11/28/2022

Um modelo de marido (Conto), de Coelho Neto

 

UM MODELO DE MARIDO 

Mieulx est de ris.
(Rabelais) 

Lembro-me sempre dela, e dela guardam uma doce lembrança, doce e apimentada, por vezes, todos quantos a conheceram e saborearam, nos famosos e prolongados jantares do Andaraí, aos sábados, os excelentes pitéus cujos segredos lá foram para a Eternidade com a alma virtuosa que abandonou, por uma indigestão de pepinos, o corpo anafado da que se chamava cerimoniosamente D. Bertoleza Couceiro e na intimidade Totó, sem mais nada. 

A excelente senhora, que Deus tenha! expirou nos braços do inconsolável marido, numa noite triste de Agosto e as suas últimas palavras foram ainda de bondade recomendando um peru que engordava para ser servido no próximo jantar, tão tristemente adiado por motivo tão triste. 

Com a morte da admirável matrona cessaram os jantares e, aos sábados, os antigos comensais do Andaraí, espalhados pelos hotéis, trincando bifes córneos, lamentam, com sentimento, aquele desastre que os privou da delícia hebdomadária dos mais louros e cheirosos vatapás que jamais alastraram terrinas, dos peixes fritos mais deliciosos que jamais rechinaram em sertãs, sobre azeite de gergelim, das almôndegas, dos caranguejos em cascos, das sopas de ostras, das tortas fofas de camarões ou de mariscos das... 

Como eu invejo os santos...! Se lá no assento etéreo há uma cozinha muitos dos bem-aventurados já terão sofrido as dolorosas consequências da gula porque nenhum, mesmo aqueles sóbrios ascetas que se contentavam com um gafanhoto ou com uma seca raiz, resistirá aos acepipes em que era inimitável a boa D. Totó, mestra em temperos. 

De todos o que mais sentiu a sua morte foi o Couceiro — ainda hoje o pobre homem, sempre que se senta à mesa, com o guardanapo tarjado entre as dobras do pescoço gordo, suspira com tanta angústia que as folhas tenras da alface voam dos pratos como sopradas por um rijo vento de outono e, aos sábados, há lágrimas dignas. Quantos cozinheiros, de um e de outro sexo, tem passado por aquela cozinha tão celebrada no antigo tempo! Quantos! Mas os segredos, esses não tornam. 

Couceiro lembrou-se do tomar um médium para a cozinha e, todas as noites, com muita gravidade, entre panelas e frigideiras, invocava o espírito da esposa para que se comunicasse com o médium ditando receitas. Cheguei a acreditar que o viúvo fizera alguma porque o espírito arranjou uma tal salada de ovos duros, mariscos, beterraba e especiarias que o bom homem quase rebentou e emagreceu a caldo chilro durante uma semana de cama, drogas e dieta. Contando-me ele o caso eu observei: 

— Couceiro amigo, os espíritos são ubíquos e vêm tudo, não pôde haver segredos para os imateriais. Tu és homem e frágil Couceiro amigo, e nunca houve no mundo, especialmente nesta pátria que um sol perverso abrasa, tantas seduções como agora. Tu viste algum palmo de rosto e... 

Couceiro levantou-se e roncou espalmando a mão gorda no peito generoso:

 — Juro-te que sou puro como uma vestal! Vivo para a finada — sou tão fiel àquele túmulo que... nem sei mesmo... Queres que te diga?... E o meu nédio amigo e anfitrião nos saudosos tempos esbugalhou os olhos radiados de sangue e, depois de uma pausa sisuda, disse: eu sou o modelo dos maridos. Notei que os seus olhos saltados se iam marejando e quis fugir ao assunto melindroso e comovente; ele, porém, insistiu. 

— Não, agora hás de ouvir-me; quero provar a um amigo, como tu, que sei cumprir os deveres que a viuvez impõe. Eu sou um Aquiles, Anselmo! Berrou; invulnerável como Aquiles, em se tratando de amor... 

