FINS DE OUTONO
A tiritar de
frio, em seu balcão,
Tosse o
Príncipe louro, e as nuvens olha;
Sua coroa de
nardos se desfolha,
Pelos canais,
cantando os cisnes vão...
Correm pela
erva plumas de pavão
Treme o lago,
ao cair de cada folha
E dos repuxos
a poeira molha
O moço, quando
passa a viração...
Cerra os
olhos, o Príncipe, cansado
De ver nas
foscas nuvens, batalhando,
Plúmbeas
Quimeras, em revoltas iras.
E no mosaico
do balcão dourado,
Dos seus dedos
exangues vão tombando
Os anéis
cravejados de safiras...
***
INSCRIÇÃO
(Para o túmulo de uma donzela)
Num mirante
que a hera revestia,
Passei a minha
mocidade à espera
Desse, que em ledo sonho me aparecera,
E que em
contínuos sonhos me aparecia.
Menina e moça,
deslizar eu via
Moços mais
lindos do que a Primavera,
Porém, ó
mágoa! nenhum deles era
O que em
contínuos sonhos me aparecia.
A Morte me beijou, sendo eu tão nova!
— Caminhante, que passas divagando,
Distraído
entre as alvas sepulturas,
“Desfolha
algumas flores sobre esta cova:
Es o noivo
talvez que eu estive esperando,
Talvez eu seja
a noiva que procuras...
A COROA DE ROSAS
A fim, oculto
amor, de coroar-te,
De adornar
tuas tranças luminosas,
Uma coroa teci
de brancas rosas,
E fui pelo
mundo fora, a procurar- te.
Sem nunca te
encontrar, crendo avistar-te
Nas moças, que
encontrava, donairosas,
Fui-as
beijando e fui-lhes dando as rosas
Da coroa feita
com amor e arte.
Trago, de
caminhar, os membros lassos,
Acutilam-me os
ventos e a geadas,
Já não sei o
que são noites serenas...
Sinto que vais
chegar, ouço-te os passos,
Mas ai! nas
minhas mãos ensanguentadas
Uma coroa de
espinhos trago apenas!
***
A CLEPSIDRA DE TEODORA
Junto do
leito, a imperatriz Teodora
Uma clepsidra
tem, obra do artista
Moeris, que,
de a fazer, perdeu a vista
E que em funda
miséria vive agora.
Sobre a
clepsidra, uma risonha Aurora,
Abrindo a mão
com graça nunca vista,
Deixa cair num
prato de ametista
Uma pérola
negra, de hora a hora.
De Teodora os
dias sanguinários
Passam
velozes, lestos, de fugida,
Quais do
Bósforo, ao luar, as águas cérulas;
Osculando
cocheiros e sicários,
Tão ligeira
lhe vai correndo a vida,
Que ouve
constantemente chover pérolas.
***
HIMENEU
(A
Caterina Bárbaro Fórleo - Duquesa d’Este, por ocasião do seu casamento com o
Conde de Santo Ângelo Limosano)
Antes
do casamento, as noivas iam depor
as
suas bonecas no altar de Vênus.
(História Romana).
Flameum: véu cor de fogo,
com
que as noivas cobriam o rosto.
(Magnum Lexicon).
Por um véu,
que do fogo tem a cor,
Oculta a pura
fronte alabastrina,
No branco
altar de Vênus, Catarina
Suas lindas
bonecas vai depor.
Depois,
soltando um hálito de flor,
Qual, entre
flores, um veio d’água fina,
Sua voz se
levanta, áurea e divina,
Pedindo
proteção à Mãe do Amor.
Pasma a Deusa
escutando voz tão doce,
Tão carinhosa
e afável, qual se fosse
Um fumegar de
languidos perfumes;
E vendo
Catarina retirar-se,
Para o Olimpo
corre e diz aos Numes
“Safo
ressuscitou e vai casar-se!”
***
OFIR
I
Desde que o
moço rei subira ao trono,
Sempre que se
deitava p'ra dormir,
Duma sereia
começava a ouvir
A argêntea
voz, que lhe tirava o sono.
— “Para ti grandes glórias ambiciono,
Vem comigo, se
queres possuir
Uma ilha de
luz, chamada Ofir,
Entre névoas
vogando ao abandono!”
Ofir!...
Ofir!... E o rei, olhando o mar
Julga ver,
entre as névoas, cintilar
Da ilha o
refulgente baluarte...
De nada valem
rogos nem conselhos!
Chora a noiva
do rei e os aios velhos,
Mas, à busca de
Ofir, a frota parte...
