3/01/2023

Madressilvas (Poesia), de Brasílio Machado


MADRESSILVAS


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PRIMEIRO LIVRO
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A VOLTA

Ele vinha de longe. Achou deserto
o campo, e o lar aberto
a estranhos recebia.

Trajava a casa o manto da riqueza.
A mão da natureza
ali já não se abria.

Ai! se não fora esse íntimo atrativo,
na dor sempre mais vivo,
mais vivo na saudade;

esse doce atrativo que nos liga
à sombra tão amiga
da morta mocidade...

que leva-nos bem longe do tumulto,
para prestarmos culto,
no altar de uma lembrança,

às risonhas quimeras do passado,
tão cedo desfolhado,
qual sonho de criança...

por certo passaria — indiferente.
E a saudade silente,
das árvores suspensa,
 
não lançaria a cinza adormecida
na flor daquela vida,
estéril para a crença!

Mas, ao chegar, alguém inda o notara,
e logo perguntara:
quem era? o que buscava?

E essa pergunta lhe doera tanto!
que em dois fios de pranto
seu rosto se molhava!...

Estranho ser! ali, ao pé do ninho,
quando a voz de um carinho
ouvir talvez pudesse...

Ai! ser estranho, quando ali vivera,
e, mísero, prendera
o amor que não fenece...

Ai! ser estranho, quando mesmo a aragem
trazia da folhagem
não sei que som doído,

que lhe vinha falar, e tanto, tanto!
naquele desencanto
de um sonho esvaecido!

E quando tudo lhe inflamava a mente,
e a saudade dolente
seu coração abria;

quando rodeado do que mais amara,
alguém lhe perguntara:
quem era? o que queria?

É verdade! bem como as borboletas
que fogem inquietas
do arbusto sacudido,

vão-se as lembranças, se no pátrio ninho,
ou do estranho, ou do espinho
o braço tem caído.

Mas também, quando volta o desterrado
as sombras do passado
agrupam-se ao pé dele:

e ao seio que a esperança não fecunda
sai da noite profunda
um anjo que as impele

Ele vinha de longe. Achou deserto
o campo, e o lar aberto
a estranhos acolhia.

Em sua mão não viu a mão do amigo,
mas Deus naquele abrigo
contente o recebia.

 

FLOR NO GELO

Pobre criança! entre espinhos
tua inocência agoniza:
o viajante repisa
a morta flor dos caminhos.

Deixaste em noite sombria
tua grinalda ao relento...
Das flores... nem sabe o vento
que uma a uma as partia!

Enquanto em lânguido riso
teus lábios puros se abriam
aos sonhos que reviviam
delícias do paraíso,

tu nem cismavas, criança,
que quando a virgem fenece,
a estrela que desaparece
leva consigo a esperança!

Pobre! na alegre devesa
daquela casinha branca
onde tua irmã, na barranca
do rio, chora em tristeza,

o campo flor não promete,
tudo na dor se consome;
e o eco esquece teu nome...
nem tua mãe o repete!
 
A mãe! que noites sem sono!
que mágoas naqueles dias!
que terríveis agonias
na dor daquele abandono!

Mas, oh! não voltes... O inverno
queimou-te as azas depressa:
e onde a irmãzinha adormeça
no casto seio materno,

não deves buscar asilo;
porque a ramagem do espinho
pode estreitar o bercinho
que se balança tranquilo!

Bem sei: — há quedas imensas
que uma lágrima resgata;
mas não sei, pobre insensata,
se revivem mortas crenças...


Se assim for, chora, criança!
talvez do pranto que caia
Deus forme a flor donde saia
o aroma de uma esperança!

 

AVE DOURADA
(N. Martin, mariska)

Um pássaro cantava
sobre um ramo que flórido alvejava.

Era uma ave tão de ouro
que disseram-na — filha peregrina
do sol, o amante louro.

Como ao toque uma lâmina que vibra,
à sua voz cristalina
tremia o coração, fibra por fibra.

E à minh'alma a esperança intumescia
de sonhos... mas o encanto se esvaía.

Ai! quando o verei mais, funda saudade!
o pássaro de luz da mocidade!

 

NA VALSA
(Mery)

— Uma hora.
— A pêndula mente,
meia-noite vai soar.
— Que baile este atraente!
— Soberba festa, senhora,
festa completa, nesta hora
em que estamos a valsar.

— Acha a toilette — brilhante
daquela loura mulher?
— Oh! neste suave instante
não se desprendem, sequer,
meus olhos de uma valsante
que é formosa a mais não ser.

— Não agradou-lhe o romance
cantado tão bem aqui?
— Só vivo quando valsamos...
portanto nada eu ouvi.

— Esta valsa que dançamos
é de Strauss?
— Talvez... depois
toda a valsa é tão bonita!
marca o tempo só para dois!

— Neste inverno há muitos bailes...
— Eu não frequento, não:
passo a noite ou nos teatros
ou no lar junto ao fogão.

— Tão moço! e já de neve
a mocidade cobris?
— Tenho trinta anos. Passada
a primavera dourada,
apenas cai-me esfolhada
alguma hora feliz.

— A ideia é nova!
— Tenho outra
que é também nova para mim.
— Não é segredo?
— Suspeito
que vós sois viúva...
— Sim.
— E desde quando?
— há dois anos.
— E gosta da viuvez?
— Sim.
— Porque é repelente
um laço eterno, talvez...
O esposo é pouco indulgente...
— Pensai-o, se assim quereis.

— Não, a viuvez não lhe agrada;
seu sorriso assim mo diz...
— Também só, me custa a vida:

podemos, pois, de dois males
formar destino feliz.
Assim, dá-me a sua mão?
— A minha?
— Sim; nosso estado
não impede uma união.
Seus pais...
— São vivos.
— Que importa?
eles jamais poderão
contrariar o destino.
Vivos, na morte eles estão.

— Foi seu pedido — apressado!
— Não estamos no país
da Escócia; e todo noivado
de Lamermoor é infeliz...
Não faremos festa alguma
de esponsais: — em bons caminhos
não ponho o pé nos espinhos.
Casaremos amanhã...
— Amanhã?
— Ou nunca!
— Estranho
caso igual inda não vi.
— Que tem? é coisa mais simples
que pôr um ponto no i.

— Como se chama?
— Meu nome?
Pedro ou Paulo, qual quiser.
Que importa o nome de um moço?
sem ter um, mais posso ter.

Sou rico. Minha fortuna
não é mesquinha, nem van:
consta de ações e de apólices...
Findou a valsa.
— Amanhã.

 

REMINISCÊNCIAS

Oh! não toqueis assim nesse piano...
Essa música é triste como a morte:
as notas se desprendem, como a lágrima
goteja sobre um túmulo.

A corda chora, e no contato sente
uma outra mão que não a dele... morto.
E ao retrair-se deixa um som que é lúgubre,
ou um gemido trêmulo.

Foi seu canto de cisne... Pobre amigo!
nunca pensara desfolhar tão cedo
o risonho porvir, e cedo à glória
prender um laço fúnebre.

Não pensara deixar tão cedo a estrada
cuja poeira os louros escondiam,
e trocar as grinaldas estelíferas
pelos goivos funéreos.

Não evoqueis a sombra! no cipreste
a rola da saudade geme ainda.
A asa do tempo sobre o mármore gélido
não apagou seu dístico.

E é tão doída essa saudade imensa,
que eu vos peço, senhora: do piano
não arranqueis esse gemido extremo.
Não aperteis a cicatriz que doe-me
contra a laje de um túmulo!

 

A ESTRELA

I
Tu és a vela dourada
do azul abismo dos céus,
ilha que vais embalada
ao sopro da asa de Deus.

Quando a tarde morre, e o monte
naufraga em sombrio mar,
e as aves dobrão a fronte
no oculto ninho a sonhar;

sacodes do céu distante
com tuas azas de luz
uma chuva cintilante
sobre os paramos azuis.

