12/12/2020

As histórias do Conselheiro (Conto), de Júlia Lopes de Almeida

 

As histórias do Conselheiro 

– Pois minha cara senhora, foi assim que se acabou a história... 

– Tem graça! e a rapariga não tornou a aparecer? 

– Nunca mais a vi; só sei que o chim casou... 

– Com a tal velha rica?! 

– Exatamente! 

– Mas é delicioso! 

– Teve pilhéria, teve... Realmente, eu tenho presenciado muita coisa! 

– Então! Sr. conselheiro, enquanto não nos servem o chá, conte-nos um outro caso; este foi de um humor irresistível. Ora o chim! 

O conselheiro correu o olhar pela assembleia: todos riam. O general limpava uma lágrima, suspirando de alívio, ainda com os lábios distendidos e a mão esquerda comprimindo o ventre. O sobrinho levantara-se e, encostado à janela, assustava as begônias do jardim com o som estrídulo das suas gargalhadas frescas, sonoras, rescendentes de mocidade; a dona da casa sorria agitando a ventarola de seda, e a avó abanava com incredulidade a cabeça branca, perguntando a uma neta, que estava ao seu lado, a conclusão do fato, que não ouvira bem... a neta a cada pergunta renovava o riso, curvando-se muito a esconder o rosto na toalha de linho em que bordava as suas iniciais. 

– Vamos, Sr. conselheiro, repetiam-lhe, outra história, sim? 

Mas o conselheiro, que tinha uma memória de anjo e que cultivava o gênero das narrações, deixou prudentemente voltarem todos sua costumada placidez; e, depois de pensar um pouco, declarou ter escolhido assunto, igualmente verídico, mas de gênero diferente. Chegaram-se todos. 

Ele começou: 

Exercia eu o cargo de juiz de direito na pequena comarca de Santa Bárbara, quando me foi apresentado o Dr. Lemos, antigo advogado no lugar, homem pacato, idoso, cheio de preconceitos religiosos e sociais, muito boa pessoa, mas muito cacete também. 

Eu morava sozinho, numa grande casa antiga, de corredores abobadados e de salões sem fim. O homem entendeu que me devia fazer companhia, indo povoar a minha soledade doce e tranquila, com os seus receios e fantasmagorias! Poucos minutos depois de eu ter chegado das sessões do tribunal, era certo, ouvia os passos do meu importuno amigo ecoando como marteladas surdas e compassadas pela escada acima. Entrava para o meu escritório, sempre solene, e, trocadas meia dúzia de palavras, debruçava-se sobre a minha mesa de trabalho, folheava, lia, meditava autos, atrapalhava-me com objeções os processos, declamava contra as acusações dos libelos, para ele sempre pálidos e deficientes, e ali ficava horas inteiras, respirando o veneno da maldita cicuta nascida no mais pestífero dos pântanos – o crime! como ele costumava dizer na sua implacável retórica! 

Eu, às vezes, tinha vontade de o mandar de presente ao diabo, e demonstrava-lhe mesmo certo mau modo, que ele, na simplicidade natural dos bons, não compreendia. Mas admirem-se! aquele homem, que me entediava, estorvava, privando-me da minha liberdade, da minha satisfação, da minha paz concentrada e feliz, aquele homem era-me por fim indispensável, real e positivamente imprescindível! É verdade! Estimei-o; estimei-o é pouco; adorei-o! Se ele tardava, eu ia à janela, olhando impaciente para a longa rua solitária da pobre cidade de província. As galinhas cacarejavam, depenicando nas ervinhas nascidas nas gretas das calçadas, e, num quintalzinho fronteiro, uma cabocla sadia e formosa cantava alto, estendendo roupa no coradouro. Era sempre o que eu ia àquela hora, até que despontasse na terceira esquina do alto o vulto do Dr. Lemos, magro, meio curvado, com uma sobrecasaca comprida, calças escuras e o chapéu de sol aberto, inclinado para o lado do sol. Então eu recomendava à criada que nos preparasse o café, e ia esperá-lo no escritório. 

