11/28/2022

Arte (Crítica), de Coelho Neto

 

ARTE 

Acompanhai um grupo de homens a uma galeria de pintura, entrai com ele, tanto que chegardes ao salão logo o vereis dispersar-se buscando cada qual, não a pura emoção estética, mas a representação de uma “realidade” conhecida. Não é o instinto do Belo que os conduz, é o instinto da Crítica. 

Um, que foi militar mas que nunca desembainhou a espada, senão em vésperas de revistas para esfregar a lâmina com uma camurça, detêm-se, muito grave, de olhos apertados, em frente de uma “batalha”, comentando, com a ciência de um estratégico, a posição do exército, as atitudes das figuras; explicando os diversos apetrechos bélicos, analisando a expressão de cada um dos combatentes. 

Outro, que viajou comodamente em um paquete do Lloyd Bremen, estaca diante de uma “marinha”, a comparar o navio que veleja a todo o pano por um vasto e roleiro mar cortando o quadro em diagonal como para mostrar o flanco no qual a onda se acapela com o outro em que fez a travessia e recorda, calado, aqueles dias, aquelas noites de viagem, vendo na tela uma referência ao passado feita com o propósito de despertar reminiscências boas. 

Outro, com as mãos nos joelhos, fica acocorado a olhar uma natureza morta: perdizes e lebres. O homem é caçador e busca nos animais o tiro apenas. Mais adiante certo cavalheiro, de ar sisudo e óculos de grossas lentes, o sobrecenho carregado, fita umas lindas árvores — está a classificá-las, descobre-lhes as famílias, quase que lhes fala, porque, enfim, na sua qualidade de botânico, é quase um íntimo. 

Mais longe, um saloio rebarbativo coça o queixo e, risonho, confessa que — “repolhos daquele tamanho ele nunca os teve na sua horta” e toda a sala murmura aprovando, criticando. Só, diante de uma paisagem mística — um trecho de campo à hora crepuscular sobre um fundo violeta de colinas nubladas — um rapaz, por vezes eleva os olhos como em êxtase, torna depois com eles à paisagem, eleva-os de novo, um instante, gozando introspectivamente a visão ou tirando da natureza exterior, material, a mesma essência subjetiva, o que há de sugestivo, de divinamente poético em toda a realidade. Esse é o único que goza os mais olham, comparam as simples representações de fatos, de coisas e de aspectos. 

A verdadeira Arte é desinteressada como o verdadeiro amor e procura na natureza não o que ela tem de útil mas o que ela tem de Belo — daí essa constante tentativa dos artistas para alcançarem o que se convencionou chamar o Ideal, que é para a Arte o que Maya é para a mitologia hindu — a suave, a eterna ilusão. 

A poesia, que é, afinal, a alma de toda a Arte — melodia na música, emoção na pintura, expressão na escultura, simbolismo na arquitetura, graça na dança, é uma idiossincrasia e, por isso mesmo, variável. Há uma só poesia mas os meios de representação multiplicam-se — não há aspectos, há impressões. 

A poesia de Hesíodo difere essencialmente da poesia de Barbier, como a do Dante diverge da de Lamartine, todavia ninguém ousará negar ao autor dos Imbos e ao poeta sentimental da Queda de um anjo o sentimento lírico que é a fonte da verdadeira Poesia. 

Se compararmos uma tela de Fra Angélico com uma fantasia de Callot acharemos em ambas a mesma essência poética, a interpretação é feita, porém, de acordo com a personalidade de cada um. O motivo dórico de um coro antigo e a Adelaide de Beethoven, uma canção de galiongis, do Bósforo e o Adeus ao cisne, do Lohengrin, são variações diferentes dos mesmos sons — a escala é uma só. 

O que varia substancialmente é a forma, a essência é imutável; para senti-la, porém, é necessário não ficar superficialmente na representação mas descer à intenção: ver não é olhar, é compreender: é sentir com os olhos. 