E corta a quilha encantada
do infinito os largos véus,
ilha que vais embalada
ao sopro da asa de Deus.

II
No vasto lençol da vaga
peregrina a luz que cai
se estende de plaga em plaga:
é teu arauto que vai,

que vai erguer as ondinas,
à noite, para apanhar
na onda as flores divinas
que derramas sobre o mar.
 
E caem centelhas mimosas
do astro que desabrochou,
como um punhado de rosas
que o vento ao lago atirou.

E brinca a luz desfolhada
que sacodes de teus véus,
ilha que vais embalada
ao sopro da asa de Deus.

III
Mas, donde vens? qual teu norte?
que sina cumpres além?
não te alcança a mão da morte?
o Eterno não te detém?

Que importa? sigo teu passo,
peregrina da amplidão,
tu és o sonho do espaço,
do infinito o coração.

Deixa-me, pois, nas caladas
da noite, os olhos erguer
para as regiões azuladas
em que te vejo tremer.

E envolve esta alma apagada
num longo brilho dos teus,
ilha que vais embalada
ao sopro da asa de Deus!

 

UMA NOITE EM S. PAULO

Minha terra é o país das serenatas
por noites de luar,
Enquanto a névoa em trêmulas cascatas
no rio vem boiar.

As frautas, do violão ao som doído
aqui sabem dizer
os segredos do amor, saudades vivas
dos anos de prazer.

Jamais em lábios rubros de espanhola
a cantiga gemeu
como uma só das belas serenatas
que escuta o nosso céu.

Jamais o gondoleiro do Rialto
que a onda acalentou
mais doce canto às auras do Adriático
à noite suspirou.

Em meu país o canto do tropeiro
sentado ao pé do lar,
ou do rancho nos ermos, onde a lua
encontrou-o a sonhar;

a cantiga do escravo suspiroso
no exílio do sertão,
quando ao dia que morre ele despede
sua pátria canção;

as tiranas doídas que a viola
chorando desprendeu
acordam mais o gênio da saudade
na sombra deste céu...

Nosso canto aprendeu as melodias,
seus hinos virginais,
da cascata no trêmulo murmúrio,
na voz dos sabiás...

Minha terra é o país das serenatas
por noites de luar...
Vinde, filhos de além, ver quanto é doce
sob a curva do céu aqui sonhar!

 

SONETO

Ela partiu. Sorria-lhe a esperança
como um raio de sol do mar à flor;
e aquela nobre fronte de criança
cingia os sonhos de um primeiro amor.

Depois eu vi-a. O íris da bonança
desfolhava no céu já frouxa luz:
e aquela nobre alma de criança
sentia a sombra da primeira cruz.

A vida é isto mesmo. Abre-se um dia,
desabotoa a caule: — é a mocidade...
Desce da altura mágica harmonia.

Depois os sonhos da formosa idade,
como as aves que arrasta a ventania,
perdem-se além...
Em nós fica a saudade!

 

O BEIJA-FLOR
(À Susana)

Beija-flor das penas de ouro
que voas de flor em flor,
onde é que tens o tesouro
da prole do teu amor?

Em que florido raminho
foste prender o teu ninho?
Conheço os arbustos verdes
onde as aves vão dormir;
mas tu na selva te perdes
quando te quero seguir...

E embalde pela folhagem
vejo o rastro da passagem.

Sei o lugar onde insetos
em coroas se vão formar,
e em andejos inquietos
põem-se à tardinha a bailar;

só tu me ocultas, medroso
o teu ninho perfumoso.

Quando esvoaças no prado
a rosa treme de amor,
e abre o seio corado
porque és o noivo da flor...

E desces, desces a ela
tanto, tanto! beija-flor!
E a brisa expulsa do cálix
onde procuras pousar,
a borboleta dos vales
e as abelhas do lugar;

para que não saibas que as flores
volúveis são nos amores.

E eu, contemplando estas cenas
espero que a viração
erga-te as azas pequenas
para a azulada amplidão,

e desça contigo aonde
teu alvo ninho se esconde...

E desça para embalar-te
mimoso filho do céu,
no berço, que em toda a parte
debalde procuro eu...

no berço que eu imagino
ser um lírio pequenino!

Beija-flor de penas de ouro,
tu que és o noivo da flor,
não escondas o tesouro
da prole do teu amor!

Para o seio destas rosas
traze o ninho, beija-flor!

 

A FAMÍLIA

Eu conheço um abrigo, onde a esperança
de penas de ouro revestir-se vai,
onde das crenças o evangelho lemos
sobre uns joelhos de mãe,
e aprendemos a crer na virgindade
ao pé de nossa irmã!

É o ninho da família.
O desengano
mui raras vezes se sentou chorando
daquela porta ao pé.
E quando ao mundo a aspiração nos leva,
há sempre um beijo que depor, sentido,
até no musgo que reveste o muro.

Ali, sobre a criança que respira
as aragens do céu, da terra em meio,
seu pálido semblante a mãe debruça;
e os olhos dizem o que os lábios calão,
e o beijo conta o que o amor, baixinho,
ao coração segreda.

Sorrindo Deus contempla aquele grupo...
e abrindo a mão que as esperanças enchem,
por sobre o chão derrama os louros frutos
da harmonia e do amor,
como a chuva no campo orvalha os lírios.

Depois no lar o sol da mocidade
rebenta ao lado do luar dos velhos.
A mão rugosa no semblante louro
que a aspiração eleva,
encontra sempre luz, futuro e crenças,
ela — que apalpa da ruína o muro,
e enxuga os olhos, cujo pranto é gelo!

E é tão fecunda a primavera d'alma,
de seu tesouro imenso
tanta vida pródiga a mocidade,
que é menos fria junto dela a sombra,
menos estéril do sepulcro a terra.

Depois... lá vêm os anos da ventura,
abrindo os braços, murmurar: adeus!
e nós partimos, tristes, impelidos,
como folhas — no dorso das enchentes,
como nuvens — nas azas do tufão!...

 

ANTÔNIO DE CASTRO ALVES
(Recitada na sessão fúnebre que, em memória do poeta, celebrarão os acadêmicos de São Paulo, no dia 8 de agosto de 1871)

É tarde! é muito tarde! o templo é negro...
O fogo-santo já no altar não arde.
Vestal! não venhas tropeçar nas piras...
É tarde! é muito tarde!

CASTRO ALVES — ESPUMAS FLUTUANTES.

É tarde! é muito tarde! nos caminhos
ele cedo encontrou a noite escura:
e unidas, como irmãs no mesmo berço,
estavam a lira e a cruz na sepultura...

É tarde! é muito tarde! o seu futuro
como luz se atufou no mar profundo.
E Deus na terra estende uma mortalha
para um talento mais do novo mundo.

Quanto sonho gelado numa noite!
quanta estrela tombada num momento!
quando ela, — a noiva negra, recebia
o poeta — da cruz do sofrimento!

O futuro era vasto. Como o pássaro
soerguido no píncaro dos Andes
imbebe o olhar na dupla imensidade
do grande espaço e das savanas grandes...

ele sentira desdobrar-se imenso
por sobre o mundo o céu da liberdade;
e pressentira as vozes do futuro
na aclamação febril da mocidade.

E a mão repleta a transbordar de louros,
a fronte ungida a derramar ideias,
na dupla cruz do povo e dos escravos
ele traçou sublimes epopeias.

Erguera os redivivos. Do passado
lançou as glórias — do porvir às telas,
e sobre as cinzas desfolhou cantando
do seu talento as mágicas estrelas...

No entanto uma ave negra enverga as azas,
as fibras do sonhar gemendo estalão,
e, flores derramadas na corrente,
vinte anos no túmulo resvalam...

É tarde! é muito tarde! que mais resta
da esplendorosa luz que o sol derrama?
como negra mortalha o céu é negro,
vaga nas selvas funerária chama...

