7/06/2023

O colar de brilhantes (Conto), de Inês Sabino


O COLAR DE BRILHANTES
(AO SR. ARTUR AZEVEDO)

Essa noite havia um baile no palacete do Comendador Almeida Nogueira, sito na Ponte de Uchoa, dentro de um jardim vasto, aparecendo ao fundo o parque iluminado, bem como o jardim, com balõezinhos de cores; que reunidos à iluminação interior e exterior do prédio, davam ao mesmo um aspecto feérico.

Fora das grades, no posto de bilhetes de sereno, de pé, viam-se homens, senhoras e gente do povo forçando a cabeça a ter-se firme, assim como os olhos, fitando os vultos que destacavam-se no salão, ajudados pela claridade de um soberbo luar de Agosto, fazendo sobre a festa mil comentários, e aplaudindo um ou outro trecho de música que a orquestra tocava em intervalos.

Lá dentro, sob o dossel de um teto pintado a fresco, pendia um enorme candelabro dourado cujas luzes fulgiam nas paredes forradas de cetim e ramos de ouro e nos espelhos dourados a fogo onde no cristal desenhavam-se os pares graciosos que circulavam o vasto salão. Os novos, cortejavam, sorriam, prometiam, olhavam e desafiavam ternuras. Os que já haviam passado o verão da vida, ficavam desiludidos todo aquele fictício convívio natural e preciso à mesma vida; os cavalheiros, gravemente conversando sobre o movimento político da atualidade, e as senhoras, a se abanarem com lentidão, falando sobre os últimos figurinos, ou sobre as melhores modistas preferidas.

Um vulto de moça de seus dezoito anos, erguendo o reposteiro que ocultava ao sexo contrário o toucador das senhoras ornado com o fino gosto de modernas mãos, apareceu refletindo-se no espelho que estava na extremidade oposta.

Com o desembaraço próprio de quem frequenta as salas, aceitou o braço de um cavalheiro ainda moço casacalmente vestido que demonstrando uma certa satisfação deu com ela umas voltas em roda da sala, ouvindo como que a propósito os acordes de uma valsa em voga.

Seguiram-lhe os movimentos cadenciais que obedeciam a voz dos instrumentos, mais pares que voltejaram formando nuvens multicores produzidas pelas gazes dos vestidos num redemoinho agradável, onde elas, as moças, com a respiração ofegante, reclinavam com abandono as mimosas frontes sobre o ombro do cavalheiro que segurando-as pela cintura e pelas pontas dos dedos enluvados, conduziam as da direita para a esquerda, bebendo o perfume dos sedosos cabelos e o da veloutine com que amaciavam o colo e as rosadas faces.

— Quisera morrer valsando, disse a jovem que vimos sair do toucador ao cavalheiro que aceitara como par, e com quem agora conversava.

— E eu também, mas junto a vossa excelência, como há pouco, responde ele.

— Lisonjeiro!...

— Quando sente-se o que eu sinto, a menor frase, deve ser o complemento da afeição sincera que lhe dedico.

O diálogo continuou. Ela, Marieta Nogueira, que nesse dia fazia anos, sem ser bela, contudo era bastante simpática para não ser julgada feia.

Como vê-se, não pinto um rosto de Rubens nem um ideal a Rembrandt.

O tipo brasileiro não tem a correção plástica do tipo grego; rara é mesmo a que se pode chamar bela, sem senões, por isso Marieta reunia, a uma educação esmerada, maneiras distintas, muita graça nos ademanes, e nada mais, a não ser, além de um bonito par. de olhos negros e a boca ornada de dentes alvos e bem tratados, a cintura fina, apertada por faceirice num colete de Madame de Vertus, que mais fazia sobressair o donaire do corpo habituado desde tenros anos a ter a pose sempre correta.

A arte de agradar incumbiu-se do resto; a veloutine e um sinal posto adrede, davam-lhe à fisionomia certa expressão vivaz e insinuante até.

Exagera-se constantemente nos escritos a beleza das senhoras.

Eu, porém, não estrago tão facilmente a concepção do Belo, inda mesmo em proveito do meu sexo. Prefiro antes divinizá-lo sob o pincel da verdade, do que do inverossímil.

As danças continuaram até tarde; todos retiraram-se gabando a cordialidade dos donos da casa, e sobretudo a de Marieta, que, completando nesse dia os seus dezoito anos, havia dado o sim de casamento ao Dr. Bandeira Fargas, que, tendo sido nomeado presidente de uma província de primeira ordem, nessa noite presenteara a noiva com um riquíssimo anel, dando o comendador à filha, um soberbo colar de brilhantes, prova evidente do bem estar monetário do ofertante.

O noivo, aquele que com ela valsara, além da presidência que aceitara, lobrigava no porvir uma cadeira na senatoria, e nas próximas eleições uma outra de deputado geral para o que preparava amigos e leitores, como homem conhecedor da chicana eleitoral e ainda mais, do tino preciso para semelhantes cabalas.