O artista fiel não deve imaginar a natureza, deve senti-la. Ruskin, o grande revolucionário da Arte inglesa, pensava assim: “para que mentir, se a realidade é admirável?” Na estética ruskiniana tudo é Belo — o “Belo é a assinatura de Deus nas suas obras”. 

A beleza é caprichosa: para transformar toda uma paisagem basta um raio de sol e o mesmo trecho de bosque, visto em horas diferentes pode, na tela, com a poesia própria dos momentos — porque cada hora tem a sua expressão — dar impressões diversas, interpretado por artistas de gênio. A cor é sempre um reflexo da luz e não a realidade da visão, a palheta é um relógio e os pincéis variam como os ponteiros seguindo o esplendor ou as sombras. 

A luz de um quadro é sempre motivo de controvérsia. Os que não sabem ver revoltam-se indignados contra certas ousadias — um fundo de serras cor de rosa, uma água arroxeada, certo tom violeta recorrendo pelo tronco rugoso de uma velha árvore, uma nuvem coruscando no ocaso como uma língua de fogo, a névoa azul deixando ver em transparência suave, a natureza que adormece; perfis de choças, rochedos esbatidos, bosques que se confundem em uma única mancha de um tom cinéreo-escuro, e lá ao fundo, aguda e branca destacando-se vivamente, uma torre fina. 

Essas temerárias ousadias ferem a visão comum e provocam os protestos — “não há tais cores, montes cor de rosa, águas como feitas de violetas diluídas, nuvens cor de fogo, ares azuis, absurdo, erro, asneira!” E, por mais que o artista afirme que viu aqueles aspectos, que copiou fielmente aqueles efeitos de luz, a revolta continua, simplesmente porque o crítico não teve a fortuna de admirar, na realidade, aquelas magnificências que lhe parecem exageradas como se a Arte pudesse exceder em beleza a natureza. 

O que os olhos não veem o espírito não pode compreender, afirmam os intransigentes; entretanto, aceitam, sem discutir, todas as afirmações da Ciência. O mar que os nossos olhos veem é uma verde planície e ninguém hesita em aceitar a sua curvatura; os astros que a nossa vista alcança são pequenos pontos luminosos e não há quem neles não veja outros tantos mundos — uma refração na tela é absurda, um poente de ouro é fantasia e a análise do espectro é uma verdade que todos acatam porque traz o prestígio da Ciência. 

Toda a obra de Arte que comove é verdadeira, porque só a verdade impressiona e sugere, assim, pois, faça-se a crítica com a emoção, não com a preocupação. Ninguém analisa o sol que atravessa os escassilhos da folhagem, nenhum crítico ousará achar escandaloso o verdegai dos fetos na orla bronze-negra de uma floresta nem se dirá que uma garça de neve pousada em uma boia escura foi um arranjo da natureza; entretanto, tais motivos num quadro, fariam logo a crítica vociferar contra o convencionalismo. Em arte só há um fim — é o Belo, e quem o atinge, impõe-se. 

Todos os processos, todas as escolas dirigem-se para a mesma conquista da verdade estética. Que importa que o artista tenha uma das três preocupações: da cor, da luz ou da linha? Vejamos se satisfaz na realização, se nos transmite o seu “assunto”, se nos faz sentir emoção, que é o fim essencial da obra de arte. Seja a maneira adotada a do Perugino ou a do Caravajo, traga a suavidade de Fra Angélico ou as sombras carregadas do Espagnoletto ou seja o assunto de pura idealização: uma virgem aérea entre lírios esguios, flutuando em brumas cerúleas, fugindo e deixando um rastro de luz fina no caminho percorrido, mãos postas, olhos extasiados, uma auréola a iluminar-lhe a cabeça pequena como as das figuras quase fluidas dos pré-rafaelitas, não entremos a desfazer em análise o trabalho, pedindo o claro escuro, diluindo as sombras ou reclamando proporções para as flores, transparência para as águas, músculos fortes para a figura — contentemo-nos com a impressão. 