Da grande nau as vergas estaladas
boião na face escura do oceano;
e ao látego do vento a onda aberta
sente o baque de um corpo soberano.

É tarde! mas na flor do firmamento
Deus abre agora estrelas fulgurantes...
e sobre a vaga adormecida, ao longe
passam boiando — Espumas flutuantes!

 

JARAGUÁ

É este o meu pátrio monte
que junto ao rio cresceu,
e que envolve a idosa fronte
nos nevoeiros do céu.

Não temas, não, viajante,
ao vê-lo erguido no sul:
tem águias — são andorinhas,
e seu ombro é todo azul.

Primeiro beija-lhe a aurora
a larga fronte sem par,
indo após suas coroas
uma por uma espalhar;

como uma filha que beija
de seu pai a velha mão,
e depois vai as cortinas
correr do berço do irmão.

Circulando o vulto imenso,
ao sol que tombando vai,
uma auréola de incêndios
fulgurante dele sai.

Altivo, como na América,
do condor aos colibris,
tudo é soberbo, arrogante,
sentindo o sol do país;

bem como um velho cacique
de seus guerreiros ao pé,
ele guarda a cordilheira
que azulada além se vê...

Guarda nos lábios de pedra
de arruinadas gerações
os ecos de mil triunfos,
o canto das tradições.

Quantas tribos desgarradas
de seus pés em derredor
vieram erguer as tabas
sonhando um vale melhor!

E este foi seu pátrio monte,
estes vales foram seus...
O monte, os vales ficaram...
dos índios... só sabe Deus!

Oh viajante, não temas
ao vê-lo erguido no sul,
a fronte, cheia de névoas,
nos ombros um manto azul.

 


RUÍNAS

Agora, cresce o cardo, o espinho estreita
num abraço de morte minhas flores;
a serpente sem medo agora espreita
a vinda dos dourados beija-flores.

Sem firmeza, os quebrados jasmineiros,
que outrora balançavam-se no muro,
esmagam a violeta dos canteiros
onde saltam os grilos pelo escuro.

Embalde há primavera: é tudo inerme,
tudo cedeu à cólera dos anos...
apenas eu fiquei para envolver-me
no círculo fatal dos desenganos.

Ao pé da fonte a trepadeira pende,
e a terra se esboroa dela em volta:
o esteio que a ramagem lhe suspende
em pouco tempo vai deixá-la solta.

Não vejo mais alegres passarinhos
que à tarde vinham me saudar cantando;
planta bravia cresce nos caminhos,
e o musgo vai nas pedras se alastrando...

Deserta a casa está. Como andorinhas,
andorinhas que vão morrer no exílio,
os habitantes... ai! lembranças minhas,
como sabeis doer n'alma de um filho!...

Meu pai e minha mãe... ambos partiram,
ambos partiram e não mais tornarão!
Prantos, riso, após eles me fugiram...
depois apenas lágrimas voltaram...

Nos momentos então da despedida,
ao fechar-se para sempre aquele abrigo,
senti perder metade desta vida,
e maior a tristeza ir-se comigo...

Cada pedra do muro uma lembrança
resguardava solícita de outrora:
ou talhada por dedos de criança,
e portanto festiva como a aurora;

ou túrgida de mágoa, dor imensa,
mas inda assim, meu Deus, deixando aberto
o caminho por onde a loura crença
pudesse vir de nós brilhar mais perto!

No entanto a noite desce. Os vaga-lumes
não vêm mais trebelhar nestas devesas:
o silêncio apagou da noite os lumes
no manto das tristezas.

É preciso esquecer as primaveras,
arrancar da colmeia as abelhinhas,
entregar ao sereno, ao cardo, às heras,
o ninho de andorinhas.

É preciso partir, deixar sentido
as auras que alegraram-me o retiro;
derramar este pranto dolorido,
suspiro por suspiro!

E eu deixo o lar entregue às noites frias...
do esquecimento? não, meu pobre ninho,
embora ao meu encontro despedisses
apenas a saudade...
quando podia achar tanto carinho!

 

O DRAMA
(Ao ator, Luiz C. de Amoedo)

Ela é bela... bem sei! mas não se move!
É sombra — e não mulher!

CASTRO ALVES

O drama é uma estátua erguida. Bela e morta,
tem lábios e não ri; tem olhos, mas não vê.
O palco é o pedestal augusto... mas que importa?
se a vida não palpita, e mármore tudo é!
 
Mas se no pedestal, no plácido proscênio,
o artista solta a voz e falia o coração,
a estátua reconhece o influxo do gênio,
e chora e canta e ri na estranha comoção.

A pedra uma alma sente; o mármore estremece:
é vida o que era morte; o que era gelo é flor;
e a agitação do gênio em torno cresce e cresce
no embate da paixão, no ímpeto do amor...

Então o drama é livro: o palco é uma escola.
Dá vida, não corrompe; eleva, não desfaz:
os prantos da virtude... enxuga-os e consola...
os arrancos do vício... algema-os, tenaz!

Do paço até a miséria a vida inteira alcança...
ruge em cólera aqui, além falia em clemência:
n’alma do perseguido — entreabre uma esperança!
no espírito do algoz — desperta a consciência!

E Enquanto em tua mão palpita e vive o drama,
e a estátua cobra vida, — enfloras os lauréis
que em toda a parte o povo esplêndido derrama
quando ergue-se no palco um gênio... como és!

 

A MARGEM

I
Era na margem do rio.
Por cima, das trepadeiras
abrem-se as flores primeiras;
embaixo o abismo sombrio,

todo enredado de espinhos,
onde o rio ergue no fundo
seu ronco, — o baixo profundo
na orquestra dos passarinhos,

que no alto abrem as penas
da aurora às luzes serenas,
borboletas junto à flor!

São trepadeiras — os sonhos,
o abismo — a vida, risonhos
cantão poetas o amor!

II
Depois transmuda-se o quadro.
As pétalas caem na voragem,
o ramo sem a folhagem
figura um despido altar.

Mas no fundo a mesma vaga
negra na rede de espinhos...
eis o túmulo; mas os ninhos?...
onde as aves vão cantar?

E pela margem apenas
abrem-se as flores pequenas
do musgo dos pedregais...

São flores mortas os sonhos,
o abismo — a vida; tristonhos
os poetas não cantão mais!

 

ROSA MÍSTICA
(A Emílio do Lago)

Rosa mística é um nome que resvala
perfumoso nos lábios da criança,
e que baixinho nos ouvidos soa
como um hino suave de esperança.

Rosa mística é um êxtase divino
que em nossas almas entreabre flores,
e nos conduz sobre douradas azas
para o país do encanto e dos amores.

Rosa mística é a lágrima da aurora,
nas folhas da açucena à madrugada;
passa a brisa do campo, a gota brinca
no alvo seio da flor imaculada.

Rosa mística é um canto misterioso
que n'alma imprime um não sei quê de santo;
nota chorosa que dos lábios foge
deixando os olhos sob um véu de pranto.

Rosa mística é a prece no perigo,
a oração de uma mãe junto do berço;
o marinheiro a lê no céu dos mares
quando o espaço na noite fica imerso.

Rosa mística é a gota perfumada
que a borboleta entre as florinhas pede;
astro nas sombras; no rochedo — fonte
onde o pássaro vai matar a sede.

Rosa mística é a página dourada
em que primeiro o coração soletra;
página santa que se imprime n'alma,
como ensinos de mãe, letra por letra.

Rosa mística é a voz que ainda fala
da vida aberta ao sol das inocências,
e no exílio nos faz abrir o livro
onde Deus escreveu — reminiscências!

 

VELHO TEMA

Tudo assim vai: a luz para o adito sombrio,
o verme para o fruto, a flor para o paul;
as azas sobre a chama; o ninho pelo rio;
o espírito na sombra, as nuvens pelo azul;

o fonte para a pedra, a lágrima nos cílios,
nos lábios o soluço, o coração na dor;
a nênia compassando o canto dos idílios,
neblina sobre luz, ciúme sobre amor;

a neve em campo azul, os lírios e a saudade,
o tédio, o sofrimento em plena mocidade,
dos espinhos no ramo, em bando, os colibris...

