O padre Júlio voltava do Seminário, de coroa aberta e de batina, pronto para servir a Deus na sua vila mineira, alcandorada sobre precipícios de verdura e rochedos abruptos.
Alto, branco e esguio, figura mística de quem sonha e perscruta mistérios, ele derramava o olhar pelas penedias da encosta, tachonadas de flores de quaresma, sem ânimo de perguntar pela sua amada de outrora, o seu único amor, aquela pobre Ianinha, tão ardente e apaixonada, que o enlaçava nos seus braços flexíveis como hastes de hera, queimando-o com o fulgor dos seus olhos negros de mineira inculta e imaginosa.
Juntavam-se de noite nos campos, ela fugida do casebre da avó cabocla, ele da casa do tio padre. Amavam-se sob as estrelas.
Ianinha sabia contos do sertão, histórias de feiticeiras e lobisomens, que lhe contava risonha, achando graça nos seus terrores. Ele beijava-lhe a garganta túmida, pedindo-lhe que se calasse.
Tinham começado a mocidade juntos, ela era mais moça, mas muito mais precoce; ele adorava-a de joelhos, já um pouco voltado para o culto divino.
De repente interrompeu-se o idílio: o tio padre exigiu que o sobrinho fosse para o Seminário. Das fugas noturnas só eram sabedoras as estrelas. Júlio, tímido, obedecendo à vontade do velho e impelido mesmo pelo seu espírito religioso, despediu-se da amante com resignação. Ela é que teve transportes de louca, que se colou a ele como uma cobra a um tronco, dizendo-lhe que o amava, que lhe dera a sua virgindade, a sua alma, que a vida era aquilo, a liberdade, o beijo, o amor!
A tentação foi vencida, Júlio deixou-a sozinha, soluçando alto, na noite escura e silenciosa.
Agora, olhando para aquelas penedias, para aqueles vales enormes, pensava que antes a Ianinha tivesse morrido... e era essa a sua esperança! Queria ser puro, queria ser santo. Voltara-se para o Céu com fé arrojada; detestava o mundo e a carne. Vinha emundar a alma naquele mesmo desterro que enchera de beijos e abraços pecaminosos. Nos seus êxtases a figura de Ianinha atravessava-lhe por vezes a mente, como uma tentação diabólica e terrível, mostrando-lhe a alvura dos dentes, a negrura das madeixas revoltas, a rijeza dos seios morenos... Excomungava-a, amaldiçoava-a, enchia-se de cilícios, e caía chorando, contrito, esmagado pelo remorso, numa alucinação dolorosa, sem achar meio de se purificar daquele passado que o assombrava.
Antes a Ianinha houvesse morrido... Para saber isso, e com medo de
o perguntar, Júlio foi ao cemitério, que era um canteiro, de pequeno.
Ajoelhou-se em frente de cada sepultura.
De quem era esta? de quem era aquela? perguntava. O coveiro sabia os nomes de todos os enterrados. Morria-se tão pouco, ali!
Uma era da tia Zefina, outra do Simeão, outra... Eram todos velhos, muito velhinhos já. A Ianinha, então, vivia ainda!
Júlio corou, com vergonha daquele pensamento cruel. O nome da moça queimar-lhe-ia os lábios, se o dissesse, e, estava certo, toda a gente tomaria conta do seu segredo. Não, não perguntaria por ela. E, abstrato, ajoelhou-se junto de uma sepultura coberta de flores selvagens.
– Esta é de uma criança, explicou o coveiro; não deveria estar enterrada em sagrado, mas enfim...
O padre ergueu o rosto longo e pálido, numa interrogação muda.
– É do filho de uma cabocla, Ianinha. A peste não o batizou. De mais a mais ninguém sabe quem era o pai. O povo afirma que era o diabo. Dizem que a voz do povo é a voz de Deus... Quem sabe?
Júlio baixou os olhos para a terra, cruzando as mãos com força sobre o coração. O seu rosto, alvo e macilento, nada dizia, mas a batina estremecia ao arquejar do busto curvado. Sabia bem... do fundo daquela terra subia alguma coisa que o chamava, que o solicitava e lhe dizia: “és meu!”
Aquelas flores selvagens não eram uma inscrição, um nome que lhe acusava a paternidade?
O dia caía gloriosamente. Franjas de ouro e mantos de púrpura arrastavam-se pelo horizonte em nuvens grossas, embebidas de luz. Pelas penedias escarpadas as bromélias erguiam os penachos cor de fogo; piteiras enormes eriçavam os despenhadeiros, e, lá embaixo, o rio passava numa curva, caudalosamente, refletindo o céu rubro, vermelho ele próprio como uma onda de sangue.
Toda a terra parecia vitoriosa, erguendo as suas montanhas colossais, a sua vegetação estupenda, o seu cheiro de força, de amor e de fertilidade.
Júlio teve ímpetos de escavar a terra, arrancar de lá o corpo daquele desconhecido, filho do seu amor e da sua carne, de chorar sobre os seus ossos despidos, de colar-lhe na caveirinha branca os seus lábios profanos, de lhe dizer que havia ternura no seu coração que debalde procurava tornar seco e estéril, que amava nele a sua virilidade; a sua juventude, e aquela pobre Ianinha...