Lemos contou-me a sua vida; coisa vulgar: sempre com aspirações a fortuna, hoje uma esperança, amanhã um desengano, e o tempo a passar e a velhice a tomar posse dele, com os seus achaques e desilusões! Casara-se: a mulher era um anjo a quem não tinha podido nunca dar sossego de espírito; mas a infeliz morreu cedo, deixando um filho pequeno. Ora, esse filho era então o grande sol, a última e única esperança que restava ao velho! O pobre homem levava-me horas e horas a tecer elogios ao seu portentoso Isidoro, uma verdadeira maravilha de talento e de virtudes. A honra era o grande pedestal de ouro em que nuns entusiasmos arrebatados colocava esse deus, herança de uma mulher amada. Contava coisas do pequeno, exaltando-lhe o caráter; e orgulhava-se dele, do seu juízo, da sua probidade, do seu critério; não falava senão na grande retidão de espírito, de que, desde criança, dera provas; no seu carinho, na bondade natural do seu coração, em mil coisas ternas, enaltecedoras e naturais em um pai. Eu ouvia-o, felicitava-o, e lia de vez em quando uma ou outra carta que o rapaz enviava da corte, onde o padrinho, influência política, o tinha empregado, como caixa de um banco. 

Aquele era o único ponto que o prendia ao mundo. Sem o Isidoro a terra pareceria ao Dr. Lemos como que um grande arneiro em que não houvesse um único recanto nemoroso; tudo estéril, frio, chato, insalubre! 

Era aquele filho exemplar, que o céu lhe concedera, quem dava cor às flores, brilho às estrelas, aroma às plantas, doçura ao ar, tranquilidade aos lagos, beleza às aves e harmonia à música! Eu, pobre solteirão, bem colocado, desconhecendo grande parte da vida, a luta da existência a que ele, desde os doze anos de idade, órfão de mãe e pai, se lançara; eu tinha muitas vezes inveja daquele homem, alquebrado de trabalhos e de injustiças, mas sempre honesto e sempre radiante do orgulho que lhe dava o filho! Ah! quantas vezes eu não suspirava, imaginando a ventura de ter também um Isidoro, forte, espirituoso e, sobretudo, honrado como o do meu amigo! Mas isto são coisas que não vêm ao caso; continuemos. Vivíamos assim seguramente havia uns dois anos, quando recebi uma carta do Rio, pedindo-me que, por ser eu amigo dedicado e reconhecido do Dr. Lemos, lhe participasse, como entendesse melhor, que o filho... 

– Morrera? – perguntou uma das senhoras, interessada pelo banal enredo. 

– Não... pior. 

– Ora essa; pior do que a morte! Então que era? 

– A desonra, minha querida senhora! 

E o conselheiro, passando o lenço de seda pela calva, fez uma pausa, premeditada para maior impressão; depois prosseguiu: 

– Comunicavam-me ter o rapaz subtraído ao banco de que era caixa uma grossa quantia: a bagatela de trezentos contos e ter fugido para a América do Norte! Imaginem o pasmo em que eu caí! Contudo, era preciso reagir, procurar o velho antes que ele me viesse à casa, e dizer-lhe tudo, jeitosamente; se não, poderia antecipar-lhe alguém de menos caridade, ou mais irreflexão. Como ele costumava ir ler no meu escritório os jornais da corte, escondi-os na gaveta da secretária, bem fechados: podia dar-se o caso do um desencontro; nada mais fácil do que ir eu tomando a esquerda, para a sua casa, e ele vir da direita, para a minha. Saí; fui bater-lhe à porta; ele não estava. Regozijei-me com isso. Voltei mais sossegado até meio caminho; mas depois irritei-me! Poderia estar tudo concluído, e afinal havia ainda de esperar uma ocasião propícia para desfechar tão pavorosa revelação! Quando entrei no meu escritório já o encontrei sentado, a ler um grosso volume de Direito, com os óculos encavalgados no nariz, cruzadas as pernas longas e magras, o lenço de rapé sobre o joelho, e os natros das ceroulas pendentes, a balançarem-se ao contínuo movimento da perna. 

