12/12/2020

A primeira bebedeira (Conto), de Júlia Lopes de Almeida

 


A primeira bebedeira

 – Não saias hoje, meu filho! A noite está tão feia! Que necessidade tens tu de te expor ao tempo? 

– Descanse, minha mãe, que eu voltarei cedo... 

– Mas repara que é hoje o dia do meu aniversário, que há de vir alguém ver-me, e a tua ausência será censurada... 

– Descanse, minha mãe, que eu voltarei cedo... 

– A noite está escura e o caminho é tão mau... 

– Descanse, minha mãe... 

– Que voltarás cedo, não é assim? Pois faze o que quiseres, na certeza de que me dás um desgosto... Adeus! 

– Até já, mamãe. 

E o moço saiu. Caía uma chuva miudinha, peneirada, leve, e no céu tenebroso não luzia uma estrela. De longe em longe a luz de um lampião iluminava um bocado da rua barrenta, ladeada de mato, sem calçada. Sentia-se o respingar delicado das gotinhas de chuva nas folhas, e ao longe nuns charcos, umas rãs coaxavam. Ao cabo de um quarto de hora o moço batia com a bengala nas grades de um jardim. 

Ouviu abrir-se e fechar-se rapidamente uma porta; depois, uns passos ligeiros quebrando a areia do jardim e uma voz doce dizer-lhe: 

– Não posso demorar-me agora... meu tio está em casa! 

– Que importa? E eu não deixei minha mãe, hoje, dia de seus anos? 

– Ah! mas isso é diferente... Os homens fazem tudo que lhes apraz!... 

– Mas eu tenho muito que lhe dizer, Albertina! 

– Volte logo, às dez horas... falar-lhe-ei da janela... 

– Escute... 

– Não posso... estão-me chamando, adeus! 

E o vulto embuçado da bela Albertina tornou a desaparecer entre os arbustos do jardim. Depois ouviu-se de novo abrir e fechar rapidamente uma porta, e ficou tudo silencioso. 

Contrariado, o moço lembrou-se da promessa que fizera a mãe; mas, como voltar, se a Albertina lhe dizia que a fosse ver às dez horas? Decididamente era preferível fazer a vontade à última. A mãe que se resignasse... 

Para não esperar ali, na rua, tolamente, lembrou-se de ir passar uma hora no botequim do bairro, onde tinha a certeza de encontrar amigos. 

Assim foi. Junto a uma mesinha de pedra conversavam alto, rindo, três colegas seus, rapazes ainda muito novos, imberbes como ele, afetando um ar de estroinas, de boêmios românticos, convictos de gozarem assim a sua mocidade, apenas desabrochada e já tanto murcha pelas extravagâncias. 

Logo que o viram entrar, fizeram os outros grande algazarra; manifestaram espanto, atirando ao ar frases bombásticas salpicadas de adjetivos flamejantes e das mais conhecidas locuções latinas. Abriram-lhe lugar e encheram-lhe o cálice de conhaque. Estabelecida a palestra, o da direita ofereceu-lhe charutos, o da esquerda apresentou-lhe um fósforo aceso, e o que estava em frente renovou-lhe o conhaque do cálice. E este criticava-o por achá-lo acanhado, esquerdo; aquele, porque mostrava pouca prática das rapaziadas alegres; aquele outro, porque lhe percebia na fraseologia uma chateza das palestras familiares, inspiradas pelos conselhos da mamãe nos sertões caseiros. 

– Um pouco de atrevimento, um pouco ao menos! Meu caro! – Dizia um; e logo outro: 

Audaces fortuna juvat... 

– Isto de homens maricas só servem para uma coisa: envergonhar a espécie! 

– Apoiado... 

– Apoiado! 

Aquelas advertências humilhavam o rapaz. Realmente ele começava a achar-se ridículo, parvo e infeliz. Não encontrava justificação para a sua timidez; daria tudo para convencer os colegas de que era folgazão e gozava a vida; de que tinha proezas, e não obedecia à família tanto quanto supunham. Chegou mesmo a falar na independência do seu caráter, na sua maneira altiva de tratar os superiores e nos recursos monetários que não lhe faltavam nunca... Ia bebendo. 

– Bravo! À tua saúde! 

– Bravo! 

– Bravo! 

Os copos esvaziavam-se, os olhos brilhavam e as palavras escorriam fluentes, entre casquinadas de risos e tilintar de vidros. 

Entraram depressa em assuntos de amor: um confessou fazer a corte a uma velha que lhe dava presentes, e mostrou, vaidoso e risonho, o alfinete da gravata cravejado de pedras finas. 

– Quando a desenganares avisa-me, – dizia um outro; – ando muito falto de joias. 

Sucessivamente foram-se desenrolando, entre o fumo e o cheiro forte do álcool, as histórias amorosas de todos eles, até que chegou a vez da Albertina. 

