7/07/2023

Ao por do sol (Conto), de Inês Sabino


AO POR DO SOL
(A ADELAIDE PINHO)

Sob a cúpula tristonha dos ciprestes do cemitério num dia de finados, com o espírito recolhido ante a efígie da morte, ouvindo o murmúrio da natureza e o ruído surdo da multidão que em grupo dirigia-se às catacumbas, aos mausoléus e às covas rasas, sentindo a aragem fresca impregnada do perfume dos jardins daquela triste morada, eu, tristemente caminhava ao acaso, sem rumo, curiosa, ávida de emoções. Umas badaladas que feriram-me o ouvido trazidas pelas ondas sonoras do ar, fizeram-me virar a cabeça ao ver passar por mim um carro de quarta ordem, pobre, que dirigia-se a um montículo de terra que se avistava a alguns passos mais longe. ,

Ouvi uma voz dizer:

— Vai para a valia.

— O carro seguiu o seu trajeto por entre os túmulos, acompanhado por uma centena de curiosos que, apressados, dirigiam-se ao lugar determinado.

Eu segui os demais e pude, entre a multidão, tomar o meu lugar de espectadora junto a uma cova rasa e funda a cuja borda quatro homens de camisa e pés no chão, ajustaram ao ataúde uns ganchos presos em grossas correntes, medindo com a vista o lugar certo onde ficaria o mesmo, que sem esforço suspenderam deixando-o resvalar docemente, com método e arte, até o lugar de onde não sairia jamais.

Depois, foram espalhadas sobre a tampa algumas colheres de cal, começando em seguida a lançarem pás de terra por cima do mesmo, que com um tom seco, rijo, lúgubre, caíam compassadas, produzindo um eco que tristemente impressionavam a alma e a imaginação.

Logo que aquele buraco que se abrira nivelou-se ao resto do terreno, os coveiros fincaram um pequeno poste com o número da sepultura, colocaram nela duas grinaldas roxas, puseram as enxadas ao ombro, e retiraram-se como haviam vindo, sem comoção, frios, insensíveis, como se voltassem de um trabalho natural, onde sem repugnância ganhassem o pão de cada dia.

De repente, os curiosos retiraram-se, e vi-me sozinha à beira daquele tumulo raso e humilde, sem uma lápide, sem uma oração, sem outra lembrança além daquelas duas coroas singelas e quase pobres, piedosa dádiva de alguém que traduzisse por esse modo o sentimento que lhe ia n’alma.

Finalmente, pois, aquele cadáver dormia o sono eterno, livre já das falsidades da vida, e ali, frio, rígido, imóvel, pura matéria, produzirá mais tarde com o calor do seu vírus a seiva que alimentará a trepadeira singela que orne agradecida o número e a cruz olvidada pelo natural desleixo humano!....

***

Afastei-me lentamente, caminhando sem rumo por entre as mortuárias guaridas, ora analisando uma escultura, ora um mausoléu rico onde a arte tratou de impregnar os seus mais belos moldes do estilo, acolá, apreciando uma lapide coberta por um caramanchão de verduras onde as rosas imperam como soberanas, aqui, afastando uma trepadeira para ler uma inscrição. Via ainda a turba indiferente, girar, confundir-se em diversas direções, sem considerar o valor das riquezas atiradas à mercê das intempéries, nem poder avaliar o pouco que somos sobre a terra, quando uma cova humilde prendeu-me novamente a atenção. Aí, um punhado de flores enfeitavam a terra úmida, onde duas crianças de joelhos pareciam alheias ao movimento que as rodeava. O mais velhinho, de branco, com o cabelo empastado sobre a testa, aproximava de quando em vez as mãos de uma das quatro velinhas que, acesas, alumiavam a jazida, fazendo com que o vento não as açoitasse para não as consumir depressa.

A pequenina, de preto, numa posição de abandono, com as mãos caídas negligentemente sobre o regaço, olhava chorando para aquele lugar fúnebre que guardava sem dúvida os despojos de um ente querido.

Quem dorme aqui? perguntei eu.

— Nossa mãe.

— E quem têm vocês por si agora?

— Deus.

— E por que você, meu menino, está pondo assim as mãos na vela?

— Para se não gastar ligeiro, porque não temos outras.

— Quem lhes deu estas?

— Esmolas; mas como eram duas grandes, cortamos para fazer quatro.

— Não têm lanternas?

— Não! fizemos uma de papel que queimou-se.

— E por que não está também de luto?

— Porque não tive roupa.

Insensivelmente comocionei-me.

As lágrimas corriam-me espontâneas ante tanta miséria e resignação.

Olhei para minha filha.

Os negros olhos da criança estavam cheios de pranto. Sutilmente tirou da bolsinha o seu pequeno óbolo que deitou-o a sorrir sobre o regaço da orfanzinha, a quem beijou dando-me novamente a mão.

***

As sombras da noite envolviam com seu manto negro a verdura dos morros; uma brisa fria sacudiu-me um látego sobre a face.

Já encaminhando-me para a saída, olhei ainda em direção ao quadro que me ficara gravado n’alma, derramei um último olhar sobre o vasto campo mortuário, e saí.

Dizem que a trombeta final dará o toque de despertar lá no vale de Josafá quando tornar-se comum aos homens a ressurreição da carne no dia do Juízo Final; se é verdade ou não, apenas sei que esse assunto serviu para emocionar-me nos primeiros tempos da infância, crendo, porém, agora que sem dúvida um desses planetas que brilham no espaço virá tomar parte ativa na revolução do globo, seguindo a evolução da terra que, por fim, sob a pressão ígnea do Cosmos, voltará a ser um vácuo, e... nada!


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023. 

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