3/01/2020

O meu encontro com Camilo Castelo Branco (Depoimento)



O meu encontro com Camilo Castelo Branco
Vi Camilo pela primeira vez quando ele vestia como Rafael Bordalo Pinheiro o apresenta no Álbum das Glórias: de botas altas à frederica, sobretudo cintado, de ratina, e chapéu alto levemente cônico, de aba direita. Eu morava então no Porto, a meio da rua de Santo Antônio, do lado norte, e o romancista subia lentamente, pelo passeio do lado oposto, para se abrigar do sol, a mão direita apoiada na bengala. Estou a vê-lo: só, magro, de estatura um pouco mais de mediana, bem proporcionado, a tez morena e pálida, o ar grave, concentrado e melancólico, talqualmente o Picado de gênio e das bexigas do grande caricaturista. Vinha talvez da Praça Nova, de conversar com o Gomes Monteiro na livraria Moré, ou com o editor Cruz Coutinho cuja loja, na rua dos Caldeireiros, pouco distava da primeira; e certamente encaminhava-se para o seu jantar, por volta das 3 ou 4 horas da tarde. Há quarenta ou cinquenta anos jantava-se cedo na cidade da Virgem.
Passados tempos, Camilo veio uma noite com D. Ana Plácido e os filhos ao nosso estabelecimento, comprar dois clarinetes para os rapazes. Meu pai ainda teimou com o romancista para lhe vender de preferência dois flajolés; não porque fossem mais baratos, mas por serem mais fáceis de tocar e portanto menos impróprios para crianças. Mas Camilo insistiu: “Eles é que queriam”.
Não me recordo bem se disse meninos, pequenos ou rapazes, ou se até os não classificou; só sei que eles iam radiantes com os clarinetes.
Decorreram anos sem que voltasse a vê-lo, até que aí por 1882 ou 83, estando eu nas Obras Públicas de Braga, tive frequentes ocasiões de me cruzar com ele na Arcada. Já não trajava como no Álbum das Glórias; vestia como qualquer de nós.
Camilo morava então em São Miguel de Seide e aparecia muitas vezes na cidade dos Arcebispos onde tinha um amigo íntimo, amigo meu também, João de Mendonça, que morreu professor de línguas na escola industrial de Guimarães. Era na companhia deste que o grande escritor ia ao Café do Viana, na dita Arcada. Ali abancava a uma mesa e conversava com a jeunesse dorée da terra para colher ao vivo, suponho eu, os elementos fundamentais da imbecilidade nacional. O Mendonça, a quem eu contara as relações artísticas que noutro tempo haviam ligado meu pai com o grande escritor, quis por vezes apresentar-me a ele. Resisti sempre. Em primeiro lugar, não queria achar-me compreendido no número dos destinados ao estudo do romancista; e depois já então pensava, como hoje, que aos homens de valor devem aborrecer soberanamente as impertinências da miuçalha.
Era porém com verdadeiro pesar que insistia na recusa; porque, além de tudo o mais, desejava ouvi-lo acerca de uma peça de teatro, de costumes minhotos, feita de colaboração por ele Camilo, que dava a letra, e por meu pai, que punha a música, peça que este me descrevia com vivíssimas cores e lhe deixara as mais agradáveis recordações. Das conversas paternas retenho que havia ali uma cena de arraial e que, a folhas tantas, parodiando a tremenda Semíramis de Rossini com a sua sombra de Nino, devia na romaria aparecer a sombra dum macho. A peça tinha entrado em ensaios, mas afinal tudo ficou em águas de bacalhau: Camilo não terminou a, sua parte.
Creio que isto se deve ter passado aí por 1860 ou 1861. Meu pai era então empresário do teatro Camões do Porto, situado na rua de Liceirás, que das traseiras da Trindade sobe para a rua do Almada. Dera várias peças, entre outras o drama sacro São Gonçalo de Amarante, com música sua. Em 1861, ou 62, desgostoso da carreira musical que, para o seu caráter altivo e extremamente vivo, lhe trouxera muitos dissabores e desilusões, abandonou-a por completo; o compositor e o executante musical consagrou-se desde então apenas à vida do comércio. E seria talvez este o principal motivo porque não se concluiu a peça de costumes a que atrás aludo.
Mas, voltando ao que ia dizendo, ainda hoje me penaliza não ter tido coragem para me dirigir a Camilo e falar-lhe dessa peça. Afinal, passar mais ou menos uma vez na vida por pateta que importava?...
Estava porém escrito que falaria com o grande homem. Um dia, indo de Braga para o Porto e achando-me já muito comodamente instalado e só no meu compartimento, quase à hora de partida do trem, vejo entrar Camilo que, com toda a tranquilidade e vagar, se senta na minha frente. Não me mexi, nem fiz menção de o conhecer, levado pelo desejo egoísta de observar à minha vontade aquela fisionomia reveladora duma tão singular e intensa personalidade. Mas, vai senão quando, ele tira o chapéu, passa a mão pela fronte e, olhando-me bondosamente, desfecha-me à queima roupa a seguinte pergunta:
— Então, Sr. Arroyo, que me diz de Braga, que lhe parece Braga?
