11/07/2020

O adereço (Conto), de Guy de Maupassant

 


O adereço

Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2020)

Era uma dessas encantadoras mulheres, nascidas como que por uma zombaria do destino numa família de empregados. Não tinha dote, não tinha esperanças, nem meio algum de tornar-se conhecida, compreendida, amada, desposada por um homem rico e distinto; e consentiu em casar com um amanuense do ministério da instrução pública.

Foi simples uma vez que não podia ir luxuosamente, mas sentia-se infeliz como que fora de lugar; porque as mulheres não têm nem raça nem casta: a sua beleza, a sua graça e o seu encanto servem-lhe de estirpe e de família. A sua delicadeza nativa, o seu instinto de elegância, a sua gentileza de espírito, são o seu único grau hierárquico e tornam as filhas do povo iguais às damas do mais fino trato.

Sofria incessantemente, sentindo que nascera para todas as delicadezas e para todas as ostentações. Sofria com a pobreza da sua habitação, com o precariedade das suas paredes, com a escassez da mobília e com a fealdade dos estofados. Todas essas coisas, cuja ausência qualquer outra mulher da sua condição nem mesmo teria notado, a torturavam e indignavam.

A visão da rasteira bretã que tratava do seu lar humilde despertava nela desolados amargores, e devaneios tristíssimos. Ela sonhava com as antecâmaras silenciosas, atapetadas de panos orientais, alumiadas por altos tocheiros de bronze, e com os dois altos criados de quarto, de calção e sapatinho leve, que dormem nas largas poltronas, entorpecidos pelo pesado calor do fogão.

Sonhava com os vastos salões revestidos de seda antiga, de móveis finos suportando bibelôs inestimáveis, e com as saletinhas adornadas, perfumadas, feitas para a conversação das cinco horas com os amigos mais íntimos, os homens conhecidos e disputados de que todas as mulheres desejam as atenções.

Quando se sentava para jantar, diante da mesa redonda coberta por uma modesta toalha, em frente de seu marido que destampava a panela declarando com ar encantado: "Ah! que belo cosido! não há nada melhor do que isto..." ela pensava nos jantares finos, nas baixelas de prata reluzentes, nas tapeçarias que povoavam as paredes de personagens antigos e de aves estranhas e raras no meio de uma floresta mágica; ela sonhava com manjares esquisitos, servidos em baixelas maravilhosas, com as galanterias cochichadas e escutadas com um sorrir de esfinge, enquanto se comia a polpa rósea de um fruto ou as asas de uma ave excêntrica e delicada. E ela não amava senão essas coisas; sentia que tinha nascido para elas. Tinha tanto desejo de agradar, de ser invejada, de ser seduzida e disputada!

Tinha uma amiga rica, uma antiga companheira de convento que nunca ia visitar, tanto se sentia sofrer ao voltar a sua casa. E chorava durante dias inteiros, de pura mágoa e amargura, de desespero e angústia.

***

Ora, uma noite, seu marido entrou com um ar glorioso e tendo na mão um largo sobrescrito.

— Aqui tens, lhe disse, é alguma coisa para ti.

Ela rasgou apressadamente o papel e tirou de dentro um cartão que continha estas palavras:

"O ministro da instrução pública e a senhora Georges Ramponneau pedem ao Senhor e Senhora Loisel a honra de virem passar a noite ao palácio ministerial, na próxima segunda-feira, 18 de janeiro."

Em vez de ficar maravilhada, como o esperava o marido, ela atirou com despeito o convite para cima da mesa, murmurando:

— Para que quero eu isto?

— Mas, minha querida, eu pensava que ficarias satisfeita. Como nunca sais de casa, era uma bela ocasião esta, mesmo bela! Tive a maior dificuldade em obter o cartão. Toda a gente deseja tais convites; são muito procurados e não são muito dados aos empregados. Terás ocasião de ver todo o mundo oficial.

Ela olhou-o irritada, e declarou com impaciência:

— Mas que queres tu que eu vista para lá ir?

Ele não tinha pensado nisso; balbuciou:

— Mas o vestido que levas ao teatro, parece-me muito bom, pelo menos a mim...

E calou-se, estupefato, quase louco, ao ver que a esposa chorava. Duas grossas lágrimas desciam lentamente dos cantos dos seus olhos para os cantos da boca; ele balbuciava:

— Que tens tu? que tens tu?