No entanto quando vem da morte a imagem nua,
ave tonta, nossa alma em lágrimas recua,
se debatendo ao pé do túmulo... feliz!

 

MISERERE
(Ao amigo, Padre F. de Paula Rodrigues)

Oh! lembrai-vos, Senhor, de minhas dores,
desses elos de ferro que me apertão:
dos olhos meus as lágrimas desertam
desta febre aos queimores.

Meu pensamento fixo numa ideia,
dolorosa, fatal, profunda, imensa,
vê minh'alma entornando, crença a crença,
seu tesouro na areia...

E da luta tremenda em que me estorço
tenho medo, Senhor, porque sucumbo.
Em minhas veias, derretido chumbo,
vai meu último esforço.

E sinto-me suspenso sobre um ermo...
olho em volta de mim... tudo calado!
apenas vêm as azas do passado
bater meu rosto enfermo...

Vêm as azas tão frias, ensopadas
da negra noite na fatal geleira,
apagar minha estrela derradeira,
minhas visões douradas.

E esqueceis, oh meus Deus! em minha vida
não há sonho, esperança que não tenha
sua gota de luz, e que não venha
de minha mãe querida!

Foi por ela, eu me lembro... um dia ergui-me,
depus dos ombros o mundano manto,
e me entreguei no sacrifício santo
a vosso amor sublime.

Foi por ela, Senhor... troquei as flores
da coroa da glória por espinhos:
e fui erguer da sombra dos caminhos
os lassos viajores...

Foi só por ela... abandonei contente
as emoções suaves da família:
da humanidade, vossa grande filha,
fiz-me apostolo ardente.

Oh! tudo foi por ela... Entanto agora
nesta alma vindes derramar a morte;
fraco tornastes quem se cria forte,
nos arrancos dessora.

Pois bem, Senhor, vossa vontade é santa,
sois o infinito, eu... peregrino e fraco;
mas se com lágrimas vos não aplaco
minha alma se aquebranta...

Vede... é tão doído não ter seio
onde a força para dor se recupera...
e num túmulo sentarmo-nos à espera
do derradeiro anseio...

Oh Cristo! não ter mãe é tão doído,
vem tão profundo o golpe que me destes,
que cuido inda ter mãe! e dos ciprestes
fujo ao triste gemido!...

Mas, ai! quando a ilusão cede o terreno,
e escuto ainda o verbo da desgraça,
sinto que o coração se despedaça,
que para dor é pequeno.

Do meio então da soledade estranha,
para o céu minhas súplicas se elevam:
— ao galho e ninho que as enchentes levam
o pássaro acompanha.

Entretanto de vossa lei divina
não mais se queixarão os lábios meus...
Mas antes de partires, peregrina,
alma! dize, chorando:
oh minha mãe... adeus!

 

PELO RIO

Sobre a vaga resvalando
corre brando,
corre brando,
meu barquinho sedutor:
tens a popa toda em flores,
dentro — amores,
dentro — amores
do ditoso remador.

Inda é cedo; as estrelinhas
vêm sozinhas,
vêm sozinhas
nos seguindo lá do céu.
Do barranco os vaga-lumes,
em cardumes,
em cardumes,
luzem no sombrio véu.

Deste rio na planura,
noite escura,
noite escura
não encontra o teu senhor;
daquela volta o arvoredo
mete medo,
mete medo
na dona do meu amor.

Eram duas criancinhas,
que sozinhas,
que sozinhas
inquietas foram brincar
no fundo de uma canoa,
que tão boa,
que tão boa
nenhuma houve no lugar.

Mas passou a correnteza,
não mais presa,
não mais presa
foi a canoa e fugiu...
E as criancinhas, sorrindo,
iam indo,
iam indo,
até que à volta do rio,

a canoa sem um remo
nesse extremo,
nesse extremo
a corredeira encontrou...
E a canoa foi virando,
se afundando,
se afundando
as criancinhas matou!

Por isso dizem que à noite
não se afoite,
não se afoite
mulher no rio a passar...
Passando ali, não há moça
que não ouça,
que não ouça
de criancinha o chorar.

Como frades se debruçam
e solução,
e solução
os cerrados taquarais;
e luzinhas do outro mundo
saem do fundo,
saem do fundo
dos vizinhos pantanais.

Deste rio na planura,
noite escura,
noite escura
não encontra o teu senhor:
daquela volta o arvoredo
mete medo,
mete medo
na dona do meu amor.

E quando sem ela eu passo,
frouxo o braço,
frouxo o braço,
o remo não gira mais;
e nós no rio passamos,
como os ramos,
como os ramos
que vós, enchentes, levais.

Corre... corre... ela me espera
na tapera,
na tapera
lá da beira do sertão.
Ouve inquieta o murmúrio
que do rio,
que do rio
as brisas levando vão.

Das florestas nas clareiras,
forasteiras,
forasteiras
as pombinhas vivem sós?
não têm elas em seus ninhos
seus carinhos,
seus carinhos?
pois, como elas somos nós...

Sobre as águas resvalando,
corre brando,
corre brando,
meu barquinho sedutor:
tens a popa toda em flores,
dentro — amores,
dentro — amores
do ditoso remador.

 

PIRACICABA

Sacode os ombros nus, oh noiva da colina,
que a luz da madrugada encheu o largo céu;
e arranca-te das mãos o manto da neblina
que ondula sobre o rio, enorme e solto véu...

Ergue-te, oh noiva! a aurora acorda e orvalha os ninhos,
beija o vasto horizonte e a pequenina flor;
levantam-se no espaço em bando os passarinhos,
descem de além frescura, luz e paz e amor.
 
Aberta pelo vento, a úmida palmeira
agita o verde leque em fundo todo azul;
como o cocar do índio, em pé na cordilheira,
se abria em pleno ar, à viração do sul...

Envoltas pela noite, as pérolas celestes
se deixarão levar a outras amplidões:
mas eis que surge além, entre douradas vestes,
o sol, bordando a ti de mágicos listrões.

Desperta, oh índia, ao sol! O rio o corpo estende
e anilado a teus pés vai múrmur se quebrar...
ai! vendo que a alvorada em sonhos te surpreende
nesta hora em que parece à terra o céu baixar.

O rio é teu amante. Irrompe entre colinas,
como o jaguar que avista a companheira e vai...
mas vendo-te, ao chegar, quão bela te reclinas,
estaca de repente, e a fúria o arroja, e cai!

E a fúria o arroja, e cai... Do precipício ao fundo
atira o corpo e cava as pedras a bramar:
e espedaçado sobe, e espedaçado afunda
no abismo que se alarga e tenta-o sufocar!

E o dorso bate a pedra, enraiva-se a torrente
que em cascatas do trono erguido resvalou...
E salta a espuma branca em chuva alvinitente
onde o íris do céu em curva se formou...

Pela boca do abismo as águas repelidas
enchem a vastidão de ronco atroador:
— e rolam pelo rio a plagas não sabidas
os murmúrios da onda, a voz do tombador!

Depois abre-se a cava enorme onde o combate
só no conhece o rio e o abismo que o atrai:
embaixo ferve a luta: a onda a cova bate...
por cima a calma fria: a onda sobe e vai...

a onda sobe e vai serena, extenuada,
depois de pelejar perder-se além, além;
e sente à tona d'água a quilha já cansada
trazendo o pescador que rio acima vem.

E tu, formosa índia, em pé sobre a colina,
sentes da onda azul o lânguido bater;
Enquanto sob o véu da trêmula neblina
ruge a cascata além, sem vir interromper...

sem vir interromper a paz, em que te embalas,
o amor, a luz, a graça — adornos que são teus.
Cercou-te o Criador de peregrinas galas...
deu-te uma terra em flor, cheios de luz os céus.

