11/05/2022

O encontro de Ferrinho com o Capeta em Capim Grosso (Conto), de Iba Mendes

 


O ENCONTRO DE FERRINHO COM O CAPETA EM CAPIM GROSSO

I – A HISTÓRIA

José de Barros, conhecido por “Ferrinho”, foi um rico e famoso bandido morador do Junco, distrito baiano pertencente à cidade de Jacobina, na Bahia. Nos anos 80 do século passado, foi responsável por aterrorizar a população da região, a qual era periodicamente submetida aos seus métodos bizarros de violência. Conta-se, por exemplo, que numa determinada ocasião, ele obrigou a mulher, Cleonice Soares da Silva, a andar pelas ruas sobre um cavalo, toda nua. A intenção do facínora era ficar observando se algum homem ousava olhar sua companheira, a fim de poder eliminá-lo com um tiro. Relata-se dele, ainda, que era comum jogar propositalmente uma caixa de fósforos ao chão e ordenar a pessoa próxima que a pegasse, sob pena de morrer caso se recusasse a fazê-lo. Verdade ou não, sabe-se que as barbaridades cometidas por Ferrinho enchiam todo o povo de terror, uma vez que era temido até mesmo pela polícia, que evitava pegá-lo. Pessoalmente (tinha eu cerca de dez anos) lembro tê-lo visto no povoado de Quixabeira, rindo e tomando cachaça num bar. Meu pai, que chegou a negociar um cavalo com ele, citava seu nome como se falasse de um respeitado coronel. Segundo Edivanjo Alves Campos, que narrou sua história num cordel intitulado “Crime na Fazenda Juazeiro”, o temido bandido tinha por patrão um certo Benedito. Quando este faleceu, ele se apossou de suas terras, expulsando de lá a própria sogra, mãe de Cleonice. De acordo com uma notícia publicada em jornal do tempo, Ferrinho foi morto em junho de 1984, na Fazenda Regina, de sua propriedade, quando juntamente com a jovem esposa, foram executados com vários tiros por quatro pistoleiros, que, no entanto, pouparam a filhinha do casal de um ano de vida, bem como sua babá, na época uma menina de apenas 14 anos de idade. Essa mesma babá, com a ajuda de amigos, cuidou da criancinha até a chegada dos avós maternos, que moravam no Estado de Pernambuco. Ainda sobre sua morte, uma testemunha ocular do fato afirmou ter visto o cadáver do malfeitor, cujo crânio ficou totalmente esmigalhado pela quantidade de tiros que recebeu.

 

II – A ESTÓRIA

Até aí os fatos. Agora a ficção, o folclore, o encontro que teve Ferrinho com o Capeta, quando ele retornava de uma de suas inspeções noturnas, na região de Pedras Altas, onde pretendia executar mais uma de suas façanhas de rapinagem de roubo a gado.

Ao se aproximar do contorno de Bonfim, em Capim Grosso, já era alta madrugada e ventava muito. A lua, completamente cheia, projetava seu brilho sobre o vasto matagal circundante, e clareava toda a extensão da longa estrada. Ferrinho vinha a trote largo num belo cavalo preto, o qual roubara uma semana antes nas redondezas de Quixabeira. Consultou o relógio e notou que os ponteiros estavam parados. De repente sentiu como se estivesse sendo seguido. Olhou para trás e viu apenas uma sombra, como de um vulto de um homem alto e de olhos brilhantes, mas sem uma aparência definida. Embora não manifestasse publicamente temor de assombrações ou coisas do outro mundo, nutria ainda no seu âmago alguns resquícios de antigas superstições, de modo que fez o “pelo sinal” três vezes e esporou o animal para que corresse mais depressa. O cavalo, porém, não obedeceu ao seu comando e refugou bruscamente soltando um estridente relincho. Assustado, Ferrinho levou a mão à cintura e fez menção de pegar o revólver. Olhou em volta de si e viu vindo ao longe, encaminhando-se para ele e andando em zigue-zague, o mesmo vulto que lhe aparecera antes. Não hesitou. Sacou a arma e apontou na direção da estranha figura. Esta, no entanto, parecia não se incomodar com a ameaça e continuou em marcha, agora fazendo umas cabriolas e rindo bem alto.

– Alto lá! Quem está aí? – gritou Ferrinho com a arma em punho.

– Ah, então não sabe, ingrato? – respondeu o outro, gargalhando e dando repetidas piruetas pelos ares.

– Chega dessa brincadeira! – disse o bandido e atirou para onde estava o estranho, que continuou tranquilamente seguindo em sua direção, agora andando de quatro e berrando feito um pai de chiqueiro.

Mais que depressa, Ferrinho esporou repetidas vezes o pobre cavalo, que num pulo alucinado saltou para frente e saiu em disparada. Andou mais um pouco e, quando se aproximava do contorno de Jacobina, indo na direção do Junco, eis que sente duas mãos peludas abraçando-lhe pelas costas. Olhou rapidamente para trás e viu, aterrorizado, bem sentado na sua garupa, um ser monstruoso, com mãos feito garras, rabo longo, dois pontiagudos chifres no meio da testa e com um forte hálito de enxofre. “É o Capeta”, pensou consigo, enquanto em grande desespero apeava do animal e saía correndo na direção de um matagal próximo.

Ali chegando, ainda com a arma em punho e bastante ofegante, escondeu-se depressa numa moita de taquara, permanecendo por lá alguns minutos, quase sem respirar. Assim esteve, quando, repentinamente tudo clareou em volta de si, como se o sol aparecesse no pleno resplendor do meio-dia. Ergueu-se e tentou correr novamente, mas já era muito tarde: num pulo brusco o Capeta saltou sobre ele e o lançou por terra, sentando em seguida sobre seu dorso e apertando-lhe o pescoço com as mãos.

– O que você quer de mim? – disse Ferrinho. – O que você quer? — repetiu agora quase sem voz.

– Ora, ora!... — respondeu o tinhoso, aliviando lentamente as mãos do pescoço do criminoso. – Então você esqueceu o nosso pacto?

De repente uma recordação súbita lhe passou pela cabeça: lembrou-se de uma brincadeira que fizera ainda na juventude, quando teve seu dedo furado por um fragmento de madeira. Havia ali num curral próximo uma caveira de um bode. Tomou-a entre as mãos e esfregou, em forma de cruz, o sangue do dedo sobre o esqueleto, jurando em seguida: “Se um dia eu ficar rico, prometo entregar-lhe minha alma!”

O Capeta logo notou o que se passava naquele momento no íntimo do temido bandido. Largou-o por completo e, enquanto sumia na direção do vento, gritou lá dos ares:

– Não se esqueça: brevemente virei buscar sua alma!

Escusado dizer que o pacto cumpriu-se integralmente. Passados alguns anos, Ferrinho enriqueceu mediante, principalmente, o roubo de gado e pela prática de diversos golpes. Quanto ao Capeta, esse incumbiu quatro pistoleiros para dar cabo ao famoso bandoleiro, cumprindo assim sua promessa. 

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São Paulo, novembro de 2022.

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