6/06/2020

O primeiro romance de Camilo (Resenha)



O primeiro romance de Camilo
Algumas revelações críticas de importância  fornece  o primeiro  romance de Camilo Castelo Branco, Anátema  por apresentar,  em síntese,  os temas fundamentais e o tratamento temático que caracterizarão, futuramente, o conjunto de sua obra romântica.
O romance apresenta um tom novelesco, representado pela  somatória dos  conflitos  narrados,  conflitos  estes que se sucedem linearmente, univocamente. Cada um destes dramas representa um episódio, cinco, ao todo, no romance: o de Pedro da Veiga e Custódia Osório; o de Micaela; o de Cristóvão da Veiga; o de Antônia Bacelar; o do Padre Carlos. Os episódios são alinhavados à custa dos processos formais mais típicos de Camilo (por exemplo: "se está decidido que os caranguejos  não  andam para   diante, nem são estacionários, este romance e uma espécie de caranguejo literário: recua, pelo menos, vinte anos em cada capítulo"); o diário revelador, possibilitando terreno para um novo conflito (corresponde ao documento, tão usitado no romance camiliano), e elaborado por uma personagem ligada à figura cuja vida se desenvolve no escrito; convergência dramática, a que a solução do "mistério" leva (em nosso caso, a busca do significado cabalístico do termo "anátema", materializando a vingança do Padre Carlos), — até alcançar a exata confluência do tempo inicial do romance com o tempo atual do desenvolvimento da ação, E caminhando para o epílogo, em que a ironia da fatalidade se manifesta (Timóteo, inquiridor do algoz de sua mãe e confessor de sua desonrada Micaela como em Carlota Angela, Francisco Salter,  ou  Frei  Francisco,  assistindo os algozes de sua amada).
Em síntese, apoiada nesses recursos de ordem técnica, a intriga do Anátema abre-se angulosamente e depois converge, possibilitando o contato dos vários episódios que constituem a contextura dramática da obra, dando-lhe o tom novelesco que aduzimos.
Não é de admirar que todo o romance oscile entre a ironia humorística e a contenção dramática, se se partir do princípio que a ficção romântica atém-se a duas realidades dicotômicas: a observação do mundo que rodeia as personagens no momento da ação e a criação de uma intriga amorosa. No Anátema, o mundo exterior, a realidade que delimita o cenário da ação, não aparece com intensidade. Assim, por exemplo, Vila Real — plano de fundo de um episódio do romance — não é retratada com aqueles ingredientes que Camilo usou na fase passional de sua obra de ficção. São apenas algumas notas irônico-humorísticas, digressões em torno da criação da prosa literária, caricatura de determinadas personagens, sátira à inverossimilhança de certas situações, referências esparsas ao Romantismo, ao romanesco, à fradaria. Como se percebe, não são elementos concretos para o cenário da ação, mas simplesmente inserções digressivas, sugeridas pelo desenrolar da narrativa, e não comprometidas com a intenção de fixar quadros sociais de uma época, como acontece em grande número dos romances passionais de Camilo e nos romances, tanto portugueses, como brasileiros, da época, preocupados com o retrato da Burguesia.
Estas digressões traduzem a dicotomia tônica do romance: contenção dramática, emparelhada com a jocosidade, com a ironia, com o humorismo. Claro está que, nos outros romances camilianos, a observação da realidade também aparece limitada; mas, surge um cenário verossímil, enquanto se presta para o desenvolvimento da intriga amorosa. E podemos perceber quanto está limitada esta observação do mundo exterior, se colocarmos em paralelo o romance de Júlio Dinis, inquestionavelmente animado por uma preocupação de fixar a realidade portuguesa de sua época e "momentos" de ação, o que precede ao gosto pelo desenvolvimento da trama amorosa, geralmente simplista. É que Camilo (e o Anátema exemplifica isso com propriedade) quer, antes desenvolver as peripécias da intriga amorosa, que fazer retrato da Burguesia.
Assim, no Anátema, o núcleo dos episódios é sempre de natureza amorosa: a própria vingança do Padre Carlos tem um eixo amoroso, a ligação de Manuel de Távora e Inês. A vingança está esquematizada na mente do Padre Carlos como repetição da situação dramático-amorosa vivida por sua mãe, Antônia Bacelar — desonrada por Cristóvão da Veiga, pai de Inês — e, para isso, age ele até como alcoviteiro.
Infere-se, daí, que o tema fundamental do Anátema é o amor, entendido nos termos da estética romântica, e já fazendo pressentir os ingredientes fundamentais do passionalismo que impregnará, futuramente, as principais obras camilianas: consciência irredutível do fatalismo que cerca este sentimento, a desonra, o temor da demência, o convento, o suicídio...
Em suma, pela originalidade de algumas soluções estéticas, pelo prenúncio da direção futura dos romances de Camilo, cremos merecer o Anátema referência, pois, parece-nos, transcende ele os simples limites de interesse puramente histórico de primeiro romance do Autor.
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NAIEF SÁFADY
Revista do Livro, dezembro de 1956.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2020).

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