II
Partiu e não
voltou! Voltou somente
O pobre rei já
velho e esfarrapado:
Mas ai! um
outro rei vive sentado
No seu trono
de prata refulgente.
— “Sou o rei!” grita o velho inutilmente
Só o conhece
um servo dedicado,
De cujas mãos
recebe o anel gemado,
Que à noiva
morta dera de presente.
O usurpador cobiça
o lindo anel:
“ — Dá-me
aquele barquinho, que além dança,
“Se esta joia
desejas possuir...”
O usurpador
aceita; e no batel
Entrando, o
velho rei, cheio de esperança,
De novo parte
demandando Ofir.
***
A SÁ DE MIRANDA
Muita vez, em
espertinas amorosas,
Pensava (e um
terror brusco me vestia!)
Que dos meus
quentes beijos surgiria
Uma linhagem de
almas lastimosas.
Hoje, porém,
coroo-me de rosas,
Vejo dourado o
mais escuro dia,
Quando penso
em ser pai, e na alegria
De beijar do
meu filho as mãos mimosas.
Ó Poeta! que o
meu filho nasça e cresça,
Que o meu gênio
envergonhe os soes de julho,
E que, daqui a
séculos, o Céu
Permita que
haja alguém que se envaideça
De proceder de
mim, como eu me orgulho
De o meu
sangue possuir gotas do teu!
***
O PASTOR DESTERRADO
I
Mandais-me
perguntar, linda pastora,
Se são lindos
ou feios estes prados;
Não vo-lo sei
dizer, que meus cuidados
Al me não
deixam ver que a vós, Senhora.
Qualquer
campina achava encantadora,
Quando iam
junto aos meus os vossos gados,
Mas hoje, Céus
azuis, campos dourados,
Nada vejo na
dor que me devora.
Se toda a luz
que nestes olhos tinha,
No tempo de
feliz desassossego,
Se toda aquela
luz de vós me vinha,
Exilado nas
margens do Mondego,
Longe da que,
por louco, julguei minha,
Já sabereis,
Senhora, que ando cego.
II
Em que emprego
o meu tempo? Vou e venho
Sem dar conta
de mim, nem dos pastores
Que deixam de
cantar os seus amores,
Quando passo
amostrando a dor que tenho.
É de tristezas
o torrão que amanho,
Amasso o negro
pão com dissabores,
Em ribeiros de
pranto pesco dores
E guardo de
saudades um rebanho.
Meu coração à
doce paz resiste,
E, embora
fiqueis crendo que motejo,
Alegre vivo
por viver tão triste!
Amor se mostra
nesta dor que abrigo,
Quero triste
viver, pois vos não vejo,
Nem sequer
muito ao longe vos lobrigo...
III
Os aziagos
dias, os quebrantos,
As traições,
as vinganças e os desprezos,
Já não sente seus
golpes nem seus pesos
Aquele que
perdeu vossos encantos.
São rosários
de dor os tristes cantos
Que destes
lábios solto em febre acesos,
E, sem luz, os
meus olhos estão presos
Pelas grades
de vidro dos meus prantos.
Vivo só, como
os santos do deserto,
Dia a dia o
sofrer se me renova,
E choro tanto
que, do fim já perto,
Em breve,
d’alto amor bem clara prova,
Os prantos,
que por vós, Senhora, verto,
Nesta penha
abrirão a minha cova...
***
VILANCETE
Quando estes
olhos molhados
Por vós,
Senhora, os topastes.
Com a boca os
alimpastes...
Por tanto mal
me quererdes,
Por tais
desdéns me votardes,
E por tão mal
me tratardes
Com tão lindos
olhos verdes,
Os meus
choraram, e ao verdes
Toda a dor que
me causastes,
Com a boca os
alimpastes...
Tão escaldado
o pranto vinha
Que amoleceu,
por meu bem,
A cera desse
desdém;
Eu por bem
salgado o tinha
Mas doce me
foi asinha,
Quando, por
vê-lo, mudastes
E com a boca o
alimpastes...
Jamais quero
ver suspenso
Deste pranto o
borbulhar;
Quero viver a
chorar,
Só p'ra ter o
gosto imenso
De sentir o
fino lenço
Com que vós,
quando os topastes,
Os meus olhos
alimpastes...
***
VILANCETE
O que seria de
mim,
O que seria de
vós,
O que seria de
nós?
Nem pensar
quero que um dia
Me podeis
morrer, Senhora,
Tanto o vosso
amor me doura,
Me acalenta e
me inebria...
