11/28/2022

A glória (Conto), de Coelho Neto


 A GLÓRIA 

O caminho tornava-se a mais e mais apertado e sombrio. Árvores de coma espessa esgalhavam a ramaria densa interceptando a passagem da luz. O solo, pedregoso e seco a princípio, ia-se tornando em mole alagadiço — vasto balseiro onde apodreciam folhas mortas. Aves sinistras voejavam pesadamente de galho a galho, negras, de enormes garras, com os bicos aduncos manchados de sangue. No interior havia um choro perene — talvez alguma fonte oculta a lacrimar. 

De quando em quando um réptil aparecia — ora enroscado à beira da trilha estreita, vibrando a língua bífida ou mole, oscilando pendente de um ramo, como uma ponta de cipó. 

O ar era úmido e tresandava à podridão. Não havia outro rumor senão o do ramalhar do arvoredo e o do choro misterioso que vinha, como um fúnebre presságio, do recesso do bosque. E o peregrino seguia. 

Era um lindo mancebo louro — os cabelos caíam-lhe em bucres sobre os ombros, as suas mãos eram brancas e finas, o seu andar airoso. Seguia cantando, sem impressionar-se com o horror do sítio: animava-o a esperança de que, além daquela morta paragem, resplandecia no céu um sol eterno. Para alcançar, porém, o largo e formoso país da luz sempre viva, quantos sacrifícios teria ainda de sofrer! 

Ia caminhando, a cantar, quando, de um calvo rochedo, desceu crocitando uma revoada de corvos famintos. Abriu o farnel e, para conter os voracíssimos animais, atirou-lhes a metade das provisões que levava. Foi o bastante para que, de todos os lados, acudissem, com uma grasnada aterradora, centenas de aves vulturinas, umas negras, outras vermelhas como se houvessem tingido as penas em sangue. 

O peregrino, sem descorçoar, abriu a governita e desfez-se de tudo quanto levava e, enquanto os monstros debicavam gulosamente as provisões, lá ia ele, sempre a cantar, feliz com a esperança de ver-se, em breve, livre daquela passagem temerosa. 

Mas, dentre o bosque uma voz silvante, que parecia retalhar o silêncio, pôs-se a dizer através de casquinadas sarcásticas: 

“— Que há de ser de ti, mancebo imprudente? Julgas, talvez, que está próximo o termo da viagem? Muito tens ainda que andar e que sofrer. Desfazes o teu alforje, cedes tudo aos abutres e com que hás de saciar a tua fome quando ela apertar? A floresta é estéril, as árvores que vês nada produzem. Volta, ainda é tempo; retrocede antes que se desfaçam as tuas pegadas, que são o roteiro que te restituirá à vida feliz que abandonaste por um sonho ingrato. Não prossigas. 

“Quanto mais avançares mais difícil se te tornará o regresso ao lar abandonado onde vivias feliz, entre os teus, à sombra das tuas árvores sempre em flor. Não te iludas! Essas aves bravias que vês, gordas, tão gordas que mal podem voar de um galho a outro, nutrem-se de imprudentes como tu. Outros, que têm ousado a travessia, têm ficado pelo caminho e, apodrecendo, vão formando esse atascal escuro no qual te chafurdas. 

“Retrocede em tempo para que não tenhas a mesma sorte dos que te precederam”. 

“Deixaste a luz tranquila, vais em busca da claridade maior mas, antes dela, infeliz, estão os horrores da selva mefítica, estão as perfídias, estão as maldades. As aves escarninhas zombarão de ti — seguirás perseguido pela assuada atroadora de todas e muitas, baixando, virão bicar-te as carnes como fizeram outrora ao filho de Japeto. Retrocede, imprudente.” 

O peregrino ouvia a voz que vinha, como um oráculo, do fundo tenebroso do arvoredo e, indiferente, sorria. Que lhe importava o sofrimento se lá ao longe, alma da floresta, estava a compensação? 