– Então como vai isso? – perguntei-lhe na minha prosa de uso ordinário. 

– Menos mal... 

– Bom ... 

– Estou aqui a ler os seus livros, já que não encontrei os jornais; dar-se-á caso que não viessem hoje? 

– Sim ... é verdade, não vieram hoje! 

– Fazem falta, que diabo, aquilo afinal é o meu vício!... 

Tive um risinho amarelo e pus-me a ler também um infólio, a que não prestava atenção, estudando um meio de contar o caso ao velho. Mas não tive ocasião: pela primeira vez em vinte e sete meses, o Dr. Lemos não me falou no seu idolatrado Isidoro! 

E eu à espreita desse momento para aproveitar o ensejo de encaixar o ensaiado discurso! Convidei nesse dia o Lemos para jantar; ele aceitou e eu calculei: “Está direito, à sobremesa conto-lhe tudo!”

Jantei mal, ele não; comia com vontade, acumulando no prato carne, ervas e arroz, mastigando a côdea do pão, bebendo a grandes goles o meu estimado Collares. Eu, que o sabia sóbrio e que muitas vezes tinha presenciado o seu repasto frugal e mesquinho, admirava-me; e pelas alturas da sobremesa, vendo-o animado, com boa cor, coisa extraordinária nele, habitualmente esverdeado, julguei mais acertado novo adiamento: a ocasião não era azeda, com certeza! Lemos cairia morto, fulminado por uma congestão, entre as cadeiras e a mesa, arrastando na queda os despojos dos frangos e as frutas em calda de açúcar! Parecia-me vê-lo rubro, com os olhos desmedidamente abertos e a mão crispada, tentando num esforço angustiado arrancar do pescoço a gravata. 

– Em que diabo está o senhor a pensar – perguntou-me ele – que parece tão preocupado! Desembuche, homem! 

– Não penso em nada... 

– Um... enfim, não tenho direitos que justifiquem qualquer insistência; se não havia de confessá-lo! 

– O Dr. é que me parece satisfeito, hoje. 

– Assim é! E chegando a cadeira para perto da minha, abriu a carteira e mostrou-me duas notas de quinhentos mil réis remetidas pelo filho, o seu Isidoro, como lembrança de amizade. Veja o seu amigo, continuava ele, que excelente rapaz! Quantas economias, quantas horas de trabalho isso não representa! Meu pobre filho! Nada fiz por ele, não cursou academias, passou muitas vezes vexames, escondendo as botas rotas e tapando com um lenço o pescoço sem colarinho, tudo isso por eu não ter nunca um emprego, uma colocação, uma causa! E agora, aí está... dizia, com os olhos rasos d’água, apontando as notas, – como ele me recompensa de tantas vergonhas por que passou! E levantando a carteira beijou com ternura, grata, demoradamente, as duas notas de quinhentos mil réis remetidas pelo filho. 

Não pude reprimir um movimento de indignação, mas o bom homem, todo embebido na sua ventura, não o percebeu. Ofereci-lhe mais vinho e falei de outra coisa. 

Ele estendeu o copo, sem parecer escutar-me; depois, com um sorriso nos lábios e os olhos ainda úmidos, voltou-se para mim e disse: 

– Vá lá! Quero que o meu amigo me acompanhe num brinde! À saúde do melhor dos filhos, o meu Isidoro! 

Estremeci e hesitei, mas venci depressa a minha grande repugnância e, elevando o cálice, repeti maquinalmente: “À saúde do seu filho Isidoro!...” 