Mas, num esforço violento, ela dominara o seu desgosto e respondeu em voz calma, enxugando as faces úmidas

— Nada. Não tenho toilette e por isso não posso ir a essa festa. Dá o teu cartão a qualquer colega teu que tenha a mulher melhor trajada que eu.

E ele estava desolado, tornou-lhe:

— Vejamos, Matilde. Quanto é que poderá custar isso, uma toilette decente, que possa servir não só para esta mas para outras ocasiões, qualquer coisa bastante simples?

Ela refletiu alguns segundos, fazendo as contas e pensando ao mesmo tempo na soma que poderia pedir sem provocar uma recusa imediata e uma exclamação assustada de amanuense econômico.

Enfim, respondeu hesitante:

— À justa, à justa, não sei, mas parece-me que quatrocentos francos talvez pudessem chegar.

Ele empalideceu um tanto, porque era justamente a soma que reservava para comprar uma espingarda e para tomar parte em algumas partidas de caça, no verão seguinte, nas planícies de Nanterre, com alguns amigos que iam atirar às cotovias, por aqueles lugares, aos domingos.

No entanto, disse:

— Seja. Dou-te os quatrocentos francos. Mas vê se compras um vestido a valer.

***

O dia da festa aproximou-se, e a senhora Loisel parecia triste, inquieta, ansiosa. Todavia, a sua toilette estava pronta. Seu marido disse-lhe uma noite:

— Que tens tu? Vejamos, andas tão pensativa de há uns três dias para cá?

E ela respondeu:

— Ando aborrecida por não ter uma joia, pedra, nada que possa pôr sobre mim. Tenho, apesar do  vestido, uma aparência de miséria. Não queria mais ir nesse evento.

Ele respondeu:

— Porás flores naturais. É a moda desta estação. Com dez francos podes ter duas ou três rosas magníficas.

Ela não se convenceu.

— Não... nada há mais humilhante que ter a aparência pobre entre mulheres ricas.

Mas o marido exclamou:

 Também, não sabes nada! Por que não vais a casa da tua amiga, a senhora Forestier e não lhe pedes emprestadas as joias dela? Parece-me que tens com ela a confiança suficiente para fazeres isso!

Ela soltou um grito de alegria:

— É verdade. Nem pela cabeça me passava tal!

No dia seguinte, a senhora Loisel dirigiu-se à casa da sua amiga e contou-lhe a sua mágoa.

A senhora Forestier foi ao seu armário de espelho, pegou num largo cofre, trouxe-o, abriu-o, e disse à sua amiga:

— Escolhe minha querida.

Ela viu em primeiro lugar os braceletes, depois um colar de pérolas, depois uma cruz veneziana, em ouro e pedraria, de um admirável trabalho. Experimentou esses adornos diante do espelho, hesitou, não podendo decidir-se a deixá-los, a entregá-los.

E continuou a perguntar:

— Não tens mais?

— Tenho, sim. Escolhe. Mas é que eu não sei o que te possa agradar.

De repente ela descobriu, numa caixa de cetim preto, um soberbo colar de diamantes; e o seu coração pôs-se a bater num desejo imoderado. Pô-lo em redor do pescoço, sobre o seu corpo de vestido, e ficou em êxtases diante dela própria.

Depois, perguntou, hesitante e cheia de angústia:

— Não poderias emprestar-me isto, apenas isto?

— Mas, por que não?

Ela saltou ao pescoço da amiga, beijou-a com ternura, depois fugiu com o seu tesouro.

***

Chegou o dia da festa. A senhora Loisel fez sucesso. Era a mais bonita de todas, elegante, graciosa, sorridente e louca de alegria. Todos os homens a miravam, perguntavam o seu nome, diligenciando ser-lhe apresentados. Todos queriam valsar com ela. O próprio ministro notou-a.

Ela dançava com embriaguez, com arrebatamento, estonteada pelo prazer, não pensando em mais nada, a não ser no triunfo da sua beleza, na glória do sucesso, numa espécie de nuvem de felicidade feita de todas aquelas homenagens, de todas aquelas admirações, de todos aqueles desejos despertados, daquela vitória tão gratificante e tão completa para o coração das mulheres.

Partiu pelas quatro horas da manhã. Seu marido tinha dormido desde a meia-noite, numa saleta deserta, com três outros cavalheiros cujas mulheres se divertiam imensamente.

