1/22/2023

A cidade em preto e branco (Conto), de Iba Mendes

 

A CIDADE EM PRETO E BRANCO 

Depois de uma noite longa e acompanhada por fortes tempestades, a cidade amanheceu em preto e branco. As ruas foram tomadas de um espantoso alvoroço e as pessoas que ali se desesperavam viam-se umas às outras como se estivessem nas páginas de uma antiga revista do século dezenove: em preto e branco.

Alertadas sobre o extraordinário evento, autoridades da capital compareceram ao local a fim de verificar o ocorrido, e ficaram estupefatas ao se verem, também, em preto e branco.

O estranho fenômeno estava circunscrito geograficamente dentro dos rígidos limites da cidade, de modo que, ao se retirarem dali, as pessoas adquiriam suas cores naturais, e, ao entrarem, viam-se como que inseridas no velho tubo iconoscópico inventado por Vladimir Zworykin.

A notícia correu o mundo, e renomados cientistas de vários países peregrinaram até a cidade, na tentativa de decifrar o enigma e, quem sabe, encontrar uma solução que pudesse reverter ou explicar o surpreendente acontecimento. Todavia, após trabalhoso inquérito e numerosas pesquisas, concluíram que tudo não passava de um estrondoso mistério, cabendo aos governantes a incumbência de um desfecho para o caso. O governo, por sua vez, publicou uma resolução com a qual determinou que os moradores deveriam abandonar imediatamente a cidade, aconselhando-os a buscarem refúgio nos municípios vizinhos, afiançando-lhes ainda que tão logo se resolvesse o problema, eles poderiam retornar para o conforto de seus lares.

Decorrida uma semana, a cidade estava deserta, totalmente abandonada, ficando seus arredores vigiados dia e noite pelo exército, que proibia a entrada de qualquer pessoa, não importando as razões ou as circunstâncias que pudessem justificar a penetração na localidade. Meses depois ergueram um gigantesco muro ao seu redor, com um enorme portão de ferro maciço, e declararam o local como área restrita e intransponível, restando ao incauto aventureiro que apenas tentasse transpor os muros, uma severa pena, em que se incluíam prisão por crime de desobediência pública e multa. E, no caso extremo de invasão, os soldados estavam autorizados a atirarem contra o desobediente.

As coisas marchavam assim, quando ao correr dos anos, alguns moradores da redondeza alertaram terem ouvido sons a soar à noite de dentro dos muros da cidade, como se fosse uma orquestra bem afinada, e vozes “como de anjos”, acrescentavam outros. Uma senhora idosa relatou ainda ter visto luzes fosforescentes a cintilar por entre os muros na calada da noite, entre uivos de lobos e chacais. Por fim, um grupo de rapazes jurava com convicção absoluta que presenciara algo assemelhando a uma nave espacial pousando atrás dos muros, atribuindo ao este evento à ação de seres alienígenas oriundos de outro planeta. Esse aglomerado de boatos chegou aos ouvidos das autoridades, que deliberaram adentrar os muros da misteriosa cidade, a fim de aquietar os ânimos e acabar de uma vez por todas com as especulações, as quais se continuadas poderiam tornar-se geradoras de motins e rebeliões.

Por fim o portão de ferro foi aberto para a entrada dos representantes do Governo. Ao redor, uma multidão de pessoas aguardava ansiosa e apreensiva alguma notícia que pudessem mudar suas vidas agitadas. Não houve notícias porque nenhum dos que entraram retornou. Este fato fez aumentar ainda mais o pavor e a inquietação entre os habitantes da região, o que levou as mesmas autoridades a intervir com a ação do exército.

Homens das Forças Armadas, devidamente preparados, penetram no interior da cidade, ainda sob o olhar aterrorizado da multidão. Mas estes também não regressaram. O povo cada vez mais atemorizado uniu-se em grupos e investiu com martelos contra os muros fortificados, acontecimento este que ficou conhecido como a “Revolta dos Martelos”.

Parte do muro veio, enfim, ao chão, e a multidão furiosa alcançou o interior da cidade, que se encontrava do mesmo jeito que antes, em preto e branco. Os representantes do governo e os soldados do exército foram achados dormindo serenamente embaixo de árvores, enquanto o vento espalhava sua brisa suave e tranquila. Tudo ali se achava descolorido, em cores mortas, exceto o velho cemitério, que se destacava por suas cores vivas, assim como seus mortos.

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