Deu-te o horizonte azul que tem a minha terra,
minha terra natal, meu ninho encantador.
Só a coroa não tens dessa saudosa serra
que cerca em meu país, a várzea toda em flor.

A tua noite envolve as mesmas estrelinhas,
a mesma poesia, a mesma luz divina;
como lá, eu bem sei, o bando de andorinhas,
aqui recorta o céu, na hora vespertina!

Deixa-me, pois, que eu sonhe, ao ver-te reclinada
banhando os alvos pés, do rio na onda azul,
que eu sonhe a minha terra, a pérola dourada
suspensa longe... longe... entre as névoas do sul!

 

DESTINO

Ai! borboletas
de negra cor,
que andais buscando
da noite a flor,

que dos lampirios
seguis após,
porque centelhas
não tendes vós,

Deus — nossos fados
prendeu num só:
lutar nas sombras e cair no pó!

 

O DERRADEIRO ADEUS
(Ao amigo, Dr. Aureliano Coutinho)

Mais feliz do que nós...
Não sentirás neste areal deserto
— Na morte d'alma a vida;
No vivo coração tua própria tumba!

JOSÉ BONIFÁCIO

Na sala mortuária, em meio de soluços,
pálida, fria, morta, em fúnebre caixão,
ela estava estendida. Aos olhos semiabertos
lançava branca luz das velas o clarão.

E o Cristo ali curvava o lívido semblante,
como um pai contemplando a filha agonizante.

Ninguém chegava ali, qual fria testemunha
de quanto o desespero tem de esmagador...
Ao pé daquela morta erguia-se a saudade
e se achava pequena em frente de uma dor!...

tanto soube cavar da morte a mão escura
num tálamo de amor. — profunda sepultura...

Mas quem sucumbe assim? quem desce para os mortos
pisando sobre o chão que umedecido está
desse orvalho da dor, que lágrima se chama,
do espontâneo chorar que o sentimento dá?

Quem volve ao céu banhada em luzes de uma estrela
e deixa o pobre lar em lágrimas por ela?

Oh! não, não pergunteis... É o anjo da família
que as azas recolheu e vai-se debruçar
aonde não mais desce o hálito da vida,
aonde a eternidade estende o longo mar...

e deixa após de si a noite no seu pouso
por mãe dos filhos seus, por anjo de um esposo!

É a ave que do ninho erguido entre perfumes
caiu ferida ao chão... depois não mais se ergueu;
e veio o pobre esposo achar o ninho — frio,
e os filhinhos chorando ao pé do leito seu...

Desfolharam-se a um tempo as coroas da ventura,
quando ela, esposa e mãe, descia à sepultura...

Não mais daquele seio estanque pela morte
Deus há de abrir o foco esplêndido do amor:
duas vezes na vida aos lábios não se leva
deste néctar divino o cálix sedutor.

Se flores der o vale — o frio há de tolhê-las,
ha de a nuvem passar — se surgem as estrelas!

No entanto é vinda a hora! a eterna despedida!
o beijo derradeiro, o derradeiro adeus!
e à porta um vulto negro, e trêmulo, chorando,
repentino assomou por entre os filhos seus.

Silêncio... era ele, o esposo estremecido e terno,
que ia à morta dizer o seu adeus eterno!

Quando ele apareceu, e foi a passos lentos
caminhando, e do esquife ao pé mudo parou,
ergueu convulso a ponta ao mortuário crepe,
e, sublime na dor, o beijo desatou...

E o derradeiro olhar caiu tão doloroso!
último voo d'alma, e d'alma de um esposo!...

Depois, quando ele ergueu a pequenina filha
que também vinha ali da mãe se despedir,
e pelo seu semblante a dor caiu em lágrimas,
que então foi mais tremenda a hora do partir:

houve um momento ali de comoção tão forte,
que, se não fora tarde, abalaria a morte!...

Depois tudo findou-se. A virgem da saudade,
de goivos coroada, às súplicas conduz
ao Cristo que, suspenso ao muro solitário,
parecia dizer: — já não estou só na cruz!

 

DESILUSÃO

Bem sei que à sepultura do proscrito
ave alguma do céu, em voo errante,
passando saudará;
que apenas do cipreste gotejante
sobre a lapida fria de granito
um pranto rolará.

Bem sei que pelos paços da memória
ninguém repetirá de minha história
a página ao porvir;
que mortas caíram no esquecimento
as flores que meu pálido talento
pode distribuir.

Oh! nem eu quero, não, em fastos d'ouro
ter meu nome cingido por um louro
de glória, e glória van:
eu, que rosas colhi pisando espinhos,
posso ainda seguir nestes caminhos,
hebreu sem Canaã.

De meu berço na cúpula sombria
apenas uma cruz eu distinguia
pendida sobre mim.
Carreguei-a, sozinho, amargurado;
e a minha companheira no passado
segue-me ainda... oh! sim!...

Que importa que somente a luz da lua
bata sombria pela pedra nua
que sobre mim vier?
que uma aragem carregue em noite escura
flores, que junto à minha sepultura
o amigo depuser?

Eu sei que tudo é vão... bem pouco vales,
oh flor da glória, que entreabriste o cálix
ao meu doido aspirar...
Como flor, sopra o vento e te desfolha!
e pelo chão, depois, folha por folha,
alguém te vai pisar...

Oh! nem eu quero, não, sobre o futuro
transformar o meu nome, — um ponto escuro,
na estrela da manhã...
Eu me envolvo no manto do passado,
vendo o deserto imenso, ilimitado,
hebreu sem Canaã!


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SEGUNDO LIVRO
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A MARIA LEOPOLDINA

Ergue este ramo solto em teu caminho,
Sei que em teu seio asilo encontrará;
Só tu conheces o secreto espinho
Que dentro d'alma me pungindo está!

F. VARELA

... sauvez de l'oubli quelques uns de mes vers.

MILLEVOYE

Sobre as azas da esperança
meus versos tímidos vão
buscando um berço, criança,
em teu virgem coração.

Úmidos vão de pranto,
ou dourados pela luz...
a luz é tua, portanto,
a lágrima é desta cruz.

E eu sei que não mos repeles...
pois nasceram todos eles
à sombra do teu amor:

são penas para um só ninho,
vozes de um mesmo carinho,
abelhas da mesma flor!

 

ALVORECER

Rolai pelas brancas plagas,
vagas
por onde a lua
nua
arrasta um véu de palor;
rolai! eu desprendo as velas...
Derramai luzes, estrelas!
surgi, puríssimas pérolas,
das ondas, cérulas
à flor!

Quando a amorosa esperança
cansa
de orvalhar o coração,
devemos erguer um canto,
pranto
às eras que lá se vão...

Oh! deixem, pois, que eu descante,
cante
a aurora de um sonho meu.
Antes que a morte o apague,
vague
meu pensamento no céu...

Rompe a luz, tudo se agita.
Vem! que a semente bendita
do amor
quer teus seios — por terreno,
os teus prantos — por sereno,
quer os teus lábios  por flor!

Além nas praias remotas,
notas
a tua estrela polar?
pois bem: fujamos das plagas,
vagas,
trazei-me os cantos do mar...

 

A MULHER

Há pelos mundos um pendor divino
da luz para o céu, da viração para a flor,
do fio d'água para as campinas verdes,
de nossas almas... respondei, amor!
Do berço à cova, do sorriso à lágrima
ha sempre um sonho que nos chama e quer.
E nós caímos descuidados, presos
nos róseos dedos de gentil mulher.

Podem as auras não abrir os lírios,
o rio, o mar não refletir o céu:
mas dentro em nós, ai! não há flores mortas,
se amor as cobre com dourado véu...
Visão perpétua, borboleta branca,
o amor tem azas mas se foi prender...
no sol? na treva? na amplidão? no abismo?...
nos róseos dedos de gentil mulher.