Deitou sobre os ombros da esposa os agasalhos que lhe tinha levado para a saída, modestos trajos da vida ordinária, cuja pobreza debatia com a elegância da toilette de baile. Ela sentiu-os e quis fugir a eles, para não ser notada pelas outras mulheres que se trajavam em ricas peles.

Loisel deteve-a:

— Espera um pouco. Vais-te constipar. Vou buscar um carro.

Mas ela não o escutava e descia rapidamente a escada. Quando chegaram à rua, não acharam carruagem, e puseram-se a procurá-la, gritando pelos cocheiros que viam passar de longe.

Desciam para as bandas do Sena, desesperados, tremendo de frio. Afinal encontraram no cais um desses velhos "coupés" noctâmbulos que não são vistos em Paris senão quando chega a noite, como se se envergonhassem da sua miséria para aparecerem durante o dia.

Foi esse o que os conduziu até à porta, na rua dos Mártires, e subiram tristemente para casa. Acabara-se tudo para ela. E ele pensava que tinha de estar no ministério às dez horas.

Ela despiu as vestes em que tinha envoltas as espáduas a fim de se ver mais uma vez em toda a sua glória. Mas de repente soltou um grito. Não tinha o colar ao redor do pescoço!

Seu marido, já meio despido, perguntou:

— Que tens?

Ela voltou-se para ele, atabalhoada:

— Tenho... tenho... falta-me o colar da senhora Forestier.

Ele levantou-se como louco:

— O quê?... como?... isso não é possível!

E puseram-se a procurar nas pregas do vestido, nas rugas do manto, nas algibeiras, por toda a parte. Não acharam nada.

Ele perguntou:

— Estás certa de que ainda o tinhas quando saíste do baile?

— Sim, dei por ele ainda no vestíbulo do ministério.

— Mas, se o tivesses perdido na rua tê-lo-íamos visto cair. Deve mais é estar no fiacre.

— Sim. É provável. Tomaste-lhe o número?

— Não. E tu, não o decoraste?

— Não.

Contemplaram-se aterrados.

Loisel vestiu-se.

— Vou — disse ele — tornar pelo mesmo caminho pelo qual viemos a pé, para ver se o encontro.

E saiu.

Ela permaneceu com a toilette do evento, sem coragem para se deitar, abatida sobre uma cadeira, sem energia, sem pensamentos.

Seu marido entrou pelas sete horas. Não tinha achado nada.

Dirigiu-se à polícia, aos jornais, prometendo recompensas, às companhias de carruagens baratas, a toda a parte, enfim, aonde um raio de esperança o podia conduzir.

Ela esperou todo o dia, no mesmo estado de susto em que a deixara tão tremendo desastre.

Loisel voltou à noite, com o rosto abatido, pálido; nada tinha descoberto,

— É preciso — disse — escrever à tua amiga dizendo-lhe que quebraste o fecho do colar e que o mandaste reparar. Isso dar-nos-á tempo de o continuar a procurar.

Ela escreveu de acordo com o que dizia o marido.

Ao fim de uma semana, tinham perdido toda a esperança. E Loisel, que durante esse tempo envelhecera bem por cinco anos, declarou:

— É preciso tratar de substituir aquela joia.

No dia seguinte, pegaram no estojo que contivera o colar e dirigiram-se à casa do joalheiro, cujo nome se achava no interior da caixa. Ele consultou os livros:

— Não fui eu, minha senhora, que vendi esta joia, devo ter fornecido só o estojo.

Então eles foram de joalheiro em joalheiro, procurando um adorno igual ao outro, consultando as suas recordações, ambos doentes de pura angústia e desgosto.

Encontraram, numa loja do Palais Royal, um rosado de diamantes que lhes pareceu perfeitamente igual àquele que procuravam. Tinha o preço de quarenta mil francos. Davam-lho em última instância por trinta e seis mil.

Pediram ao joalheiro que o não vendesse pelo prazo de três dias, sob condição de que o iriam entregar por quatro mil francos, se o primeiro fosse encontrado antes de fins de fevereiro.

Loisel possuía dezoito mil francos que herdara de seu pai. Pediria emprestado o resto.

Pediu emprestados mil francos a um, quinhentos a outro, cinco luíses aqui, três luíses acolá. Assinou letras, assumiu responsabilidades desastrosas, contratou com os agiotas, com todas as raças de usurários.