Se um dia vos
visse fria,
Morta, da cor
do marfim,
O que seria de
mim?
Se não há da
terra à face
Quem vos
queira como eu quero,
Se é do meu
amor sincero
Que a vossa
alegria nasce,
Se eu um dia
vos faltasse,
Se então vos
vísseis a sós,
O que seria de
vós?
Mas ai! bem
mais duro espinho,
Desgraça muito
maior
Seria a morte
do amor
Que nos
enflora o caminho...
Cuidado! o
Amor é franquinho
E o Tédio é um
monstro feroz..
O que seria de
nós?
***
VILANCETE
Quando as naus
iam à índia,
Se eram cem as
que abalavam,
Vinte apenas
regressavam...
Voltando ao
Tejo, opulentas,
Com gemas,
ouros e pratas,
Eram presas
pelos piratas,
Quebradas
pelas tormentas;
E ao fim de
lutas cruentas,
Se eram cem as
que abalavam,
Vinte apenas
regressavam.
Com fé na
vossa clemência,
Mandei-vos
naus de esperanças,
Senhora de
loiras tranças,
Martírio desta
existência;
E no cais da
paciência
Os meus dias
suspiravam
Mas as naus
não regressavam.
No mar das
vossas friezas
Todas se viram
quebradas,
Pobres naus!
mais desgraçadas
Que as velhas
naus portuguesas;
Que destas, se
em más empresas
Muitas vezes
se encontravam,
Ainda algumas
regressavam...
***
A FONTE MILAGROSA
Uma tarde,
fugindo da Judeia,
A Virgem-Mãe
lavou o Deus- Menino
Numa fonte
chamada Matureia.
De tocar no
Deus róseo e peregrino:
E nas mãos
virginais que o seguravam,
Houve a fonte
um poder quase divino:
Por onde as
suas águas marulhavam
Tudo de
alegres galas se cobria.
E até as
mortas flores ressuscitavam.
Ali perto, de
incenso um horto havia,
Que a tal
fonte fizera tão viçoso,
Que regado
pelos anjos parecia.
Era dono do
horto um duvidoso,
Que esse viço
tirava não das águas
Mas do terreno
forte e planturoso.
Para se
convencer, por umas fráguas
A virtuosa
veia desviou
Do horto, que
ficou jardim de mágoas.
Embalde para
ali canalizou,
Com trabalhos
sem fim, outros ribeiros:
Tudo se lhe
perdeu, tudo secou...
O incenso já
não dava os brandos cheiros,
E o mole
terreno fez-se areal queimado,
Que era uma
chaga ali, entre os outeiros.
E — ó caso
nunca em excesso celebrado!
No pedernal
por onde as linfas santas
Iam agora em
fio prateado,
Flores nasciam
de belezas tantas,
Que dava pasmo
o ver assim nascidas,
De pedras tão
brutais, tão finas plantas.
Do duvidoso as
dúvidas caídas,
Caiu em si, e
ao horto fez voltar
As milagrosas
Águas despedidas.
Mal se escutou
no horto o seu cantar,
Logo tudo se
encheu de relva e flores
E o brando
incenso embalsamou o ar!
Este caso, ó
Rainha dos Amores!
Acordou minha
pálida memória
E deu-me do
remorso as vivas dores.
No tempo em
que em vós pus bem alta glória,
Que outra
maior não tive que a de ter-vos,
Quando achava
em ser escravo alta vitória;
Quando me
achava livre em pertencer-vos,
E a noite se
mudava em dia claro,
Se pela noite
me era dado ver-vos;
Quando em vós
encontrava luz e amparo,
Era a
minh'alma um horto rescendente,
Brilhante,
alegre, precioso e raro...
Do horto o
viço e o aroma tão dormente
Vinham dos
olhos com que o refrescáveis,
Claras fontes
fluindo brandamente...
Mas não quis
Deus que fossem perduráveis
Os benefícios
que de vós lograva,
E a outra fui
pedir o que me dáveis...
Vossos olhos,
eu, louco, os enjeitava
E outros
busquei a cuja luz mortal
Logo o meu
lindo horto se crestava...
Por desprezar
o bem, colhi o mal,
E, ambicioso,
caí em tal pobreza
Que outra no
mundo não topava igual.
Ó capricho
fatal da natureza,
Que nos lanças
em tanta insensatez
E que ao mais
firme tiras a firmeza!
Caindo em mim,
caí a vossos pés,
E por castigo
tive o perdão brando,
Eu que
merecera algemas e galés!
