártir, expirando,
Esquecia-Vos só quando
Lhe morria o coração!

Vaga o anjo do extermínio
Do mosteiro sobre a cruz,
E roçando a negra aza
Pela cruz o templo arrasa
E do altar extingue a luz.
Cospe injurias e sarcasmo
Sobre a face do ancião,
Porque orava, é réu, e expulso
Foge à morte, e cede ao impulso
De penúria, e pede pão.

Pede o pão que amassa em pranto
De saudades que crê vem
D’uma cela que comprara
Quando o mundo cá deixara
Com as pompas que ele tem!
Pede o pão que lhe usurparam
Com tamanho desamor...
Fraco, ao ver que chega a morte,
Morre... e então mostra que é forte
Perdoando ao matador!

Lá, no campo da carnagem,
Mutilado um corpo jaz...
Ficaram-lhe ali seus ossos...
Pois que foi um dentre os Vossos
Real Senhor! não terá paz.
Nem a paz dos que morreram
Sem a nodoa da traição
Nem a paz da sepultura
Ao fiel que honrado jura
Morrer sob o seu pendão

Lá se abraça ao corpo exangue
No abandono da viuvez
A que ali vive arrastada
Mendigando, envergonhada,
Impropérios... talvez!
Pobre, e só, mãe de três filhos
Quando a fome a constrangeu,
Inda assim, um pensamento,
Uma esperança, um grato alento
Foi por Vós que o concebeu...

Vaga o anjo do extermínio
Enverga o manto real;
Dum diadema a fronte cinge,
Mas o sangue que lho tinge
Brada vingança fatal!
Nessa fronte ensanguentada
Escreveu a mão de Deus!...
Mas também homens puseram
Inscrições onde se leram
Infâmias como troféus!

Oh Rei de Portugal! Quando a amargura
Deste povo infeliz, é sem conforto,
 Valemo-nos do céu!
Pedimos-lhe por Vós, anjo proscrito,
Pedimos-lhe vigor à doce esperança
 Que em vós o céu nos deu!

Vireis, Senhor vireis, que Deus é justo!
Vireis enxugar lágrimas amargas
 Que se choram por Vós!
Sereis de todos Pai, não vingativo,
E nós todos irmãos, e Vós de todos...
 O Rei de todos nós!

Fatídica aureola circunda
Nas plagas do desterro dolorosas
 Vossa fronte real.
Sentado sobre as rochas da montanha
Lá mesmo na solidão de amargo exílio
 Sois Rei de Portugal!

Deu-vos um anjo a Providência augusta
Em galardão à dor que amargurastes
 Com Santa intrepidez.
Um dia curvaremos o joelho
Perante Essa que o céu fadou Rainha
 Do povo português.
CAMILO CASTELO BRANCO
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020)

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