Por isso quando nós, crianças doidas
interrogamos do porvir o mar,
colhendo louros — onde as urzes nascem,
pedindo aromas — ao deserto altar;
não são bem d'alma as ilusões criadas
tem pouca vida o que se fez nascer,
se não prendemos, como estrela, o sonho
nos róseos dedos de gentil mulher.

E se a esperança não mentir, se alegres
vermos o fruto do trabalho após;
se pressentimos o futuro cheio
dessa ventura que palpita em nós;
essas primícias — que nos deu a glória,
as flóreas palmas — que o porvir nos der,
engrinaldadas, oh! serão por eles...
os róseos dedos de gentil mulher.

E como a vida é esse misto enorme
de pranto e riso, de veneno e flor,
quando a lufada nos lançar à noite,
mártir às feras, peregrino à dor;
então assoma junto a nós, sublime,
um vulto, a esposa que nos vê sofrer...
E Deus suspende uma esperança ainda
nos róseos dedos de gentil mulher!

 

ENTRE SONHOS

Adormecias, Mimosa,
e na orla cor de rosa
de tua boca divina
o riso formava ainda
uma curva pequenina...

Oh! talvez que um sonho d'ouro
que vinha, pleno tesouro
de aromas do paraíso,
ficasse preso em teus lábios,
— flor de um sonho e de um sorriso!

Jamais com tal abandono
a mão do flácido sono
fecha os olhos à criança,
como cerrava os teus olhos
e te desprendia a trança...

Sob a gaze de escumilha
tremiam-te os seios, filha,
qual ninho de beija-flores,
sob o véu dos nevoeiros,
cheio de puros olores.

Ele ajoelhou-se.
Tremente
passou seu lábio tão rente
de tua boca em um beijo
que estremeceste, Mimosa,
toda banhada de pejo...

E quando ele o noivo, trêmulo,
disse baixinho: sou eu...
ela, as pálpebras, cerrando,
murmurou-lhe suspirando:
— eu te amo!...
E adormeceu.

 

A FLOR

Rompendo as alvas neblinas,
como uma noiva — seu véu,
desperta a flor das campinas
banhada em prantos do céu..

Abre as folhas, uma a uma,
dourado o seio mostrou,
qual linda bolha de espuma
que um raio do sol corou.

Mas veio na asa do vento
um inseto friorento,
pediu-lhe o seio e desceu...

Da noite à primeira estrela,
a flor do campo singela,
a flor murchou e morreu.

 

O ABANDONO

Era a sua casinha aquela que aparece
em meio do arvoredo, à beira do caminho...
Agora sobre o muro as trepadeiras morrem,
e não se enfeita mais a cruz do terreirinho.

Depois que ela partiu, as pombas não vieram
em bandos agitar as árvores defronte;
e as estrelas de além sumiam-se mais cedo
atrás daquela serra erguida no horizonte.

Depois que ela partiu, não mais o viajante
achava longa a estrada, ao sol do meio-dia,
para ali se apear, ao vê-la tão bonita,
caído o seu cabelo em onda luzidia...

E à noite quando a lua assoma na montanha,
as aragens do vale não ouvem mais cantigas:
nem mais da vizinhança acodem os violeiros
para fazer dançar as lindas raparigas.

Depois que ela casou... das bandas lá do rio
não mais veio alegrar o primitivo ninho...
Era a sua casinha aquela que aparece
em meio do arvoredo, à beira do caminho.

 

TE ESQUECESTE!

Uma noite junto ao lago,
onde as estrelas brilhavam,
nossas mãos, uma na outra,
não sei porque palpitavam,

naquela noite de estio
em que as ondas murmuravam.

Quando dizia: eu te amo!
tu suspiravas baixinho
e estremeciam teus seios,
medrosas pombas no ninho...

e como em sonhos de virgem
tu suspiravas baixinho.

Da fímbria dos horizontes
os anjos nos espreitavam
doidos por verem teus olhos
que de pejo se baixavam...

naquela noite de estio
em que as ondas murmuravam.

E depois quando partimos,
as virações da campina
nos seguiam pela estrada
ouvindo-te a voz divina...

e teu nome repetiam
as virações da campina.

Chegados à encruzilhada
nós balbuciamos um beijo,
tão depressa me fugias,
enrubescida de pejo...

Sob o véu dos teus cabelos
nós balbuciamos um beijo!

No entanto, se aquela noite
pudesse embora falar...
do lago, do céu, do beijo,
daquele mago sonhar.

eu sei que não te lembraras...
Ai! não sabias amar!

 

ENTRE SOMBRAS

Oh! se eu pudesse engrinaldar de flores
o vulto negro desta nossa cruz,
e nos caminhos, onde crescem dores,
em vez de prantos derramar a luz;

oh! se eu pudesse, por um só momento,
sentir o sonho do futuro em mim,
— o sonho... gota no areal sedento,
folha perdida pelo mar sem fim:

eu não achara tantas vezes — pranto
desses teus olhos no formoso céu,
e sobre lábios que me falam tanto!
eu não achara da tristeza o véu...

Não encontrei da promissão os vales,
e como as plantas que de frio morrem,
vejo meu sonho entrefechando o cálix
longe do clima onde os orvalhos correm.

E sobre mim, ai! tu debalde estendes
as duas azas do teu grande amor:
é tarde! o mal que me corrói e ofende
se esconde n'alma, como verme em flor.

Sim, minha amiga! as estrelinhas foram,
aves errantes, se expandir além:
fiquei com os prantos que teus olhos chorão,
fiquei com as sombras que minh'alma tem!

 

SERENATA

É noite. A lua suspensa
dentre cortinas azuis
sonha rodeada de estrelas,
soltas grinaldas de luz...

Pois bem: eu troco esta noite
que te encanta, minha flor,
pela noite de teus olhos
cheia de estrelas de amor!

 

A FRALDA DA CAMISA

Eu vi-a numa tarde. Ergui-a ao colo...
beijo-lhe a boca, e a tímida Florisa
de envergonhada esconde o rosto inteiro
na pontinha da fralda da camisa.

Fi-la dançar depois: graciosa e bela
algumas voltas deu na valsa lisa:
mas com as duas mãos de leve erguia
a pontinha da fralda da camisa.

Encontrei-a uma noite: ela chorava;
afaguei-a de pronto, e indecisa
a derradeira lágrima perdeu-se
na pontinha da fralda da camisa.

Fui vê-la noutro dia. Entre roseiras
ora a cantar fugia, doida brisa,
ora apanhava flores no regaço
que fizera na fralda da camisa.

Mas, o botão abriu-se em linda rosa...
o pé sob o vestido agora pisa...
E eu, ai! não vi mais, nem por descuido,
a pontinha da fralda da camisa!

 

SAUDOSA

Era uma flor de espuma
que o vento abre na vaga,
o véu de uma alva bruma
que o menor sopro estraga;

luzinha que reçuma
do céu e já se apaga,
miragem que se esfuma
do mar na linha vaga;

era taça, partiu-se;
vela branca, sumiu-se
nos véus da imensidade,

aquela nossa esperança...
Se o não era, criança,
por que veio a saudade?

 

OS ANJOS

À noite, quando as neblinas
boiando à luz do luar
silentes passam nas plagas,
a flor das murmures vagas
forma-se um anjo no mar.

Quando a aurora sopra as nuvens,
as nuvens de rubra cor,
resvala do orvalho a gota,
e em cada arbusto que brota
forma-se um anjo na flor.

À tarde, as névoas descambam
pela montanha a rolar:
o vento sacode as azas,
e em cada floco de gazas
forma-se um anjo no ar.

Da mulher nos lábios puros,
quando reza o coração,
como da rosa — o perfume,
como a luz — dentre o negrume,
nasce o anjo da oração.

E quando às vezes contemplo
teu semblante sedutor,
formosa, ao sol dos meus sonhos,
nesses teus olhos risonhos
forma-se o anjo do amor!