Essa pintura dos pré-rafaelitas, como a música de Wagner, é uma “ideação” — ambas são falsas para os que não admitem a intervenção de uma arte no domínio de outra, porque, dizem eles, julgam poder dispensar a palavra — impondo-se como expressivos poemas de cor e de som. Eu sou dos que não indagam se a invasão é admissível — preocupo-me apenas com a emoção que me causa e, interpretando, gozo e gozando satisfaço-me. 

A propósito da exposição do artista brasileiro Aurélio de Figueiredo, que foi, durante alguns dias, hóspede de Campinas, muito se discutiu a nova maneira que vai avassalando os velhos processos da pintura. Entre os 38 quadros expostos no salão do Centro de Ciências, Letras e Artes, dez filiam-se à luz — são quadros de esplendor — em todos eles brilha o sol, em uns com o rigor da manhã, em outros com a saudade crepuscular e essa luz farta derrama-se esplendidamente pelas telas, transfigurando a paisagem que, olhada de repente, ofusca, mas contemplada, sentida, expondo todos os seus detalhes, transmite o sentimento que nunca mais nos deixa e que fica no espírito, forte, eterno, como a “ideia” de um poema ou o “som de uma voz adorada”, ou, como diz melancolicamente o poeta saturnino: 

L'inflexion des voix chêres qui se sont tues. 

Diante de um dos quadros intitulado Tarde fluminense disse alguém, com sinceridade: 

— Sim, eu sinto bem a hora, sinto o transmontar do sol que deixa um resto de luz rósea nas montanhas, vejo que é a tarde, mas... não compreendo essa cor. Acho tudo bonito mas não percebo; não sou capaz de exprimir o que sinto. Nunca vi uma montanha cor de rosa... 

— Mas, já procurou ver uma montanha à hora do ocaso, com os restos da luz que se vão diluindo em sombra? 

— Não... Sinto a tarde, isso sinto... 

— E quantas vezes terá o senhor detido o andar olhando um céu afogueado, árvores polvilhadas de ouro, águas lampejando como lâminas de prata, lombos de rochas faiscando e depois tudo arroxeado... 

— Sim, sim... 

— Então? Se visse isso mesmo em um quadro que diria? 

— Não sei. Esse “não sei...” diz tudo. 

Nessa nova “maneira” do artista há o triunfo esplêndido da luz — a natureza é clara e é justamente essa alacridade que parece um defeito, o que nós condenamos é justamente a verdade — é o sol que veste de púrpura os rochedos, que chameja nas nuvens, que recena os arbustos, que cintila nas águas e que polvilha de bruma dourada os ares finos. Os nossos olhos como que não sentem a impressão da arte, os quadros são como os postigos e o que vemos entre a moldura, como na abertura de uma janela, é a própria natureza luminosa — é a manhã, é o meio-dia, é a tarde — é a luz, enfim, em todos os seus aspectos, a cor em todos os seus matizes. 

E a falta dos tons fortes, os toques pastosos, as manchas largas à espátula, as tintas superpostas, toda essa grossa placagem que dá ao quadro a rugosidade áspera de cascas esborcinadas é substituída pela suavidade harmônica dos esbatidos, pelos contrastes que não ferem como não ferem na natureza, pela doçura que há em toda a verdade, quer ela seja uma flor, quer seja um penhasco anfractuoso e nu. 

Demais o que há nessa pintura luminosa que logo impressiona é a poesia das coisas que se espalha de todas aquelas telas como o perfume se evola de um ramo de flores — com a naturalidade de uma respiração. 

A Arte não é a cópia servil, é o sentimento ou a adoração da Natureza, como disse Ruskin. A obra de Arte não é bela por isto ou por aquilo, é bela porque é bela. As regras são apenas caminhos e que nos importa que o artista tenha seguido por uma trilha por ele mesmo aberta se chega ao ponto em que se reúnem os mestres? 

Em Arte só há um processo mau — é o do trivialismo, e infelizmente é esse o que mais admiradores tem.

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