11/28/2022

O poeta (Crítica), de Coelho Neto


O POETA

Os críticos de profissão devem estar afiando os ferros para a autópsia do gigante afim de que o mundo, que estremeceu abalado com a queda do colosso, possa conhecer o segredo da força que impulsionava aquela formidável figura épica que, durante tanto tempo, fazendo soar uma lira estranha, maravilhosa pelo prestígio, como as de orfeão e de Anfião, moveu, a seu talante, as multidões insubmissas e as coisas inconscientes, agitou as almas e as florestas, as paixões e as tormentas fazendo com a natureza o que Prospero, o mágico, fazia com a sua ilha e com as forças elementares, passivas e obedientes à voz dessa poesia alada: Ariel. 

Quem estudar a fauna prodigiosa do naturalista de Medan pasmará da sua estupenda faculdade de análise: o que Buffon e Aubudo fizeram com os animais ele fez com a natureza com a diferença porém de que os primeiros restringiam as suas observações ao critério científico e ele viu e descreveu com a larga visão da Poesia, sem se preocupar com o estreito limite, rompendo, devassando todos os horizontes, e todos os mistérios. 

A sua obra é uma visão apocalíptica — ao lado de cada homem está uma besta monstruosa: Aqui é a Terra superficial, geradora dos frutos e das flores, a Terra do pão e das rosas, o campo da seara e o jardim das violetas. É a Terra do sabor e do aroma, do alimento e do gozo: a besta fecunda, estendida ao sol e à neve, a ruminar sementeiras e mortos, devolvendo a cinza em estriga e em corola, colorindo as camélias com a palidez das virgens mortas, carminando as papoulas com o sangue absorvido. É a besta tranquila, a esfinge imperturbável que devora o homem e o lar — a consumidora e pródiga. Por sobre ela vão os arados, cantam os lavradores, trilam os pardais, resplandece o sol, alargam-se as sombras quietas, desce o crepúsculo, palejam os luares e a besta serena vê passar, uma após outra, gerações e gerações de rústicos, de avós a netos pisando-a, rasgando-a, conspurcando-a, até o dia fatal em que a sua boca se escancara e fecha-se sobre o corpo gelado do campônio morto. 

Ali é a Terra profunda, a Terra dos Telquinos, a terra obscura, o antro; é a besta spelea, o minotauro sinistro, a mina. Parece dormir e os homens, como os anões das lendas escandinavas, lá vão ao íntimo abscôndito, penetram, escavam, tiram-lhe as riquezas e o monstro consente até que, num dado momento, como aqueles dragões flamívomos dos barditos medievais, sopra um hálito explosivo e as galerias aluem como se as garras da fera se plantassem nos homens subjugando-os, esmagando-os, triturando-os. 

Súbito uma água jorra, é como a baba lubrificante que escorre. Os que podem fugir correm alucinados às caçambas e sobem ouvindo os gemidos das vítimas e, alcançando o grande ar luminoso, respiram, gratos àquela ressurreição, mas lá os espera outra besta — a miséria, que os desnuda e os deixa ao frio, que os consome e esqueletisa, que os prostra, que lhes rouba os filhos, que lhes prostitui as mulheres, que os converte em assassinos. 

Outra “besta” — o mar, que o diga Lazare. Outra, o bosque, o Paradou, espécie de milita babilônica, Éden no qual as árvores, as águas, o ar, a luz, os pássaros, os insetos são outros tantos poderes lascivos, ministros da eterna força irrecursiva que junge os corpos tirando deles a eternidade da espécie como do atrito dos lenhos, na mão do sacerdote ariano, saltava, viva e alegre, a esplêndida centelha que mantinha perene, no altar doméstico, o corpo terreal e fulgurante de Agni. 

Outra — a locomotiva, espécie de boa dos tempos úmidos do planeta, quando ainda a crosta da terra era mole e fria como o barro que espera a plasmagem do artista. Lá vai a correr; arquejando, através da névoa das manhãs e da escuridão das noites, com o seu grande olho ciclópico a brilhar, o seu rosto rente aos trilhos, bufando fumo, lançando brasas, a assustar os rebanhos com os seus urros, cortando os campos, atravessando cidades, metendo-se ariscamente pelas locas, subindo aos montes, descendo aos vales, beirando rios, lançando-se afoitamente sobre abismos ora alegre, ora exausta, vivendo como se tivesse uma alma, morrendo come se tivesse uma vida. 

Outra o comércio; outra a guerra; outra a Arte... e toda a obra, enfim, do admirável artista, é uma cena de pigmeus em torno de um animal monstruoso. 

A mesma Naná, como muito bem notou Lemaitre, que é senão a “besta” do vício? 

"Naná est une bele béte au corps magnifique et malfaisant, stupide, sans grâce et sans cœur, ni méchante ni bonne, irrésistible par la seule puissance de son sexe. C’est la “Venus terrestre" avec de "gros membres faubouriens". C’est la feme réduite á sa plus simple et plus grossière expression". Zola apresentava-se como um reformador filiado ao processo de Balzac quando, em verdade, ele foi o grande decorador do romantismo: o edifício estava pronto e sustentado pelas caríatides que fizeram a revolução de 1830, ele entrou e, levantando os andaimes, começou a ornar as paredes com os frescos soberbos da sua “História natural e social de uma família no segundo império”. Mesmo se lhe quisermos notar os processos e essa estranha psicologia das coisas vamos encontrá-la esboçada, à maneira larga de Miguel Ângelo, por Victor Hugo — nos Trabalhadores do mar, o oceano; em Notre Dame, a catedral, etc. — são as coisas vivas, as coisas animadas, os monstros que Zola desenvolveu classificando na mesma “família” todos os achados que foi fazendo na vida — desde o mercado até Lourdes, na série das Cidades. 