 

AMOR E MEDO
(Sobre uma página de Casimiro de Abreu)

Ao pé de ti, quando eu contemplo trêmulo
o teu semblante de morena cor,
e os lábios teus onde a inocência falia
e o riso brinca endoidecendo o amor;
não sei que raio de loucura passa
por minha fronte enfebrecida então...
e eu tenho medo de perder tu'alma,
vendo entre as minhas palpitar-te a mão!

Oh minha amante! muita flor do campo
quando a queimada abrasadora voa
não vê o incêndio calcinar-lhe as folhas
e o seu perfume a se esvair à toa...
Mas tu bem sabes pelo céu da vida
abrem-se estrelas de mortal clarão...
e eu tenho medo de sentir teu hálito
vendo entre as minhas palpitar-te a mão!

Tu não tens medo de fitar o abismo
onde a cascata se quebrando alveja?
abrir o seio às virações do inverno
quando o luar os teus cabelos beija?
O amor também o seu abismo esconde,
ergue as estrelas e resfria o chão...
por isso eu temo envenenar teus sonhos,
vendo entre as minhas palpitar-te a mão...

Quando o futuro iluminar a vida,
nós dormiremos sob o mesmo céu;
e eu te prometo de minh'alma os louros
para as coroas do noivado teu...
E as andorinhas perpassando tímidas
ao pé de nós a suspirar virão
por entenderem meus colóquios doces,
vendo entre as minhas palpitar-te a mão!

Do prado as auras, da floresta os pássaros,
que outrora ouvirão de meu canto a voz,
e as borboletas do país dos lírios
irão às flores perguntar por nós...
E quando à tarde nas roseiras lânguidas
vier o vento murmurar em vão,
as estrelinhas se erguerão mais cedo,
vendo entre as minhas palpitar-te a mão!

Depois, à noite, no silêncio augusto
que se derrama no abençoado lar,
quando vieres, com os cabelos soltos,
trêmula a voz, a languidez no olhar,
então mil vezes beijarei teus lábios,
louco, encendido, na febril paixão...
e os anjos todos descerão à terra,
vendo entre as minhas palpitar-te a mão!

 

A BORBOLETA

I
Abriu-se o lírio. Virgíneo
de orvalho o cálix se encheu,
e no tapete gramíneo
corre a brisa e a flor pendeu.

E o rocio caiu em pérolas,
a luz se expandiu no céu...
Do lírio nas folhas cérulas
de uma asa se estende o véu..

Não tremas, flor, que não pousa
a triste da mariposa
no teu seio aveludado...

É tua amante dileta,
a dourada borboleta,
a peregrina do prado.

II
Veio a tarde. Ao sol poente
canta o sabiá dolente
nas laranjeiras do rio;

e rente ao chão da campina
da flor a caule se inclina,
como um túmulo vazio.
 
A amante junto agoniza...
as azas levou-lhe a brisa,
levou-lhe a brisa — o amor;

mas o destino que fere-a
fez-lhe uma cupla funerea
do cálix da mesma flor!

 

O BERÇO

Alvo ninho pequenino
entre corimbo de flores,
cheio de inquietos rumores,
cheio de aroma divino,

move-se o berço à toada
de cantilenas suaves,
como a cantiga das aves
no seio da madrugada.

No véu que ali se balança
a brisa doce resvala:
e para não acordá-la
nem sequer beija a criança.

De suas azas sacode
todo o perfume que trouxe
se a criancinha agitou-se,
e a mãe tremendo o acode.

E sobre ela se estendem
entre cortinas mimosas,
como azas brancas, sedosas,
dois braços que se suspendem.

Ouvindo o canto que soa
de quando em quando a criança,
ergue as mãos a ver se alcança
um anjo que longe voa...

e o mais alegre sorriso
lhe franze a boca vermelha:
e o materno olhar espelha
uma luz do paraíso.

Um misto de amor profundo
e de vaidade divina
desliza e brando ilumina
o seu semblante jucundo.

Oh! nesse momento imerso
nas delícias do carinho,
o pássaro junto ao ninho,
a mãe ao pé de seu berço,

derramam toda a ternura
que no amor se continha...
E Deus dali se avizinha,
tanto sobe a criatura!

Bendito o lar onde eu ouço
nas horas mortas do sono,
como em lânguido abandono,
um expressivo balouço.

Naquele santo momento
a noite voa baixinho,
como na beira do ninho
desliza trêmulo o vento...

Entrai! na alcova se agita
mole perfume; no meio,
como uma pomba no seio
de sua amiga dormita,

sonha o filhinho à toada
de cantilenas suaves,
como a cantiga das aves
na hora da madrugada!

 

PARTINDO...

É tempo de quebrar esse tesouro
donde tanta ilusão se desprendia!
Foi bem longo o dormir; mas vem o dia
entornando no mar o cálix d'ouro.
Se outrora a sedução roçou-me as faces,

como um raio que passa pelo escuro;
se eu embalde criei o meu futuro,
minhas glórias de amor, sombras fugazes;
tudo, mulher, fugiu da mocidade

cujo sonho a desgraça despediu...
e às vagas entreguei meu lenho esguio
erguendo a ti um brado de saudade.
E dura a provação; mas a mortalha

que envolve o coração é Deus quem corta:
também do ramo cai a folha morta,
e a pérola dos mares se esmigalha.

 

JUNTO AO PIANO

I
Era de noite. Ao piano
ela sentou-se e cantava.
Nem uma estrela a escutava
que negro era o céu então...

Apenas longe, entreabrindo
as pétalas do devaneio
estremecia de anseio
uma flor, — o coração!
 
Ai! que era um canto suave,
como não canta uma ave
da primavera ao fulgor...

Dize-me agora, baixinho:
nunca sentiste o carinho
da leve asa do amor?

II
Aquele canto tristonho
só nos lábios da saudade
geme assim. A mocidade
desfere um hino risonho.

A voz onde estala o trino
da alegria e da esperança,
ai! não, ai! não alcança
aquele tema divino.

É preciso ter sofrido,
ter chorado, ter gemido
nos estos de alguma dor...

Dize-me agora baixinho:
nunca sentiste o espinho
que tem da saudade a flor?

III
Quem sabe se no declive,
em que tu desces agora,
alguma fonte sonora
da ilusão inda derive?

se em tua alma angustiada
um raio da primavera
entreabrir inda pudera
do porvir a luz amada?...

E se assim fora, chorosa
com a saudade não gemeras
aqueles doídos ais!

Depois, coroada de rosas,
aquela noite esqueceras...
ai! não cantarias mais!

 


NOTURNO

Se no ninho cor de rosa
a mimosa
avezinha vai pousar,
— abre-me as duas mãozinhas
deixa-me a fronte inclinar...

Assim, nesta hora silente,
em que rente
do azul o sonho nos vai,
quando a mulher para a estrela
volve os olhos e a luz cai;

quando a névoa estende a gaza,
como uma aza
aberta pela amplidão:
deixa-me junto a teus seios,
junto do teu coração...

Sonhemos... a noite é calma;
a minh'alma
geme de amores por ti.
As vagas sonham nos mares,
vamos nós sonhar aqui.

Canta as cantigas de outrora,
nesta hora
de amor e santo luar:
troco a harmonia da noite
pelo teu mago cantar.

Não ouves? a mim parece
que além desce
um murmúrio divinal
das estrelas para as ondas,
do céu azul sobre o vale.

Na vaga das harmonias,
fugidias
brincão ondinas de amor,
como os insetos da tarde
das enchentes ao rumor!

Por beijar a tua boca,
ave louca
voa minh'alma, não vê?
enquanto marcas compasso
com a pontinha do pé.

 

NUNCA MAIS!

Ela cantava:
”Saudade!
 ergue-te e voa após ele:
 o brando sopro que impele
 as folhas na imensidade

 há de levar-te. E, chorando,
 como em murmúrio amoroso,
 dirás a meu nobre esposo
 que longe vai: até quando...

 até quando aos meus suspiros
responderá dos retiros
somente o eco fugaz?...