Nunca, em momento algum, me haviam feito uma pergunta que tanto me embaraçasse e surpreendesse. Eu estava então naquela época da vida em que o mundo existe todo dentro de nós, em que a felicidade dos poucos anos nos cega para a vida dos outros, em que tudo o que não é nós mesmos pequena importância tem aos nossos olhos. Fiquei por isso engasgado, sem saber o que dizer-lhe. Braga, para mim, era apenas a terra em que eu vivia com a pessoa que ambicionara ter junto de mim, só para mim. E isso não podia eu dizer-lho. Calei-me. Ele, porém, desde logo obstou à continuação do meu embaraço, indenizando-me largamente da peça que me havia pregado.
Porque, na mais fluente e portuguesa linguagem que jamais ouvi, e chamando sempre às coisas e às pessoas pelo seu nome, foi-me contando várias anedotas passa das na capital do Minho que, para seu pesar, não era já em 1882 o que havia sido vinte ou trinta anos atrás. Ia-se de todo esvaindo o caráter que tanto a diferenciava das outras terras do país e lhe dava uma fisionomia absolutamente típica. As crenças evangélicas das senhoras de outrora, em que o amor do divino e o amor do humano, Deus e a sua melhor obra, se confundiam numa única expressão carinhosa, por vezes ardente, mas sempre ingênua e cheia de graça, haviam endurecido e perdido sobretudo o aspecto afetuoso para se converterem em manifestações isoladas duma secura agreste e desagradável. Nas imaginações femininas o homem tomara também o lugar que era de Deus; e como se fizesse boçal e grosseiro, elas, as pobres senhoras, foram perdendo a linha de suave e graciosa elegância dessa época morta para sempre. E citava casos denunciadores da torpeza dos costumes.
Em 82 estávamos nós a dois ou três anos de distância da Corja e da lamentável contenda que o seu autor teve com Alexandre da Conceição, contenda de que eu tanto procurara desviá-lo a este; eram os tempos da invasão realista e os romancistas teimavam em fazer-nos ver, da fraca humanidade, apenas os aspectos mais vulgares, mais baixos, rudimentares e incaracterísticos, os aspectos de ignóbil animalidade que necessariamente se encontram por vezes no rei da criação. Essa Braga boçal e grosseira revelara com ingênuo cinismo, aos olhos perscrutadores de Camilo, aspectos similares que ele, obedecendo à corrente da moda, lindamente contava e descrevia. Contava-os porque de fato pudessem emparelhar com as mais violentas fermentações das grandes babilônias, ou talvez até para caritativamente me evitar o esforço que eu teria de empregar se tentasse sair da atrapalhação em que ele me pusera. Encantava-me, porém, com a sua palavra sempre variada e imprevista e por isso, de todos quantos casos lhe ouvi, procurarei repetir o último, e também o mais característico, que ele acabou já à chegada do comboio a Famalicão, onde ficou, caso que descreveu como que aquarelando a tons variadíssimos, fortes e doces, meias tintas esvaídas e largas chapadas de sol, o engraçado e angustioso episódio do Faz de conta, que sou violentado a reproduzir nas suas linhas principais, como exemplo perfeito e completo da vida desses tempos cuja perda Camilo vinha lamentando.
Havia então em Braga, a meio não sei já de que rua, um arco baixo e grosso que uma camará municipal qualquer, porventura menos temente a Deus, julgou necessário demolir. A demolição fez-se e passou despercebida, porque o arco não tinha de fato qualidades artísticas nem utilidade prática a defendê-lo. Era um verdadeiro trambolho a que ninguém ligava importância. Dava-se porém com ele uma particularidade que o tornava querido das mais devotas servas do Senhor e lhe criara uma especialíssima função social. Porque, no maior círio ou procissão que, nesses tempos felizes, anualmente percorria as ruas da cidade augusta, figurava sempre um altíssimo e pesado estandarte, S. P. Q. R., vulgarmente chamado Guião, ou guiador do cortejo, o qual, desse por onde desse, tinha de passar por baixo do arco, mas de uma forma que não brigasse com o caráter grave e a harmonia festiva do conjunto. Para o conseguir viam-se obrigados a tombar o pendão para a frente e a passá-lo em posição que mais pareceria de arremeter, se lhe não atenuassem a rudeza com a necessária compostura. E, como muita gente junta se não salva, um antigo e venerando uso impunha que a passagem fosse levada a efeito só pelo porta-estandarte na plena consciência da sua missão: ele deveria, portanto, aguentar o pendão a pulso rijo e firme, inclinando-o docemente para diante, e levá-lo de um para outro lado do arco, em passo sempre lento e nobre atitude. E assim se fazia desde tempos esquecidos, segundo o ritual consagrado; e todos os anos se renovava esse verdadeiro triunfo da força bruta posta ao serviço das coisas santas, evocação michelangesca provocada pela Roma dos papas, mas nascida na Roma dos lusos.