De novo o
vosso olhar se ouviu cantando
Na minha alma,
no meu pobre horto,
Que, em breve,
suas galas foi cobrando.
Tudo se encheu
de paz e de conforto,
De aroma, sol
e musicas fagueiras,
Tornou-se vivo
tudo o que era morto,
A treva em luz
e os cardos em roseiras.
***
AO DIVINO JOÃO DE DEUS
(8 de março de 1895)
Quando, nos
idos tempos passageiros,
Meus cordeiros
guardava, e a minha altura
Fazia parecer
grande a dos cordeiros,
Por um
entardecer d'alma brandura,
Maviosa flauta
ouvi, tão doce e branda
Que o seu
encanto ainda em minh'alma dura.
Ouvindo assim
tocar, fui-me em demanda
Do divo
tocador, qual veloz cerva,
Ou como o
doente que, dormindo, anda;
Porém, sentado
na comprida erva,
Achei-te a ti,
eu que encontrar julgava
Marsias, que
teve a flauta de Minerva.
Águas e
plantas tudo te escutava,
E até o meu
rebanho, mais travesso
Do que um
rancho de Títiros, parava!
Foi aí, nessas
margens do Parmesso,
Que tu, subida
glória das Camenas,
Por quem o mor
apreço é pouco apreço,
Ale induziste
a provar as mui amenas
Águas daquela
fonte e me ensinaste
A articular os
dedos nas avenas;
Foi aí, novo
Orfeu, que me levaste,
Pelo Helicon,
à fulgida morada
Das belas
Aganípides, que honraste.
Foi desde
aquela tarde bem-fadada
Que, entre os
da minha idade tocadores,
Minha flauta
encantou e foi cantada...
A ti, Sol dos
arcádicos pastores,
E pois que eu
devo o cobiçado tino
Com que em
música torno o riso e as dores;
Fizeste-me o
que sou, gênio divino!
Porquanto os
que possuo merecimentos
Menos do
engenho vieram que do ensino
Se pelos
doces, languidos relentos,
Graças à minha
flauta aliciante,
Fiz palpitar
de amor lobos cruentos;
Se fiz parar o
curso marulhante
Do Mondego, se
fiz parar, no trevo,
Do meu rebanho
cada rês saltante:
Se logrei
enlevar em triste enlevo
As loucas
Mimalônides joviais,
— Se tudo isso fiz, a ti o devo!
Porém dos
Deuses glória e dos mortais,
Se tanto te
devia, estava escrito
Que devera
dever-te muito mais!
A Ambição,
monstro nunca assaz maldito,
Fez-me odiar a
minha solidão,
Dum sereno
pastor fez um proscrito.
Deixei a minha
flauta, o meu bordão
E o meu
rebanho, e fui-me a correr terras,
Que sepulturas
d'almas virgens são.
De cidade em
cidade, subi serras.
E lá de cima,
olhando para baixo.
Só vi
angústias, ódios, lutas, guerras...
Da Ambição me
atraía o tredo facho,
Para o mal
caminhava, cegamente,
Qual para o
mar o ambicioso riacho.
Por
babilônias, entre falsa gente,
Entre
tristezas mil e mil perigos,
De tantos
vícios ver, vi- me demente.
Debalde
procurei leais abrigos,
Foi pago com
traições o meu amor,
E só traições
colhi dos meus amigos.
E cada vez o
mal ia a pior!
A tal ponto
que a minha dor agreste
Julguei-a das
dores todas a maior!
Amigo! foi
então que me apareceste
E me mostraste
como tudo é vão
Sob a
estrelada abobada celeste;
Seguindo o teu
exemplo, foi então
Que eu o mundo
deixei para voltar
Aos deliciosos
prados da ilusão.
Aqui me vim
esconder e recobrar,
Aqui, onde de
novo pastoreio,
E onde outra
vez Castália ouço cantar;
De novo bebo o
mel do devaneio,
Minha boca, em
vez de ais, solta canções,
A paz voltou suavíssima
ao meu seio;
Quais
semicrapos Aegipães brincões,
Meus sonhos,
em frescor, humilham rosas,
Só alimento
ideais aspirações:
Vivo calmo a
cantar canções viçosas,
E a ouvir,
sempre encantado, o bom Mondego,
Onde cantam
Mondegides maviosas!
Sou de novo
feliz! vivo em sossego!
De novo
ostenta flores a seca haste,
De novo o mudo
fala e vê o cego!