 Quando o verei?...”
Entre as flores
como que uns vagos rumores
murmuram: — nunca mais! —

 

AVE MARIA!
(A Susana)

Eu sei, filha! és pequenina,
tua boca balbucia...
mas nesta hora divina
tem a flor, o rio, o vento,
a nuvem do firmamento
— as azas de uma harmonia!
Junta assim tuas mãozinhas...
o sino das igrejinhas
dobra longe
Ave Maria!

Vem rezar. Deixa que o riso
se esfolhe aos pés do Senhor:
sorrindo, pede a criança,
sorrindo, abre-se a flor...

Se a lágrima é como a baga
da semente que germina,
e cai a névoa divina
no coração que a verteu:
o rir da criança é âmbula
que uns alvos sonhos encerra:
atrai as brisas da terra,
atrai os anjos do céu...
nesta hora de harmonia,
quando pousam andorinhas
na torre das igrejinhas
ao dobre de
Ave Maria...

Vem rezar. Além, formosa,
te escuta a Virgem sorrindo;
e o seu anjinho mais lindo
beija-te as faces de rosa.

Agora as nuvens que passam
veem, como um íris distante,
tua oração balbuciante
prendendo meu lar ao céu.
Mais tarde quando sonhares
entre as gazes da cortina
verás uma asa divina
aberta no ninho teu...

Oh! como és bela rezando!
encruzadas as mãozinhas,
loura a cabeça inclinando;
Enquanto ao mar ecoando
o sino das igrejinhas
dobra ao longe
Ave Maria!

Vem junto a mim. Duas ancoras
à minh'lma Deus prendeu:
— tua mãe, aqui na terra,
e Maria, além no céu...

Encruza, pois, as mãozinhas;
que compassam-te a harmonia
as auras do fim do dia
que levam das igrejinhas
o dobre da
Ave Maria!

E quando cresceres, filha,
nesta hora melodiosa,
que a prece orvalhe a rosa
que em tua alma rebentar...
Deve ter o céu — estrelas,
deve ter o mar — ondinas,
mas n'alma as vagas divinas
da oração devem cantar...
quando ao vale as andorinhas
abater a noite fria,
e o sino das igrejinhas
dobrar longe
Ave Maria!

 

A FITA RUBRA

... arranca meus louros da fronte
e dá-me por c'roa... teu laço de fita!

CASTRO ALVES

A vez primeira em que te vi sorrindo,
olhos erguidos num cismar do céu,
prendi as azas de meu sonho — a glória
na fita rubra do cabelo teu.

Flores que a aurora fez brotar de um ramo,
grupo de anjinhos que ao altar se ergueu,
as esperanças se entrelaçam todas
na fita rubra do cabelo teu.

Não vês nas folhas da vermelha rosa
brilhando as pétalas que a neblina deu?
assim meus sonhos se balançam, brincão
na fita rubra do cabelo teu...

Na trepadeira o colibri formoso
seu alvo ninho junto à flor teceu...
eu tenho um ninho de ilusões, que prendo
na fita rubra do cabelo teu!

Ai! quanto seio a palpitar no mundo!
quanta estrelinha sobre o mar nasceu!
minh'alma vive de teus olhos belos,
na fita rubra do cabelo teu.

Eu, que não era mais que o pobre inseto
que foge à luz, que a viração temeu,
eu sinto agora a elevação do voo
na fita rubra do cabelo teu!

E quando um dia eu te disser: és minha!
ás nossas crenças cobre o mesmo véu...
ao pé dos anjos que sorrindo beijão
a fita rubra do cabelo teu,

tu acharás no meu tesouro d'alma
sonhos e glória, e no porvir no céu
verás teu nome, como estrelas, preso
na fita rubra do cabelo teu.

 

SENSITIVA

I
Não soltes dos cabelos
o véu sedoso, escuro
que rola ao seio puro
em flácidos novelos.

A sombra cobre os ninhos,
a onda é sob a espuma:
o beijo não perfuma
nem um dos meus carinhos!

Se fujo... eu sei que choras!
se volto... encantadoras
as luzes da esperança

desmaiam em segredo...
e sentes tanto medo,
oh pálida criança!

II
No entanto puro e calmo
o meu amor se agita,
e se terno palpita
mais terno há de ficar,

ai! quando tu prenderes
a tua mão cativa
na minha, e compassiva
tua alma se inclinar
 
à minha obscuridade
tão cheia de saudade,
tão erma de esperança.

Então no meu degredo...
mas, ai! tens tanto medo,
oh pálida criança!...

 

DOENTINHA!

Dormia. Abandonada
caía-lhe a mão mimosa,
qual a murcha tuberosa
à beira d'água inclinada.

Pela boca peregrina
nem um riso estremecia;
o olhar se amortecia
na embaciada retina.

O seu ofegante peito
como a custo respirava:
o pesadelo estirava
as azas sobre seu leito...

Ai, de mim! pálido, aflito,
na dor imensa abatido
chorava a cada gemido...
ia-me n'alma o seu grito...

E via ao pé da cortina
de seu berço, outrora em flores,
sua mãe, cheia de dores,
no desespero... divina!

Ergui-me. A noite era bela:
murmúrios da aura na terra,
névoas na crista da serra,
luzes no seio da estrela.

Dobrei os joelhos... chorava
em face do azul risonho:
era um rochedo tristonho
que, um mar de luz destacava...

E agora, meu louro anjinho,
que este lar quase perdeu,
não troques mais teu bercinho
por duas azas no céu!

 



NA REZA

Quando esses olhos tão belos
levantas ao firmamento
e desenrola-se ao vento
a onda dos teus cabelos;

e tua boca palpita
numa súplica divina,
como a rosa matutina
abrindo a caule se agita;

oh minha amada, nem pensas
nas alegrias imensas
que inundam meu coração,

se tu murmuras baixinho,
na ternura de um carinho,
meu nome em tua oração!

 

ELISA
(Fragmento -  L. Veuilot)

Agora, devagar. É tua vez, Elisa.
Vem só. É malicioso e meigo esse teu ar.
Uma ave ia fugir, mas para escutar-te volta...
ai! pobre menestrel, não vás te apaixonar!

Esfrolada de manso, a relva se levanta
para melhor sentir o voo de teus pés...
E em tua alma, poeta, a musa agita um sonho
que não se esquece, não, mas tem-se uma só vez!

Assim dançam no mar os fogos encantados,
assim a nuvem branca embala-se no céu;
assim a primavera em sopro lento e brando
nos arbustos em flor derrama o seu troféu.

E a nuvem se desfaz no azul do firmamento,
os perfumes, a luz se perdem a voar...
e tu, moça inocente, ai! possas como eles
após tua manhã na terra não tocar!

oh minha amada, nem pensas
nas alegrias imensas
que inundam meu coração,

se tu murmuras baixinho,
na ternura de um carinho,
meu nome em tua oração! 

Tu és no céu da tarde a nuvem cor de rosa
que leva as orações que a virgem desprendeu
e vai depor além a oferenda misteriosa...
o crepúsculo sou eu.

Tu és o beija-flor de penas iriadas
cruzando da campina o perfumoso véu;
seguem-no a luz, o aroma, as auras encantadas...
a ave triste sou eu.

Tu és de uma visão a imagem atraente
que em afagos envolve o ser que a mereceu,
e nos vai colocar, do paraíso rente...
pesadelo sou eu.

Tu és a flora azul do amor e da esperança,
que o frio não tocou, que o vento não bateu.
Eterna é a primavera ao pé de ti, criança...
a lágrima sou eu.

Pois bem; há um proscrito e pede-te um abrigo:
tem frio, quer o sol; no abismo, implora o céu...
Abre-lhe da esperança o lar, divino, amigo...
O prescrito sou eu!


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo 2023.

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