A esse triunfo assistia sempre, possuído do maior amor divino, o madamismo da cidade que, a peso de ouro e outras formas equivalentes, disputava a posse das varandas e janelas próximas do arco, apenas para aquele momento supremo e enternecedor. De toda a cidade, engalanada de infinitos festões de flores e folhagem, de bandeiras, flâmulas, mastros e galhardetes, e de todas as casas adornadas de bambolins, colgaduras e sedas de mil cores, era esse portanto o lugar de maior eleição naquele dia. Por isso também vinha a cerimônia sendo preparada de longa data. Para a tremenda prova ia sempre chamar-se o mais perfeito latagão da cidade e seu termo. Era esse o herói destinado a manter intactos, numa continuidade porventura plurissecular, o brio, a força e a glória do burgo bracarense; e compreende-se que todos o cercassem dos maiores carinhos. Nunca o culto da beleza plástica se revelara tão francamente espiritual.
Demolido o arco na indiferença geral, sucedeu porém que só lhe deram pela falta no próprio momento em que a procissão ia a passar pelo local da façanha; e, a um tempo, madamismo, povo e herói, no auge duma violenta surpresa, sentiram-se roubados e feridos na sua mais profunda afeição, pela obra nefanda dos pedreiros-livres. Chega por fim o homem do guião. Não vê o arco, estarrece, estaca, e com o conto da pesada lança, bate de rijo na calçada. Erguendo depois os olhos desvairados, numa ânsia alucinante, como que a pedir que o ajudassem a salvar o brio e a honra de todos, percorre lentamente as varandas e as janelas donde, àquela hora solene, pendiam as mais lindas colchas do oriente, os mais rutilantes veludos e damascos do culto e se debruçavam, para o ver bem, não menos indecisas e agitadas do que ele, as senhoras mais formosas de todo o distrito. Mas então, alguém, subitamente incumbido pelos deuses, resolvia o inesperado caso, dentro dos ritos e dos usos consagrados, ordenando impetuosamente: faz de conta, faz de conta.
E todo o madamismo e seus acólitos, e todo o povo, como uma só pessoa, arquejando, numa onda de arrebatamento indescritível, repetiam em loucos gritos: faz de conta, faz de conta, faz de conta...
Era o amor triunfante, o amor sem gramática, o amor de muitas gerações concentrado nesse ser de eleição e comunicando-lhe um ardor que lhe centuplicava as forças. E o homem do pendão, sentindo-se arrastado por essa onda de ternura precursora da vitória, inclinava-o suavemente para a frente; e lento, sorridente, na mais hierática atitude e na posse absoluta de todos os corações, caminhou para além do sítio onde o arco havia estado e religiosamente cumprido as funções dum bom arco bracarense.
Salvara-se a honra da cidade. Mas, a partir do ano seguinte, desaparecia para todo o sempre a encantadora façanha e o seu herói anual.
Camilo parecia ter conhecido pessoalmente o ultimo hércules triunfador; pelo menos falava dele como de pessoa que se viu bem viva, em toda a sua brutalidade e desvanecimento. E só me disse ainda que, trinta anos depois, Braga não podia assistir a semelhantes provas. Tudo passara; a alegria descuidada, a jovialidade amável, o amor festivo que idealiza e santifica.
Aqui terminou o meu encontro com o grande escritor. Ele foi para São Miguel de Seide e eu continuei a viagem até ao Porto. Nunca esta me parecera tão curta. Levava a cabeça cheia das anedotas, dos episódios narrados por aquela palavra rara que nem um só instante ousei interromper; por isso mesmo fiquei sem notícias do macho cuja sombra devia figurar na peça começada por Camilo e que ele não acabou.
A deliciosa narrativa, tão penetrante e tão cheia de luz, acerca das coisas e das gentes que haviam impressionado o romancista, deixara em mim uma profunda comoção estética que ainda hoje resiste ao afastamento dos muitos anos. A realidade dos fatos narrados, nem então nem hoje me preocupa. Ignoro até se, graças à sua fantasia, Camilo não era por vezes dominado pela mesma obsessão que levava Balzac a acreditar na existência real das personagens dos seus romances. É possível que assim fosse. Entretanto, mais tarde reconheci em todas as anedotas que Camilo me contou um acentuado, um inegável sabor regional.
E ainda hoje penso se esse grito de alma, o sugestivo Faz de conta, não é próximo parente daquele outro brado enérgico e imperativo que, há séculos, se ouviu na grande praça do Vaticano, ao quererem guindar um sino tão pesado que todas as cordas por mais fortes que fossem e mais bem feitas, esticavam e rebentavam. A última, toda de seda, ia-se já tornando muito delgada, parecendo prestes a estalar. E o sino sem se mexer. Mas de repente, naquela atmosfera de ansiedade e de silêncio, uma voz bradava: Acqua a la corda.
Efetivamente não ocorrera até então que nisso estava a virtude. Momentos de raríssima inspiração que se diriam de caráter profano e a que só as almas simples e crentes dão o justo valor. No mundo do maravilhoso são frequentes as surpresas deste gênero.
E nunca mais tornei a ver o grande Camilo.
---
ANTÔNIO ARROYO
Singularidades da minha terra (1917)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...