Graças te
rendo, a ti que me ensinaste
A tanger minha
avena, e que depois,
Vendo-me já
perdido, me salvaste!
Cantem, quando
pássaros os rouxinóis,
Sigam-te, como
sombras, os Poetas,
Aclamem-te
Rainhas, Reis e Heróis!
Que os teus
pés, pisem só jasmins, violetas,
Seja-te o
inverno doce primavera,
Realize-se
tudo o que projetas!
Contigo ainda
conversar quisera,
Meu rebanho,
porém, vou deitar fora,
Que, de se ver
sem mim, já desespera,
Aqui não posso
ficar mais agora,
Pois meus
olhos, cordeiros saltadores,
Balindo querem
que eu, sem mais demora,
Os vá guardar
no teu Campo de Flores!
***
FIGURINHAS DE TANAGRA
(PHYLLIS)
I - A MAÇÃ
Repara, Phyllis: a maçã dourada,
Que ainda há
pouco na macieira ria,
Mostrando a
cor divina da ambrósia,
— Ei-la no chão caída, encarquilhada.
Onde está essa
graça perfumada,
Que o ouro e o
próprio sol escurecia?
A devorá-la,
correm à porfia
As formigas,
em turba alvoroçada.
Phyllis! vem reclinar-te no meu leito,
E deixa-me
oscular teu níveo peito,
Teus braços,
tua boca de romã!
Carícias te
darei de ideal moleza...
Não me
resistas mais... tua beleza
Passará como o
viço da maçã.
II - O ESPELHO
A velha que
ali vai com triste aspecto,
Os olhos
murchos e fanada a pele,
É a sombra de Phyllis, flor cruel,
Que jamais
quis deitar-se no meu leito.
Era um jardim
de lírios o seu peito,
Sua boca
adoçava o próprio mel;
Mas ai! beleza
vã, beleza infiel!
Tanta graça e
frescor, tudo desfeito..
Alguém a
ouviu, quebrando o espelho fino,
Que lhe dei
quando os seus olhos brilhantes
Viviam a
ferir-me e a maldizer-me:
— “De que me serves tu, disco argentino,
Se me não me
vejo em ti qual era dantes,
E se, como
hoje sou, não quero ver-me?”
***
PÍRAMO E TISBE
Os
frutos da amoreira, a cuja sombra isto aconteceu
se
tornaram negros, sendo até ali brancos.
(Dicionário da Fábula).
Da amoreira,
que o noivo lhe indicara,
Já Tisbe se
acercava, quando, vendo
Uma leoa ali,
fugiu correndo,
E voar deixou
o véu com que se ornara.
Píramo, o
esbelto herói, da sua cara
E doce amada o
véu reconhecendo,
Logo com um
punhal se mata, crendo
Que, Tisbe, a
ruiva fera a devorara.
Chega de novo
Tisbe — ó duro instante!
Dá com Píramo
morto, e o seio ferindo,
Que era inveja
das Musas e das Horas,
Morta cai,
abraçada ao louro amante!
Chorando o
triste fim de par tão lindo,
De luto se
vestiram as amoras...
***
EPIGRAMA
Para onde me
fugiste, ó meu viver tranquilo?
Não durmo, não
descanso, e a todo o instante choro,
Desde que um
dia vi a embriagante Psilo,
Grácil,
dançando ao som dos seus crótalos d'ouro.
Almas! vivei
quietas,
Não mais
fiteis o Amor com trêmulo receio.
Do Amor as
áureas setas
Ei-las todas
cravadas no meu seio!
***
A LAÍS
À ciprina
Laís, alva como os goelanos,
A Laís, que
possui compridas tranças pretas,
Pelo meu
escravo mandei, no dia dos seus anos.
Um cacho
moscatel num cabaz de violetas.
Os amantes,
que dão às suas namoradas
Fulgurantes
anéis de riqueza estupenda,
Luminosos
rocais e redes consteladas,
Hão de sorrir,
bem sei, da minha pobre oferenda.
Pensei em
dar-lhe, é certo, um precioso colar,
Ou um anel com
mais luz do que o incêndio de Troia,
Mas
reconsiderei de pronto, ao atentar
Que ainda
ninguém viu dar joias a uma joia...
***
A CAMISA DE ALCIPE
Ninguém foi
mais feliz do que eu, enquanto
De Xanto o
lindo corpo agasalhava;
Só quando à
lavadeira me mandava
E que eu
vertia copioso pranto.
Mas em breve,
voltava para Xanto
E a ventura de
novo me amimava!
Por nada me
trocara, se beijava
Seu fino colo
de aprilino encanto!