Nisto levantou-se, frio e assustado. Como podia ele, religioso, padre, pensar na tentação da carne, naquela criatura que estilara peçonha e dor por toda a sua vida, aquela cúmplice do demônio, que assaltava sem temor os ninhos das corujas, mostrando ao luar o negror das madeixas e a alvura dos dentes no riso selvagem?
Antes fosse ela a morta...
Demais, não a enterrara ele para todo o sempre na lembrança?
Nessa noite Júlio não dormiu. Voltava sem as ler as folhas do Breviário. Lá fora o vento soprava em roncos e uivos e a lua sumia-se em nuvens fumacentas. Se erguia o olhar, via sorrir-lhe o doce Jesus, do regaço materno, na parede em frente.
Uma criança, uma flor de carne e de sonho; que divina coisa!
E ele tivera um filho, e não o vira nunca, e não o amara, e não o repousara sobre o seu coração frágil, morada do pecado e da vergonha, e não lhe beijara os pés acetinados, nem a boquinha já roxa pela morte!
Na solidão do seu quarto rezava pelo filho, aquela alma pagã criada pelo seu beijo, porque, sabia-o bem, a Ianinha não tivera outro amante; era ele o seu dono, o senhor absoluto e muito amado, o deus supremo daquela selvagem, filha da terra e amiga da terra, para quem a natureza era a única bíblia a que abria a sua alma simples.
E ele voltava querendo achá-la morta!
Encostado à mesa, junto ao leito vazio, o padre compunha em mente as feições do filho, dava-lhe vulto, sentia nele o melhor da sua alma, o mais elevado dos seus ideais...
Súbito, um toque de sino vibrou rebelde e agudo na noite silenciosa, o padre ergueu-se, lívido. Que seria aquilo? Eram duas horas, o vento abrandara. Houve um rumor de asas algodoadas fugindo espavoridas do campanário. A vila dormia tranquilamente. Mas veio outra badalada do sino, tangida com nervo e raiva, atravessar o espaço negro como um grito de dor.
Àquele toque sucederam outros e outros, desordenados, como se o pobre sino da aldeia tivesse enlouquecido ou abrigasse no seu velho bojo todas as bruxas e duendes dos campos.
O padre, assustado, amparou-se ao crucifixo, ergueu-o e caminhou
resoluto para a porta, que abriu de par em par.
O campanário ficava à esquerda, dominando o vale enorme, todo cheio de sombra. Júlio seguiu para ali, com a cruz erguida e os lábios murmurando preces. Pareceu-lhe distinguir um vulto branco agitando-se na treva como um fantasma. Elevou bem alto o Cristo, e a poucos passos a sua voz forte retumbou num esconjuro formidável que abalou a terra.
O sino emudeceu; mas o vulto branco lá estava, desenhando uma curva pálida na escuridade. O padre chegou-se para o campanário, audaciosamente, sentindo-se bem apoiado no crucifixo e na sua fé religiosa.
A poucos passos estacou: a lua rompera o crepe das nuvens e iluminava Ianinha seminua, com a cabeça deitada para trás, o cabelo pendente, os olhos perdidos na abóbada estrelada. Ela ali estava, segura à corda do sino, aquele velho sino de aldeia, tão meigo, tão acostumado a só falar de paz às montanhas solitárias.
Ianinha quedou-se imóvel, sentindo Júlio perto, mas com medo de olhar-lhe para a batina. Depois falou, num queixume, murmurando as palavras. Disse que tivera dele um filho, lindo como os amores, que lá estava no cemitério muito sossegadinho.
Júlio estremeceu; os braços estenderam-se-lhe para prendê-la, os lábios moveram-se-lhe para beijá-la; mas conteve-se, hirto, de cruz alçada, livrando-se da tentação...
Ianinha chorou: aquele tempo antigo fora tão bom! O campo aí estava, aberto a todos os seres, fértil, com os hinos das aves e o perfume das plantas. A vida rebentava à toa em cada canto. Em troncos velhos viçavam lianas e parasitas; em corolas de flores aninhavam-se milhares de insetos; e os ninhos estavam povoados, e as tocas rescendiam a paz amorosa, e toda a terra desabrochava à espera de que eles fossem também, como noutros tempos, amar-se sob as estrelas.
Pecar? Não era pecado! Que seria o mundo, sem a perpetuação do amor!
Ianinha arrancava aquilo da sua imaginação caudalosa, lamentando-se por não ter nascido sob outra forma, por não ter a vida libérrima da ave, do inseto ou da flor! E estava formosa, formosa como nunca. Mas o padre sentia o peso do crucifixo nas mãos geladas. Certamente que no fundo da sua alma alguma luta havia que lhe cerrava os beiços e lhe iluminava a fronte larga e lívida. Mas a palavra de amor não lhe saía da garganta.
Voltou para dentro, de cruz erguida, com as faces banhadas de lágrimas. Consumou o sacrifício: entregava-se a Deus.
Lá fora o sino voltou a badalar na noite negra, desordenada, furiosamente, como se o próprio diabo o tangesse! Depois tudo emudeceu. As aves voltaram para o campanário; uma barra de luz indecisa abriu-se frouxamente no horizonte, e, só, no meio da noite, o cadáver da Ianinha, enforcado na corda do sino, olhava de face para o vale enormíssimo todo cheio de aromas e de treva.
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