Para mais garantir a posição, achou um bom partido na filha do capitalista, que única herdeira de uns oitocentos contos, ambicionando por seu turno um bom casamento,  aceitou o que lhe propuseram sem a discrição precisa para conhecer o pretendente.

***

Três meses depois deste dia, uma nuvem negra apareceu no horizonte da vida do capitalista, que andava carrancudo, triste, fugindo a divertimentos, ocultando da família o mau estado dos seus negócios. A tempestade que se acumulava no cimo das transações comerciais da sua casa arrastando uma quebra vergonhosa, destas que acarretam a miséria, e que independente da boa vontade do negociante aos olhos dos honrados, ele não salva-se, não acha escusa, não acha redenção, não acha amigos. No entretanto, apesar do murmúrio que já se ouvia a respeito do sucesso que se tinha como certo, ele, julgando-se honrado, examinou o Diário e o Razão. Estavam em regra... pelos mesmos, a quebra podia até ser julgada casual... porém uma quebra comercial importa sempre uma pontinha de descrédito para o negociante. Diziam: gasta muito, dá luxo à família, tem feito diversas viagens, dá recepções, tem carruagens, é um  homem que não mede as despesas, esgotando o que era alheio, e... que... em vista do atual estado de coisas, só com o labéu de ladrão, poderia apresentar o salvo-conduto com que reclamasse para si um outro lugar como sócio de indústria de qualquer casa já feita. Conversou com o guarda-livros. Este, homem honrado, incapaz de fazer uma escrita falsa, amigo do seu chefe, jamais tinha em sua vida feito uma única trapaça; garantindo por si a firma de taxas que a fizessem corar, ao ir pedir-se-lhe contas da lealdade que a mesma lhe havia confiado.

O pai de Marieta teve de valer-se de um ou outro amigo, porque chegara o enxoval encomendado às pressas, sem restrições. Ele, como pai, pondo de parte a ambição monetária, cuidava de uma outra ambição: a da felicidade daquela com quem ele dividira os juros da alma... Não obstante conhecer o mundo, julgava todavia que o movei do futuro genro não fosse o dinheiro, mas sim as graças pessoais de sua filha.

Concordando com ela e com a esposa, escreveu ao bacharel narrando-lhe o que havia; porém como não obtivesse resposta adiou a  segunda carta, dando-se neste ínterim o desastre que o fulminou.

Abatido, cabisbaixo, taciturno, quis lutar ainda com a sorte; escreveu de novo ao Presidente que, em resposta, deu como desfeito o contrato que fizera.

Tudo reunia-se para mortificá-lo; os amigos desapareceram; apresentando-se ainda como credor exigente, o infortúnio, a pedir resignação para as agruras da miséria.

Muitas vezes esses choques sociais ajudam a polir a moral, aperfeiçoando o coração, o sentimento e as ações, que tornam-se moderadas, refletidas, tomando como exemplo o próprio exemplo, ajudando a razão a dirigir-se, salvando-se depois de naufrágios infalíveis.

***

 Marieta, aquela a quem a sorte havia rudemente maltratado, mostrou a seus pais, que a educação principal que se recebe é a educação dada no lar, no primeiro período da infância, aquela em que a mãe como o anjo tutelar ensina e guia, incumbindo-se depois o amor filial de fazer crescer e fortificar o seu domínio, vindo o sentimento herdado acrescentar os dotes recebidos, e tão precisos à vida.

Instruída, boa pianista, prendada, com alegria desfez-se das joias, menos do colar de brilhantes, lembrança de passadas eras, guardado agora em um modesto movei para remir necessidades futuras.

A família trabalhava. Nessa lida, com as lições que dava a moça, garantia ao pai o estritamente necessário, isso com grande magoa do pobre homem que, paralítico, abatido, quase cego, ao receber o beijo diário que dava-lhe Marieta quando chegava à casa, correspondia-lho igualmente, fazendo corara filha de comoção e de prazer, porque si ela dava-lhe o beijo mandando nele o respeito e o afeto, ele, ao beijar-lhe a mão, traduzia simplesmente de sua parte, a gratidão e o reconhecimento. Era amor por amor, afeto por afeto, gratidão por gratidão. Santa liga de duas almas que só uma produziu, mais que na junção dos lábios, porque si ela trabalhava para lhe garantir o sustento, dava-lhe ele a mais bela o i prova do quanto era reconhecido.

E digam que não existe para todos a lei da compensação!... Feliz do pai que sabe formar com amor o coração terno dos filhos que lhes possam ser mais tarde, o “Anjo do futuro”.

O ex-negociante afora a família só tinha como amigo o Dr. Esmerino Silva, seu antigo advogado que, destoando dos demais que se afastaram, ficou firme na amizade que tributara ao amigo desgraçado, indo ler diariamente para este as notícias dos jornais do dia levados por si, onde, por uma espécie de mania, o movimento da Bolsa era pelo paralítico o ponto mais apreciado.

***

Marieta adoeceu.