Os que se preocupam miudamente com as análises meticulosas podem notar os defeitos na grande arte decorativa do possante autor dos Rougon Macquart — eu contemplo-a à distância, abandonando os detalhes fatigantes e só demorando a vista nos que revelam uma impressão poética como a estropeada selvagem dos cavalos famintos, na Debacle ou a morte de Albina, entre flores. 

Zola era um sincero: descrevia monstruosidades porque a sua visão poderosíssima aumentava tudo dando proporções colossais às menores coisas. Esse “naturalismo” que deu a Moisés é o mesmo que gerou o Inferno — é o naturalismo dos gênios. A verdade é uma mas é sentida diversamente: o luar que, para Musset era um incentivo poético porque é sugestivo, para o português é apenas o pretexto para um passeio, à fresca; para o bandido é um cúmplice; para o sensual é um amável; para o melancólico é um motivo de tristeza; para o alegre é o melhor incitamento à troça. 

Zola via a natureza através de um sonho panteísta. Ele era dos poucos que não acreditavam na voz profética que gemeu doridamente nas praias da Tessália — para ele o grande Pan vivia. Poeta e poeta dos fortes andou sempre dentro de uma ilusão, seguindo um sonho ao qual resolvera dar o doce nome de Verdade. 

Foi um pessimista, e, por isso, rudes foram os ataques com que a Crítica, mais de uma vez, o foi perturbar na sua grande oficina, esse castelo de Medan de onde, todos os anos, saía uma obra divina e satânica, como do solar do conde de Raimond, numa noite sinistra, fugiu, aos gritos, Melusina, a mulher-serpente. 

Nos livros do poeta há esse dualismo — a cauda serpentina é enorme mas prestai atenção e descobrireis em todos eles o busto e, dentro, um coração meigo pulsando com enternecimento como batia o da castelã que, tornando à pena, enchia os ares de gemidos e orvalhava a terra de lágrimas pensando nos pequeninos filhos e no amor que deixara. 

Em Raimond é a curiosidade a causa do Sortilégio, em Zola é a imaginação, essa curiosidade do Ideal. 

Sei que a Crítica aprecia a parcela e na obra de um grande espírito procura não só os largos traços como as pequeninas e mesquinhas insignificâncias e, como os corvos, passa indiferente pelas belezas baixando imediatamente, com alegres crocitos, mal sente o fartum da carniça; falo da pequena crítica, adas varejeiras, que estão para os corvos como os chacais estão para os leões. 

Não vejo em Zola o homem da preferência salaz, mas se ele só foi repelido porque nos apresentou Naná, porque havemos de adorar Longus, com a sua Lycenion, Ovídio com os seus Amores, Vatsyayana com os seus conselhos, Apuleio com a sua Metamorfose, Teócrito com a sua Feiticeira? Volúpia é mais excitante do que a lascívia: há sedução maior nos encantos que se adivinham do que na nudez que se ostenta descomposta e impudica. 

Há exagero mas sejamos leais: o exagero é a qualidade própria do escritor, é a sua maneira — como ele exagera o mal exagera o bem, como exagera o homem exagera a natureza. Para Montsou aquela gente, para Sedan aqueles soldados e aqueles animais fantásticos, para Coupeau aquela monstruosidade do Assomoir, para aquela vermina aquele planturoso mercado do Ventre de Paris com os seus tabuleiros, com as suas barracas onde parece acumular-se toda a produção das hortas fartas dos arredores da cidade. 

A mesma virtude é exagerada como no padre Mouret, o místico. 

O estilo de Zola é formidável — ele não tinha a preocupação das miudezas posto que, por vezes, se divertisse em detalhar; a sua intenção era o assunto e, diante da tela imensa, lançava o desenho com a pressa fogosa de um delirante e, enchendo-o com as tintas, procurava, à força de cor, a verdade imaginada e, quando contemplava os seus horizontes como que ainda os achava apertados e lá ia com eles para mais longe, impelindo-os como se afastasse um biombo que atravancava um aposento. 

O que torna, talvez, monótona a grande obra é o forte tom marcial que dela sobe — é o mesmo hino que regula a vida daquela gente — no campo e na cidade, nas minas e nas igrejas, nas greves e no amor, na guerra e na balbúrdia dos mercados, nos boulevards e nas chãs campestres. O ritmo é o mesmo e tem-se a impressão de um cinematógrafo variegado, de grandes proporções, ora trazendo cenas épicas, ora apresentando episódios domésticos ou mostrando o trabalho agrícola, a luta tremenda do camponês com a terra, ao som da Marselhesa tocada estrondosamente e sem descontinuação. 

Esse defeito do poeta épico desaparece por vezes e é quase sempre atenuado pelo entusiasmo que desperta ainda que prejudique, em certos lances, a verdadeira emoção — isso, porém, vem ainda provar que o grande escritor era um extraordinário poeta que se deixava arrebatar pela musa seguindo-a nos ovos arrojados. 

Bem diferente do tranquilo Daudet, que tão bem descrevia os homens e a vida, sem arrancos com um sentimento justo, com as proporções exatas — um via a natureza e o homem e copiava-os, outro cantava-os com a voz forte com que os aedos e os ollans dos tempos heroicos referiam os feitos dos guerreiros e descreviam as carnificinas e as quedas estrondosas dos muros das cidades. 

Sei que a Crítica vai analisar a obra do romancista, eu fico contente com a minha admiração pelo poeta.

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