Comprometeu-se para o resto dos seus dias, arriscou a sua assinatura sem mesmo ver se de seus contratos poderia sair com honra, e horrorizado com as angústias do futuro, com a negra miséria que sobre si ia desabar, com a perspectiva de todas as privações físicas e de todas as torturas morais, foi buscar o novo colar, depondo sobre o balcão os trinta e seis mil francos.

Quando a senhora Loisel tornou o colar à senhora Forestier, esta disse-lhe, com ar abespinhado:

— Bem podias ter-mo trazido mais cedo, porque eu podia precisar dele.

Ela não abriu o estojo, como a sua amiga temia. Se desse pela substituição, que pensaria? que diria? Não a tomaria por uma ladra?

***

A senhora Loisel conheceu então a vida horrível das pessoas necessitadas. Tomou o seu partido, encarando a vida de frente, heroicamente. Era preciso pagar aquela espantosa dívida. Pagá-la-ia. Despediu a criada; mudaram de casa, e alugaram uma habitação miserável.

Ela conheceu os pesados trabalhos domésticos, as odiosas tarefas da cozinha. Lavou a louça, gastando as suas unhinhas róseas nas tigelas gordas e no fundo das caçarolas. Ensaboava a roupa que punha a enxugar numa corda; todas as manhãs ia pôr à porta o balde do lixo, e descia a vir buscar a água, detendo-se em cada degrau, a fim de respirar. E, vestida como uma mulher do povo, ia ao lugar da hortaliça, à mercearia, ao açougue, de cesto no braço, regateando e sendo injuriada, defendendo a todo o custo o seu miserável dinheiro.

Todos os meses era preciso pagar umas letras, renovar outras, obter reformas.

O marido trabalhava, agora, também às tardes, fazendo a escrituração de um comerciante, e à noite, muitas vezes, fazia cópia a cinco centavos a página. E esta vida durou dez anos.

As fim dos dez anos, tinham pago tudo, tudo, com as taxas da agiotagem, com os juros fabulosos.

A senhora Loisel parecia então velha.

Tornara-se uma mulher forte, dura e rude das famílias pobres. Mal penteada, com as saias de través e as mãos avermelhadas, falava alto, e esfregava a valer o soalho.

Mas por vezes, quando o marido se encontrava na repartição, ela sentava-se à janela e pensava naquele evento de outrora, naquele baile onde fora tão festejada.

Que seria àquela hora feito dela se não tivesse perdido o colar? Quem sabe? quem sabe? Como a vida é singular e transitória! Como pouco basta para nos perder ou nos salvar!

***

Ora, um domingo, como ela fosse dar uma volta pelos Campos Elíseos, para se distrair dos cuidados da semana, viu de repente uma mulher que passeava com um garotinho. Era a senhora Forestier, parecendo conservar a sua juventude, ostentando ainda a inalterável formosura cheia de seduções.

A senhora Loisel sentiu-se comovida. Devia falar-lhe? Sim, decerto. E agora que tudo havia pago, contar-lhe-ia tudo. Por que não?

Aproximou-se.

— Bons dias, Joanna.

A outra, não a reconhecendo, mostrou-se admirada de ser tratada tão familiarmente por aquela burguesa. Balbuciou:

— Mas... minha senhora... Não sei... Mas deve haver engano...

— Não há. Eu sou a Matilde Loisel.

A amiga soltou um grito:

— Oh!... minha pobre Matilde, como estás mudada!...

— Sim, tenho passado dias bastante amargos, desde que deixamos de nos ver; muitas misérias... e tudo por causa de ti.

— Por causa de mim... Como assim?

— Recordas-te do colar de diamantes que me emprestaste para ir á festa do Ministério?

— Sim. E então?

— E então, eu perdi-o.

— Como! pois se tu mo entregaste.

— Entreguei-te outro igual. E há dez anos que eu e meu marido o andamos a pagar. Bem deves entender que o caso foi para nós bastante duro, pois não tínhamos nada... Enfim, acabou-se, tudo está pago já, e sinto-me brutalmente contente.

A senhora Forestier prestou toda a atenção.

— Dizes que compraste um colar de diamantes para pôr no lugar do meu?

— Sim. E tu não deste por isso, hein? Parece-me que eram bem iguais.

E a senhora Loisel sorria com orgulhosa e ingênua alegria.

A senhora Forestier, muito comovida, tomou-lhe as duas mãos.

— Oh minha pobre Matilde! Mas o meu colar era de diamantes falsos. Valia pouco mais de quinhentos francos!...

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