— Mas... hás de ter o teu calcanhar, Couceiro; todos temos... 

— Sim, tenho calcanhar... Mas, que diabo vou eu fazer com o calcanhar? Digo-te e juro pelas minhas barbas que sou uma vestal: não há dois Couceiros no mundo; não há! A alma da minha mulher, daquela grande amiga, que era também tua e dos outros, dos ingratos que me abandonaram, vive nesta casa e governa-a, eu sinto-a... mas, o que tu não sabes é que os ossos de Bertoleza me acompanham, eles que são tudo quanto resta do seu corpo que a terra comeu com uma voracidade incrível. Ah! que Bertoleza devia ser saborosa, tanto lidou com temperos que ficou, sem dúvida, saturada e a terra — como nós, que também somos terra — aprecia o que é bom. 

Quando fui ao cemitério para a exumação ia certo de encontrar ainda um resto de carne, daquela carne tão tenra e tão branca; pois, meu amigo, só vi ossos limpos, mais chupados do que os ossinhos das galinhas de molho pardo que ela fazia e que eram uma verdadeira delícia. Ossos e cabelos, nada mais. Tomei o esqueleto adorado e apertei-o de encontro ao peito... Ah! Quem a viu e quem a visse! Nem parecia a minha, a nossa Bertoleza, que era uma senhora de peso e medida. Depois de apertar aqueles queridos ossos encerrei-os em uma urna e trouxe-os para a minha companhia. Todas as manhãs lá ia eu à sala e, curvando-me, beijava a urna, dizendo: “Bom dia, Bertoleza”. Antes de deitar-me ia desejar-lhe uma boa noite. Assim vivemos alguns meses, eu e os ossos. 

Um dia, porém, tive uma ideia, uma ideia que só podia nascer no espírito de um marido fiel como eu me prezo de o ser. Encaixotei os ossos e despachei-os para Londres com uma carta a Harrison & Brothers. Meses depois recebi o resultado da minha encomenda e vais vê-lo. Couceiro, então, tomando a lapela do seu casaco, disse-me: estás vendo estes botões? 

— Sim, Couceiro; estou vendo. 

— São de ossos humanos, ossos de Bertoleza. Os botões do colete, os das calças, os das ceroulas, os da camisa, os do sobretudo, são da mesma matéria. Os cabos das facas e dos garfos com que como, o cabo do meu guarda-chuva, o castão da minha bengala, a piteira em que fumo, o cinzeiro, o tinteiro, as minhas canetas, o meu porta-cartões, o cabide em que penduro a minha roupa, as peças do meu xadrez, tudo, tudo foi feito em Londres, por Harrison & Brothers, com os ossos da minha sempre chorada mulher. Olha estes suspensórios? foram tecidos com os seus cabelos e os seus dentes estão todos aqui, menos os postiços; e Couceiro, abrindo a camisa, mostrou-me sobre o velho hirsuto e negro do peito, como uns ovinhos de lagartixa bem aninhados, quatro molares presos a um fio de ouro. 

Eu pasmado, não dizia palavra: olhava e admirava. Que outro homem seria capaz de proceder assim, dize, tu que conheces os homens? Garanto-te que se mais não fiz foi porque os ossos para mais não deram: o meu desejo era que eles me fizessem a casa e os móveis e, se eu tivesse obtido a pele macia e alva de Bertoleza, mandaria fazer camisas e ceroulas mas, que queres? Os ossos eram poucos e a pele foi devorada pelos bichos. É assim que vivo — sou uma urna. Esta é a memória do corpo, da alma como me hei de esquecer? 