O terreno tornava-se mais encharcado — um cheiro acre de sangue subia do tremedal. Por vezes um crânio rolava ou eram tíbias que se levantavam hirtas entre as ervas do pau. 

Que importava? Já os seus olhos divisavam uma réstea de luz, além — antes da tarde lá estaria: era a aberta que levava aos campos elísios. 

Os outros haviam desanimado, ele não se deixaria vencer pela cobardia. Que esvoaçassem as gordas aves carniceiras, à noite todas se recolheriam às suas cavas, aos seus ninhos nos penhascos e ele, então, seguiria sossegadamente, a correr, vencendo distâncias. 

Pensava assim quando um novo bando de aves precipitou-se das frondes, galrando. Nada mais lhe restava e como havia o infeliz de saciar os abutres? As aves adejavam ameaçadoramente em torno da sua cabeça loura, investiam com estrondoso bater de azas; ele procurava espantá-las, agitando a capa que levava e que era o seu único agasalho; as aves, porém, rasgaram-na com as garras e às bicadas reduzindo-a a tiras; depois atiraram-se-lhe ao corpo, e estraçalharam-lhe as roupas e ele sentiu nas carnes o acúleo dos primeiros bicos. Pensou, então, que se atirasse aos seus perseguidores um pedaço de carne, enquanto eles a disputassem, poderia caminhar tranquilo. Mas onde havia de encontrar, naquela esterilidade, a carne de que carecia para repastar os abutres? Deteve-se um momento, encostado a uma árvore, em atitude de defesa. A árvore, porém, estilava uma resina venenosa cujo aroma matava. 

O peregrino sentia-se abalado: vertigens seguidas enfraqueciam-no, perturbava-se-lhe a vista, vergavam-se-lhe as pernas. Notou, então, que havia mais perigo naquele refúgio do que no meio agitado das aves vorazes e, atordoado, lançou-se afoitamente a caminho. 

Seguia quando se viu, de novo, cercado pelos monstros; foi então que resolveu engodá-los atirando-lhes tassalhos da própria carne e, arrancando da cinta uma adaga afiada, pôs-se a retalhar o corpo jogando aos animais postas ensanguentadas. 

Foi uma alegria satânica no bando alado e, como se o cheiro do sangue fresco chegasse além, outras aves surgiram precipitadas, com um galrar horrendo, e, enquanto disputavam a carne que ele lançara, o peregrino seguia. 

Não estava longe o termo da viagem — lá brilhava, por entre a luzida folhagem, a luz sem crepúsculo, o esplendor sem ocaso. Mais um pouco de ânimo e venceria aquela passagem onde tantos haviam sucumbido. Lá ia. 

Repentinamente, a mesma voz, que lhe falara à entrada da floresta, tornou com mais sarcasmo, vindo, como um canto de pássaro, da ramaria mais alta de uma árvore frondosa e negra. 

“Volta, peregrino ousado. Vê que já se te tornou necessário o sacrifício — é com a tua própria carne que vais comprando os passos nesse caminho, teu sangue encharca o terreno e, dentro em pouco, não terás resistência para o menor movimento. Aí vem a noite; repousa um instante e, quando as aves adormecerem, retrocede. Não tens saudade da terra em que nasceste? Aqui tudo é hostil, lá tudo é propício. Aqui as árvores envenenam, o ar que se respira é nauseabundo, a água, longe de aplacar a sede, aumenta-a e é como um fogo que abrasa as entranhas. Se saíres do alagadiço em que te vais enxurdando encontrarás o pedregulho agudo que rasgará os pés e os espinhos que te romperão as carnes. Volta! espera a noite e volta. 

“A esta hora os teus, que além deixaste, gozam os favores da primavera cheirosa. Teus filhos brincam porque são inocentes e, como tu lhes disseste que lhes levarias brinquedos quando regressasses, fazem castelos dourados saltando na relva. O mais novo chama por ti na sua linguagem indecisa alongando os olhinhos para o lado em que o sol morre. Tua esposa suspira — talvez que o coração, que adivinha, lhe esteja a contar os teus sofrimentos. Espera a noite e volta. 