Pobre camisa!
chora, pois perdeste
As tuas mais
preciosas alegrias!
Pobre camisa,
que desgraça a tua!
Há três dias
que Xanto não me veste!
Nos braços de
Antenor, há já três dias
E três noites
que Xanto vive nua!
***
A MEONIS
Não
gosto de vinho; mas se me queres ver ébrio,
chega
os teus lábios à taça e apresenta-ma depois.
(Agathias).
Como da água
foge um cão danado,
Assim do vinho
eu fujo, desde o dia
Em que,
bebendo taças à porfia,
Como um morto,
caí emborrachado.
A vista desse
ciato dourado,
Só a vista! me
turva e me agonia,
Porque o estou
vendo, ó Meonis fugidia,
Cheio dum
vinho pálido e aloirado.
Mas se a boca
chegasses, ao de leve,
Ao licor que
me é tão odioso.
— Rápido como as ondas do Peneu,
Dum trago o
beberia, ó flor de neve,
Achando-o como
o néctar delicioso
Porque nele
acharia um beijo teu!
***
O DEDAL DE HELADIA
Estava a
formosa Heladia costurando,
A sombra deste
murmuro arvoredo,
Quando caí um
dia do seu dedo
E vim pela
relva fora rebolando.
De balde me
andou ela procurando,
Não deu comigo
oculto no relvedo...
Foi-se... e eu
fiquei neste cruel degredo,
Onde vivo
gemendo e soluçando...
— Moço que
estás sentado nessa fraga,
E com a lira
os zéfiros comoves,
Leva-me a
Heladia, que deprime o dia!
Da tua
generosa ação em paga,
Ó gracioso
mancebo, talvez proves
Seus lábios de
violetas e ambrósia.
***
A LÂMPADA
A lâmpada de argila,
que ali vês,
Junto daquele
Amor fundido em cera,
Arquias, amigo
meu, não a cedera
Pela mais
gorda e mais lustrosa rês.
Para a cobrar,
daria nove ou dez
Cabras do meu
rebanho, se a perdera,
E uma palavra
nunca mais dissera,
Se, de tê-la,
o penhor fosse a mudez.
Sem de leve
hesitar, rejeitaria
Quanto em
troca me dessem: mel dourado,
Ouro em barra,
marfim, prata brilhante!
Não julgues
que lhe quero em demasia.
Pois foi à sua
luz que eu vi, pasmado,
O corpo nu da
glacial Rodante.
***
EPIGRAMAS GREGOS
(Imitações)
De Maleagro:
Tens visco,
meu amor na boca de cerejas,
Cheio de fogo
tens o olhar com que me excitas
Prendes os que
beijas,
Queimas os que
fitas.
De Cillactor:
Um beijo dado
É uma delícia,
um favo de doçura;
Mas se é
comprado
O heléboro
vence em amargura.
De Paulo, o Silenciário.
Em tudo o que
o rodeia, o homem danado vê
A imagem do
animal, que o esmordaçou, ferino:
Devo danado
estar, ó pálida Cloé,
Pois vejo em
toda a parte o teu rosto divino!
Do mesmo:
Dispamo-nos,
amor! Nua, abriga depressa,
No meu, teu
corpo, que é um jaspe da Lacônia:
A gaze que te
cinge, acho-a bem mais espessa
Que as
muralhas brutais, que cercam Babilônia!
De um Anônimo:
Enquanto és
nova, gozal alia-te ao prazer!
A beleza é
fugaz, amiga, não te iludo:
Basta um estio
só, um só! para fazer
Dum cabrito
gentil um bode cabeludo...
De Lucílio:
Bianor, que
primou na arte de pintar
Tem vinte
filhos... Zeus! que berros, que gemidos-
O pobre não
sofreu! Mas... coisa singular!
Entre os vinte
não há dois que sejam parecidos....
Do mesmo:
Quando,
vaidosa, pinta as farripas grisalhas,
Temístonoe,
que tem a idade de três gralhas,
Em tenra moça
não se metamorfoseia
Mas sim em
deusa... Olhai: parece a velha Rea!
Do mesmo:
Tendo visto
uma noite o seu médico em sonhos,
Diofante, que
hoje vive em martírios medonhos,
Nunca mais se
tornou a levantar do leito,
Muito embora
trouxesse um amuleto ao peito.
Do mesmo:
Demóstenes
possui um espelho que lhe mente.
Se o espelho
não mentisse, aquela feia harpia
De certo o
quebraria
Em vez de o
consultar continuadamente.