Logo de manhã, quando me trazem o chocolate ou o mingau, suspiro por ela e sempre que faço alguma refeição lembro-me daquele espírito gentil... aos sábados, então, choro copiosamente. É possível que a alma ciumenta se tenha querido vingar algumas vezes, mas só com ciúme das cozinheiras. Lembro-me que um dia, no tempo daquela cabocla Sebastiana, gabei, com entusiasmo, um peixe de forno dizendo — “que parecia preparado pela minha defunta mulher”. Pois palavras não eram ditas e já eu engasgava, com uma espinha atravessada na goela. Fiz tudo: virei o prato, engoli farinha, invoquei São Brás, tossi, nada; foi preciso chamar um cirurgião. Outra vez foi com um polme de ervilhas, em verdade maravilhoso! — louvei-o e fui para a cama com uma congestão de fígado da qual não sei como escapei. Bertoleza não tem ciúme da Mulher — eu posso admirar a beleza, o que ela não permite é que eu elogie as cozinheiras. Eis o caso. 

Para não ceder às tentações ando com os ossos, sirvo-me deles para tudo: — é com os meus botões que converso e os botões, como sabes, são ela e, sempre que se vai gerando em meu espírito alguma ideia menos digna assim como os eremitas, sentindo o demônio, levantavam a cruz, eu esfrego os botões e logo se dissipa o sortilégio e assim vivo puro e só, sem pensar no pecado que nos estraga o corpo e nos põe a alma à boca do inferno. Outros maridos, menos escrupulosos, contentam-se com o ligeiro luto de um ano e com algumas missas mandadas dizer, mais para a sociedade, do que pela alma das suas defuntas — o meu luto aqui está nos ossos: trago-os no corpo e uso-os em tudo e as missas digo-as eu mesmo, à mesa, duas às vezes, três por dia, sempre que como. 

A mesa é um altar, já alguém disse — pois é diante desse altar e com as lágrimas dos meus olhos que eu rezo pedindo a Deus que trate a alma da finada com todo o carinho da sua misericórdia. E agora, sê franco e dize se há no mundo outro homem como eu, fiel à esposa apesar de ser ainda um bom partido e bem disputado?... Há aí uma viúva que me faz ardentes propostas com os olhos, ainda luminosos, sempre que me encontra. Estive para corresponder mas lembrei-me do finado e disse aos meus botões: “nada, ele é capaz de fazer-me alguma lá pelo outro mundo, para vingar-se de eu lhe haver tomado a mulher...” e recuei. Depois, francamente, eu nunca gostei de objetos comprados em segunda mão — trazem sempre alguma coisa dos primitivos donos. Uma vez, ainda era viva Bertoleza, comprei uma cama em um leilão de antiguidades; pois, meu caro, fizemos tudo para pô-la em estado de servir, não houve meio — à noite, mal nos deitávamos, sentíamos umas cócegas, depois umas dentadas e teríamos sido devorados em vida se eu não me resignasse a passar adiante, com prejuízo, o tal móvel precioso. Com a viúva podia acontecer o mesmo. Não, já agora levo a minha cruz ao Calvário. 

— Mas... há partidos novos, Couceiro e excelentes. Tu és um homem conhecido, rico, ainda forte... 

— Quarenta e oito feitos... 

— Então? 

— Não quero... lembro-me sempre do meu avô... 

— Que houve com o teu avô? 

— Eu tive duas avós, uma direita em tudo, outra torta, também em tudo. Meu avô, já era avô três vezes, meu e dos meus irmãos, quando, perdendo minha avó, casou com a outra que podia ser sua neta e o resultado foi aparecer um tio que escandalizou a família. 

— Por quê?... 

— Ora... porque apareceu durante a ausência do meu avô. Parece que a senhora minha avó quis fazer uma surpresa ao velho. E fez... 

— E ele? 

— Ele... Ele era um idiota (salvo seja) e reconheceu a criança, até achou nela os traços da família. No ano seguinte veio uma tia... e ainda depois da morte de meu avô, um ano depois, nasceu-lhe um filho, o caçula. Não, eu fico com os meus botões e com os outros ossos e, como, tendo a mesa farta e bem temperada, sou um homem feliz, contento-me com as cozinheiras.

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