O nome da pobre moça foi inúmeras vezes repetido, e, como alguém duvidasse da veracidade do conto, o rapaz tirou do bolso uma carta, e, abrindo-a com um gesto decidido, bateu com ela na mesa, sobre o conhaque entornado. 

– Dá cá! deixa-me ver quantos erros traz... – pediu-lhe um dos companheiros. 

Ele entregou o papel e, recostando-se na cadeira, ouviu risonho e triunfante toda a carta da moça, declamada num tom enfático, embora por vezes muito arrastado. 

Choviam comentários; rebentavam a cada período gracejos brutais; e ele, que até então resguardara honestamente, com toda a delicadeza e cuidado, o seu amor expunha-o agora, sem vexame, aos companheiros indiscretos, gabando-se muito! 

– E que tal, é rica? – perguntava um. 

– E é formosa? – inquiria outro. 

Ele ia respondendo afirmativamente a todos, rindo-se, com o olhar quebrado, os braços sobre a mesa, a voz alterada e o copo entre os dedos. De vez em quando parecia compreender a realidade; queria então reagir, lutar, esconder o seu amor num melindroso recato; mas a cabeça pendia-lhe para o peito, as ideias bailavam-lhe no espírito como folhinhas num redemoinho de vento, e tudo quanto era digno, justo, e que habitualmente guardava concentradamente no coração, consentia que girasse agora, de um modo grosseiro, nesse pequeno círculo de amigos insensatos! Varriam-se-lhe depressa todos os escrúpulos! O conhaque ia arrastando as sutilezas da sua alma, afogando os seus deveres, enegrecendo a sua consciência. Deu-lhe para falar. Contou a sua vida íntima, segredos de família que não transpareciam cá fora: o pai fugira por dívidas; um tio roubara em casa de um amigo... Arremedou depois a voz da Albertina e a maneira da mãe ralhar com a criada. 

Os outros já lhe não prestavam atenção, iam bebendo, silenciosamente, até que o dono do botequim os pôs na rua. 

A chuva cessara; corria uma viração forte, embalsamada do aroma das chácaras. Os amigos seguiram abraçados, cantando alto, para a esquerda; ele subiu a rua, não errando, milagrosamente, o caminho de casa. Mal seguro nas pernas, dobrando frequentemente os joelhos, cambaleante, ora na calçada, ora no meio da rua, aproximou-se da morada de Albertina, que o esperava a um canto da varanda. Vendo-o naquele estado, ela, sem dizer nada, escondeu-se e fechou horrorizada a janela. Ele pôs-se então a gritar de baixo que não estava bêbado, que não estava! Caluniava-o quem afirmasse isso! E como a Albertina não se resolvesse a aparecer, ele desatou a chorar alto, muito alto, num berreiro desesperador. 

Passou assim algum tempo, até que, já cansado, continuou o seu caminho. A calçada acabara-se; o solo agora era desigual, barrento, coberto de lama e de poças d’água. Por um prodígio estranho conseguiu conservar o equilíbrio; Ia de bordo em bordo, muito agoniado, com grandes tonturas e dores de cabeça. Ao pé de casa havia uma ladeirinha escorregadia... ali não se pôde suster, os joelhos dobraram-se-lhe, vieram-lhe ao mesmo tempo os vômitos, e ele caiu. 

Palpitavam-lhe com força as artérias das fontes, martelando-lhe pancadas dolorosas; não podia mover o corpo, muito pesado; e começava de ter a percepção da sua vergonha. Um cão lambeu-lhe e bafejou-lhe a cara; a viração fria da noite pareceu-lhe depois cortar com uma chicotada a face, molhada da baba do animal. 

Estava assim, coberto de imundície, quando a mãe surgiu, com um xale pela cabeça, à porta da habitação, a observar se o filho viria perto ou não; dando com ele, assim caído, julgou-o doente ou ferido, e ajoelhou-se depressa a apalpá-lo. 

Chamou-o devagar, cariciosamente; não ouvindo resposta, abaixou-se mais, procurando, trêmula, escutar-lhe a respiração; mas, ao chegar a cabeça à boca do filho, recuou espavorida, sentindo o cheiro do álcool. Ele fitava nela os olhos, pasmadamente.

Não passava ninguém; fazia frio, estava escuro, e latiam ao longe os cães; no entanto a pobre mulher esforçava-se por erguer nos seus braços débeis o corpo pesado do filho, e o seu maior desejo era poder abrigá-lo no seio escondendo-o de todas as pessoas e de todas as coisas! 

Conseguiu levá-lo sozinha, através do corredor escuro, para o seu quarto; deitou-o, deu-lhe remédios, e enquanto ele dormia, ressonando alto, ela, numa agonia muda, vigiava a porta, para que alguém não fosse surpreendê-lo assim...

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