Tocou-lhe também o quinhão das dores físicas. A família portanto, estava quase na penúria. As roupas do arsenal que cozia sua mãe sem o auxilio da filha, não chegavam para acudir às despesas. Nesta situação o colar de brilhantes foi quem salvou a família da miséria certa, obtendo por ele o Dr. Silva uma sofrível quantia, ocultando, todavia, o nome de quem o tinha comprado.

A convalescença da jovem foi lenta, receando-se até um novo assalto da moléstia, por ter perigado a vida do comendador que, depois de uma agonia dolorosa, expirou deixando apenas como herança à sua família, a lembrança saudosa que ficava gravada no coração da mesma.

O enterro fez-se à custa do advogado. Os periódicos do dia, anunciando a morte do que em vida tanto figurara e sofrera, disseram que, em vista do fracasso que o abatera há alguns anos atrás, havia legado à família apenas um nome honrado.

Foi esse, pois, o balsamo que derramou sobre os corações magoados dos descendentes do falecido, alguém que devesse ao mesmo os mais acrisolados favores.

Sim!... O epitáfio público gravado pela sociedade àquele que por si erguera-se a uma boa posição, foi mesquinho; mandando entretanto, por no seu tumulo o inseparável amigo, uma lápide de mármore, acompanhada de uma singela grinalda de saudades em nome da esposa e da filha.

***

Decorreram seis longos meses.

É meio-dia.

Uma longa fila de carruagens estaciona no palácio Episcopal da Soledade.

A noiva entrou; o noivo já lá estava.

Tendo junto a si uma sociedade escolhida, o Silva com o simpático semblante a transbordar de júbilo encaminhou-se cortesmente para a noiva levando-a ao altar. Sensibilizada até as lágrimas, Marieta, a nossa Marieta, com singelo vestido branco, embora rico, envolta em um longo véu que cobria uma bonita grinalda de flores de laranjeiras, deixou cair ao pronunciar o sim uma lágrima sobre a mão honrada do antigo amigo de sua família; daquele que, sócio nos seus longos pesares, despretensioso e sem ambição, oferecera a ela seu nome, sua modesta fortuna, e um amor fortificado pelo quotidiano prazer de vê-la, e reconhecer-lhe os dotes de espírito.

***

Depois da cerimônia, à tarde, após o jantar, já quase sem convidados, a desposada entrou no seu quarto de vestir. Se bem que uma nuvem de prazer roçasse-lhe pelos olhos ainda brilhantes de mocidade, contudo o semblante anuviou-se-lhe um pouco. Seguramente lembrava-se do passado fasto. Ainda estava só.

Pouco a pouco foi tirando o resto das flores de laranjeira que sobrara-lhe do saque das jovens convidadas; depois, receosa, despiu uma a uma todas as suas galas. Foi ao guarda vestidos tirar um custoso roupão de rendas brancas, que vestiu pausadamente arranjando depois o penteado que desfizera-se um pouco com a retirada das flores; olhou já mais calma para o que via. Se estava só!...

Tudo era bom, de preço e de gosto. A medo abriu corando a porta do quarto imediato; fechou-o maquinalmente, vindo sentar-se junto à janela. Rapidamente a olhar para o jardim e a respirar o perfume das flores e o dos esquisitos extratos que pousavam sobre o toucador, passou em revista a sua vida de solteira.

O bacharel ainda com alguns importunos, consentira que ela se retirasse para vir descansar das emoções do dia. Ali, sozinha deu curso ao pensamento. Daquela data em diante ia mudar de persuasões, de vida, ia ser a governante absoluta de sua casa, devendo no entretanto cingir-se à posição de governada.

A dois passos via o seu quarto de núpcias, que abrira; mais além, a salinha de jantar com porta para o gabinete de estudo de seu marido, depois deste, a sala de visitas onde agora algumas vozes eram ouvidas distintamente. Despediam-se do recém-casado. Ela, esperando-o, sentiu perturbar-se-lhe a vista; um tremor inconsciente percorreu-lhe a epiderme: sim... não havia que duvidar; o futuro estava ali, naquele dia, naquelas flores, naqueles atavios, e ainda mais: no coração, na forma de portar-se, no respeito de indivíduo para indivíduo, no menor gesto, na menor ação, no menor olhar!

A tarde declinava.

O moço entrou sem ser visto pondo a mão no ombro de sua mulher.

Ela ergueu-se, estendendo a sua, que ele apertou brandamente, conduzindo-a ao toucador onde prometeu fazer-lhe uma surpresa.

Ofegante, a olhar para a gaveta aberta, viu então entre outras joias o seu colar de brilhantes, última dádiva de seu pai.

— Como pagar-te tanta dedicação, como agradecer-te tanta amizade? perguntou olhando-o com reconhecimento.

— Com a tua fidelidade, com o teu afeto, remunerando-me assim esse amor que te consagro desde que a infelicidade mostrou que tu eras a melhor das filhas, e que serias também a mais virtuosa das esposas.

— Eu o juro, respondeu fechando o móvel, e ambos enternecidos, a convite do rapaz, foram correr o mimoso ninho que este havia preparado para ela.

 

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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