Os nossos olhares encontraram-se; o dele cheio de ternura, transbordante de glória, num grande extravasamento de alegria! O meu refletindo a mais penosa das impressões! Tocamos os copos e, silenciosamente, esgotamos o velho Porto. 

Pois, meus amigos, não só ocultei do desgraçado pai, o que sucedera ao filho, como ainda fui bater de porta em porta, recomendando silêncio aos seus poucos amigos! Respeitavam-me muito no lugar, e até a minha partida ninguém ousou dizer-lhe coisa alguma a tal respeito. Mas, desde esse dia, a minha vida tornou-se um martírio em Santa Bárbara. 

Todos os dias decidia falar ao Dr. Lemos da situação do filho, e todos os dias transferia a execução do plano! Ao senti-lo na escada escondia à pressa os jornais, cheios do nome de Isidoro! Ouvia-lhe os elogios do filho, como o mais honrado, o mais honestamente bom dos homens, sem demonstrar o desprezo, o ódio, que esse rapaz distante e desconhecido me inspirava! 

Uma tarde resolvi, definitivamente, contar-lhe tudo, e convidei-o para um passeio. Íamos a pé, devagar, palestrando pachorrentamente; seguimos pelas ruas menos frequentadas, até um campo, onde Lemos parou e, estendendo o braço longo e seco, apontou-me um terreno distante, à esquerda, mais sombreado de árvores, ao pé de uma cascatinha tremeluzente, entre verduras e relvas e manchas claras de pedras: – Acolá, disse ele, é que eu desejo e ainda espero ver um chalezinho feito pelo meu Isidoro, onde eu viva ao pé dele, de uma nora sensata e de uns netinhos alegres... Será então, se eu conseguir isso, a minha primeira época de felicidade neste mundo! 

Não respondi, mas, francamente, tive vontade de chorar; a única ambição do desventurado era irrealizável como tantas outras! Não! Eu não lhe diria nunca o que tinha feito o seu honesto Isidoro! 

Voltando para casa requeri ao ministro da justiça “licença para tratar da minha saúde onde me conviesse”. 

Felizmente fui atendido; o despacho não se fez esperar muito. Em uma manhã chuvosa parti de Santa Bárbara. Lemos foi dizer-me adeus à estação; parece-me que o estou a ver, fugindo da lama, a saltar de pedra em pedra, com o chapéu de chuva aberto, as calças arregaçadas, o sobretudo abotoado e um lenço de seda enrolado no pescoço. 

Eu já estava no vagão, ele encostou-se ao comboio e segurou-me as mãos com amizade, pedindo-me que, de passagem pelo Rio, visitasse o seu filho. 

Prometi-lhe isso e desci; abraçamo-nos; vi-lhe, através dos óculos, as lágrimas tremerem-lhe presas às pestanas ralas e curtas ... Meu pobre amigo... Ao primeiro silvo e à primeira oscilação do trem, entrei às pressas; um empregado fechou com estrondo a porta; Lemos, recuando muito pálido, fixava-me com ternura; mais um segundo e o comboio partiu; debrucei-me na janela; lá ficava sozinho o Dr. Lemos, agitando melancolicamente o seu lenço branco. 

Escrevi-lhe do Rio mas não obtive resposta. 

Soube mais tarde, por uma carta do promotor público, que o velho estava louco; disseram-lhe tudo no próprio dia da minha partida; aquela boa gente arrebentaria de impaciência se o não fizesse! Ora aí está, meus senhores, como se acabou esta segunda história... 

– Decididamente, Sr. conselheiro, achei muito melhor a primeira ... 

– Deveras, minha senhora? 

– Sou da mesma opinião, confirmou o general. 

– E eu, e eu, disseram outras vozes. 

– Pois, meus amigos, entre todos os fatos da minha vida, foi este o que maior impressão me deixou! Sempre que me lembro do infeliz pai... 

– Bem, interrompeu a dona da casa, disfarçando um bocejo: vamos agora ao chá?

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...