Do Imperador Trajano:
Se acaso o teu
carão o ruivo sol defronta
E a tua boca
enorme abres no mesmo instante,
Aos que vão a
passar, do teu nariz a ponta
Indica a hora,
como um ótimo quadrante.
De Amieno:
Liberto enfim
dos mundanais vaivéns,
Seja-te leve a
terra, ó maldizente!
Seja-te leve
sim... para que os cães
Possam
desenterrar-te facilmente!
***
ODES DE HORÁCIO
Et
tenuit nostras numerosus Horatius aures,
Dum
ferit Ausonia carmina culta lyra.
Ovídio.
A LEUCONOE
Leuconoe,
andas mal se o escuro fim defrontas,
Que os Deuses
nos darão; babilônicas contas
Não faças. O
melhor é desprezar a sorte!
Quer nos dê
Jove mais invernos quer a morte
Nos dê neste,
que esfalfa entre escolhos maninhos
O mar tirreno,
sê prudente, filtra os vinhos
Coarcta o
sonho: ao falar, ciosa a vida nos foge...
Que importa o
dia de amanhã? Gozemos hoje.
A LÍDIA
Quando gabas,
ó Lídia! o pescoço rosado
De Telefo e
também os seus braços de cera,,
Nesses instantes,
ai! a bílis, que exaspera,
Quase faz
estourar meu fígado abrasado.
Foge- me a cor
do rosto, e da cabeça o tento,
E pelas faces
sem cor, furtivo, deslizando,
Das lágrimas o
curso indica o fogo lento
Que me vai cá
por dentro o coração minando.
Sinto-me em
brasas, Lídia, ao achar, na brancura
Dos teus
ombros, sinais duma avinhada orgia,
Ou se, à flor
dessa boca, o meu olhar espia
Do moço
desvairado, a funda mordedura.
Acredita-me,
Lídia! há de ser fugidio
O amor de quem
tortura essa boca formosa,
Esses lábios
gentis que a Mãe do Amor ungiu
Do néctar, que
possui, com a parte mais preciosa.
Três vezes, e
ainda mais! felizes, os amantes
Que um forte
laço nunca deixa de apertar,
E cujo amor,
alheio às questões irritantes,
Só poderá
morrer quando a morte os levar.
A CLOÉ
Evitas-me,
Cloé, qual veado mimoso,
Que procurando
vai, em cerradas boscagens,
A inquieta
mãe, candidamente receoso
Das auras e
folhagens.
Tremem-lhe o
coração e as pernas, quando fita
As folhas que
de abril a viração esgarça,
Ou se acaso um
lagarto, ao perpassar, agita,
Todo verde,
uma sarça.
Leão getúlio
não sou, nem tigre que, em daninha
Fúria, te siga
afim de te despedaçar:
Deixa enfim
tua mãe! és uma mulherzinha,
Precisas de
casar!
A VÊNUS
Da amada
Cripre sai, tu cujo arbítrio impera
Em Gnido e
Pafos, e, p'ra tua habitação,
Vênus! elege a
linda casa de Glicera,
Que, ao
invocar-te, queima incenso em profusão.
Traze o
Menino, que anda eternamente a arder,
Mercúrio, as
Ninfas e as três Graças, sem que odiável
Cinto as
oprima... e não te esqueças de trazer
A Mocidade,
que sem ti é pouco afável.
A ÁLBIO TÍBULO
Álbio! ao
lembrar-te de Glicera, essa traidora,
Não chores
tanto nem recites com tristura
Versos cheios
de dor, só porque um moço agora,
Mais novo do
que tu, entontece a perjura.
Por Ciro, arde
de amor Lícoris, que tem fino,
Lindo rosto;
Foloe manda que a desamparem
De Ciro os
olhos... e amará o adulterino
Quando aos
lobos da Apúlia as cabras se ajuntarem,
Ordens de
Vênus são! Para se distrair,
Compraz-se
Vênus nestes jogos odiáveis,
E a uma canga
de bronze é-lhe doce jungir
Corpos e almas
que são irreconciliáveis.
Linda dama
enjeitei eu próprio, ao suportar
Da liberta
Mirtale os grilhões (peso brando!),
Mirtale tão
hostil como o Adriático mar
Que da
Calábria vai os golfos escavando.
AO SEU ESCRAVO
Da Pérsia a
ostentação não a posso tragar.
Quando cascas
da tília as atam, são-me odiosas
As coroas; meu
rapaz, é inútil procurar
Os sítios onde
estão medrando as tardas rosas.
