11/06/2022

O Berrador de Capim Grosso (Lenda), de Iba Mendes

 



O BERRADOR DE CAPIM GROSSO

Conta uma lenda capim-grossense que nos primórdios da cidade, quando a antiga Rua da Librina ainda era um grande e fechado matagal, havia ali uma humilde casinha de taipa, cujo morador era um velho roceiro chamado Chico, casado com uma boa mulher e pai de dois filhos homens. Diz, ainda, a lenda que um desses filhos, o mais novo, era dotado de uma natureza perversa e preguiçosa, ao contrário do mais velho, que tinha uma índole de pura bondade e era bastante dedicado aos afazeres da roça.

Certo dia, o pai e o filho mais velho foram capinar umas terras num lugar chamado Jenipapo. O mais novo permaneceu em casa, incumbido pelo velho de cuidar da mãe doente e que, quando desse meio-dia, fosse levar para ele e o irmão o almoço e uma moringa d’água. O rapaz, que não gostou nem um pouco da ordem dada pelo pai, apenas maneou a cabeça afirmativamente e resmungou para si um palavrão, acrescentando enquanto os outros dois sumiam na estrada: “Suas pestes!” Em seguida armou uma rede e voltou dormir tranquilamente.

Enquanto isso, a pobre mulher, que sofria de uns reumatismos nas pernas, fazia tudo sozinha. A doença, porém, não a impediu de realizar suas tarefas domésticas, o que incluía matar uma galinha e preparar a comida para toda a família.

Quando deu meio-dia, a boa senhora que já havia embalado o almoço num utensílio de plástico e enchido toda a moringa com água filtrada do pote, chamou o filho e ordenou:

– Vá levar a comida pro seu pai e pro seu irmão, e depressa!

O moço, que acabara de se levantar da rede, nada disse e ficou por ali como se não tivesse ouvido a determinação da mãe. Esta, já impacientada pela preguiça do filho, gritou:

– Você não escutou não, moleque?

O preguiçoso perguntou então se não podia almoçar antes, pois estava com muita fome e ia ter de caminhar mais de meia hora sob um sol causticante. A boa mulher, porém, que naquele momento sentia fortes comichões nas pernas, impacientou-se com a malemolência do moleque, e gritou mais uma vez, furiosa:

– Ainda está aí, hein?

O rapaz, que apresentava o semblante visivelmente irritado, pegou ligeiro da sacola com o almoço, segurou a moringa pelo gargalo e saiu resmungando um dito feio, acrescentando ao longe, enquanto olhava para trás:

– Sua peste!... você vai ver...

Seguiu a passos lentos pelo caminho, mas nem bem havia andado uns dez minutos, sentiu-se exausto e, vendo uma copada árvore nas proximidades, dirigiu-se até ela e sentou-se preguiçosamente à sua sombra. Neste momento, o cheiro inebriante da comida exalou até suas narinas e, sem qualquer cerimônia, ele desamarrou o vasilhame e começou a devorar todo o almoço. Feito isto, ergueu-se e tragou uns goles da moringa. Porém, antes de tampar a bilha d’água, teve uma ideia maligna: abaixou as calças e mijou dentro até passar toda a vontade.

Quando ele chegou à roça, o pai e o irmão já o aguardavam ansiosos e mortos de fome. Com um ar malicioso e diabólico, entregou tudo ao pai e se afastou. O velho, que de nada desconfiava, abriu o embrulho e, atônito, encontrou ali apenas ossos e uns restos de arroz misturado com feijão e farinha.

– Que brincadeira é essa? – perguntou indignado.

– Isso o quê? – respondeu o mandrião.

– Cadê a comida que sua mãe mandou? Por que só tem osso?

Ele então fez um gesto de ombro, e completou:

– Foi só isso que ela mandou.

Ao que o velho, tomado de ira, avançou até ele e gritou:

– Foi só isso mesmo que ela me mandou? E como você explica esses ossos?

Após sentar-se num tronco de arbusto, ele respondeu serenamente:

– Hoje apareceu um homem barbudo lá em casa e os dois ficaram conversando por um longo tempo, até se abraçaram e se beijaram. Quando foi meio-dia serviu o almoço para ele, que comeu tudo, e o resto ela mandou pro o senhor.

O irmão mais velho, que assistia incrédulo à cena, e que de antemão conhecia o caráter torpe do outro, objetou ao pai que a mãe jamais faria uma coisa daquela, e disse interrogativo para si mesmo: “Há caroço nesse angu!”

O outro, no entanto, fez um ar sério, e disse ao pai em tom de ironia:

– Corra lá que o senhor ainda o encontrará em casa com ela.

O pobre do homem tomou então a resolução de ir averiguar tudo. Mas ai dele se tivesse mentindo! Antes de sair, porém, abriu a moringa e encheu a boca de água, cuspindo logo em seguida, desesperado.

– Que significa isso? Quem foi que mijou nessa moringa? Foi também o desgraçado do homem?

O filho apenas afirmou que sim com a cabeça, e o pai saiu às carreiras para casa, e ele o seguiu.

Quando o velho chegou a casa e a adentrou bruscamente, viu de fato um homem sentado à mesa, tendo um matolão de couro aberto sobre ela. Sem nada perguntar, ele pegou dum punhal que trazia à cintura e desferiu um golpe brutal sobre outro, que rolou pelo chão todo ensopado de sangue. Em seguida, correu até a mulher e a agarrou fortemente pelos braços, indagando com voz de trovão:

– Pensa que sou cachorro para roer ossos?

A pobre mulher, que não compreendia nada aquela situação, dirigiu-se ao filho perverso e perguntou o que significava tudo aquilo, ao que ele, sem um pingo de pejo no rosto, confirmou tudo o que havia dito ao pai:

– Sim, pai, ela mandou dizer que o senhor se contentasse com os ossos e ainda pediu para o homem mijar dentro da bilha.

O marido, louco de indignação, não hesitou em pegar do mesmo punhal e cravá-lo várias vezes sobre o coração da companheira. Esta, porém, ainda agonizando, fixou o olhar no filho e lhe lançou esta terrível praga:

– Maldito serás para sempre! Jamais morrerás e tua alma perambulará perpetuamente por essas terras, e berrarás feito um animal louco toda sexta-feira, até que por fim o diabo te conduza à sua tenebrosa morada.

Lançada esta maldição sobre o rebento, a pobre senhora espirou sob a ponta do punhal sangrento.

Um vizinho que ouviu toda a algazarra, correu até lá e deu de cara com o apavorante desfecho.

– A sem-vergonha me traiu com esse canalha! – tentou explicar o marido ao amigo. Ao que este, boquiaberto, explicou:

– Miserável homem! Este que você assassinou é um boticário de Jacobina que veio oferecer remédios à sua esposa. Eu que o indiquei à sua mulher, pois sabia que ela estava doente.

Daí a dias encontraram o marido enforcado numa árvore. O filho mais velho ficou tomando conta das terras. Quanto ao mais novo, desde aquele dia desapareceu do povoado.

Quando nas noites de sextas-feiras se ouve um berro pelas redondezas, diz-se que é o Berrador pagando por seus pecados.


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São Paulo, 06/11/2022

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