“Não te iludas com o sonho. A vida é a tranquilidade e mais feliz é o pastor que tem um pouco de queijo negro e água da fonte e não deseja senão a madrugada e as estrelas do que o milionário que ambiciona — e tu és o maior dos ambiciosos. Volta!” 

O peregrino ouvia, mas os seus olhos não se tiravam do ponto luminoso que fulgurava ao longe. Ia-se-lhe o sangue pelas muitas feridas, doíam-lhe os pés, a fadiga tornava-o vagaroso, ainda assim lá ia ele sorrindo e cantando. 

“Mais um pouco, dizia, mais um pouco, e viverei como a própria Vida — meu nome ficará como um esplendor eterno. Que importa a dor? O que sofre é o corpo, mas, para que quero eu o corpo senão para que conduza minha alma? E é ela que vai à vitória. A tranquilidade, sim, a tranquilidade é deliciosa mas o grande Bem lá está, já o diviso daqui. Mais um esforço e, antes da noite, eu estarei repousando no campo de flores imarcescíveis — e lá se renovará o meu corpo, um sangue mais forte me encherá as veias, sangue eterno, feito de luz, como esse que purpurina o céu nas claras manhãs e nas tardes luminosas. Que importa a carne que vai ficando pelo caminho no bico e nas garras dos abutres? Que importa o sangue que jorra das feridas abertas? A glória é uma ascensão e eu faço como os que tentam remontar às nuvens: alijo a carga inútil. Eia! Um pouco mais e será minha a vitória”. 

Caminhava, mas um novo bando de aves pôs-lhe cerco; não hesitou: retalhou-se e, atirando a um lado e a outro o pasto vivo, foi seguindo. 

Já era escuro na brenha, sinistro, lá longe, porém, fulgurava sempre o pérfido esplendor e nele levava o caminhante os olhos postos. 

“Mais um pouco! Que me não traíam as forças agora que estou a chegar ao termo da jornada. Que me fique nas veias uma só gota de sangue e com ela irei ao extremo da viagem”. 

Mas os olhos empanavam-se-lhe, dobravam-se-lhe os joelhos, vacilava indo de encontro às árvores e aos seus ouvidos chegava um rumor confuso como o do longínquo bater do mar. 

Deteve-se encostado a um tronco, olhando — os abutres cercaram-no a princípio medrosos; mas o primeiro avançou, logo outro o seguiu, outro, mais outro e, atirando-se todos ao corpo do peregrino, começaram às frenéticas bicadas. 

Ele ainda tentou reagir mas faleceram-lhe as forças, os braços penderam moles ao longo do corpo aberto em chagas. Passou-lhe, então, na saudade, a visão do lar que abandonara — lembrou-se da terra amiga que deixara, da esposa, dos pequeninos filhos, mas a visão foi rápida porque logo os olhos se voltaram para o ponto luminoso que parecia estar tão perto, a uns passos curtos daquele sítio de morte. 

Súbito, de todos os meandros do bosque romperam risos sarcásticos e o peregrino, só então, chorou, porque em verdade, doíam-lhe mais aqueles risos do que as bicadas das aves. 

Esmorecia; ia-se-lhe o corpo curvando e tombou no atascal e, no momento em que exalava o derradeiro suspiro, pareceu-lhe ouvir a voz oracular que saía do bosque repetindo as palavras que dissera: 

“Que há de ser de ti, mancebo imprudente? Julgas, talvez, que está próximo o termo da viagem? Muito tens ainda que andar e que sofrer...” 

Era outro que vinha ousadamente, trilhando o mesmo caminho ingrato que levava à gloria. 

Que perecesse aquele, outros que perecessem, o caminho há de ter sempre andejos que por ele sigam, afrontando tormentos, de olhos postos no além, na eterna luz que fulgura.

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