Nada ajuntes
ao mirto, ó servo diligente:
Fica-te a
fronte pelo mirto bem coroada,
Quando me
enches a taça; e esta fronte igualmente,
Quando estou a
beber sob a fresca latada.
***
CANTO AMEBEU
HORÁCIO
Enquanto te
agradei, ó Lídia! e nenhum moço,
Vencendo-me,
cingia
Teu nevado
pescoço,
Mais feliz do
que o rei da Pérsia então vivia.
LÍDIA
Enquanto a
todas me preferias com ardor,
E até mesmo a
Cloé me achavas superior:
Eu, Lídia, que
pertenço a uma ilustre família,
Com tal glória
vivi, que me invejara Ília.
HORÁCIO
Hoje adoro
Cloé, flor na Trácia nascida,
Insigne
citarista e suave cantora;
Por ela, sem
receio, abandonara a vida,
Se. ao morrer,
lhe tornasse a vida duradoura.
LÍDIA
De Ornítio,
natural de Túrio, o filho queima
Meu coração,
que por seu turno queima o dele;
Chama-se
Calais: duas mortes com fleima
Eu aturara, p'ra
dar vida a esse donzel.
HORÁCIO
Que farias se
o Amor, que nos uniu outrora,
Ao seu jugo de
bronze agora nos unisse,
E se, depois
de eu despedir Cloé, a loura,
A ti, que eu
desprezei, minha porta se abrisse?
LÍDIA
Embora Calais
vença em luz os espaços.
Embora sejas
como a cortiça erradia
E iroso como o
Adriático, em teus braços
Viveria feliz
e feliz morreria.
A CLÓRIS
Do pobre
Íbico, ó esposa!
Um termo põe
enfim à tua corrupção,
Às vis
ocupações dessa vida ascorosa.
És velha, vais
morrer: não te entremetas, não,
Nos brincos
das donzelas,
Não vás
enevoar as cândidas estrelas.
O que a Foloe
vai bem, não te vai bem a ti:
Deixa que tua
filha invada, com ardor,
Dos mancebos a
casa, em doido frenesi,
Qual bacante
inflamada ao rufo do tambor;
O amor de Noto
a faz andar num corrupio
Tal, que
parece até uma cabra com cio.
Entretém-te a
fiar, Clóris, a lã das rezes
Da Lucéria
imortal: já não te ficam bem
As liras, da
roseira a flor purpúrea, nem
Os banquetes
em que se esgota o vinho e as fezes.
A DIANA
Virgem, que
estás guardando as montanhas e as matas,
Deusa
triforme, que, três vezes invocada,
Ouves a jovem
mãe e da morte a arrebatas
Quando sofre
no leito, ao parir, angustiada:
O pinheiro que
ensombra o meu casal, dedico-o
A ti, e, bem
contente,
Dum varrasco, que
já ensaie o olhar oblíquo,
Com o sangue
hei de aspergir o seu tronco, anualmente.
A VÊNUS
Até há pouco,
fui olhado com paixão
Pelas
donzelas, e com glória combati...
O alaúde, que
já cumpriu sua missão,
E estas armas
marciais, deixo tudo hoje aqui,
Neste muro,
que da marinha Mãe do Amor
À esquerda
fica. Amigos meus: tochas luzentes
E alavancas
também, vinde-as aqui depor
E os arcos
sempre hostis às portas resistentes!
Deusa que tens
de Chipre a ilha bem-ditosa,
E Mênfis, que
jamais viu a sitônia neve,
Com o açoite
divinal fustiga a orgulhosa
Cloé... Porém,
rainha, açoita-a bem de leve...
***
EPÍLOGO
Das pirâmides
reais ultrapassando a ponta,
Mais durável
que o bronze, um monumento fiz;
Nem a chuva
voraz, nem os ventos hostis,
Nem do tempo o
fugir, nem os anos sem conta.
O abalarão!
Não morrerei inteiramente!
Uma parte de
mim fugirá certamente
A Libitina; e
sem na idade achar quebranto,
No porvir,
minha lama há de crescer enquanto
Subir ao
Capitólio o Pontífice, ao lado
De muda
virgem. Lá, onde o Áufido irado
Brame, e onde
Dáuno governou a dura grei
Dum agreste
país, dir-se-á que fui eu quem,
Ilustrando o
meu berço, a eólia feição dei
A poesia
latina. O Melpomene, vem,
Vem, favorável
mas justamente altaneira,
Com os louros
délficos cingir-me a cabeleira!
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