7/31/2023

Marianita (Conto), de Inês Sabino

 

MARIANITA
(À MARIANA GONÇALVES)

Diga-me, minha senhora, se no Brasil a mulher tivesse o direito de voto, ou interesse na política, vossa excelência o que faria?

A interpelada, como que despertando de um sonho, fitou um cavalheiro baixote, idoso, com bastante vivacidade nos olhos pequenos mas expressivos, sem contudo responder-lhe.

Ele repetiu-lhe a pergunta.

— Nem mesmo sei dizer nada a respeito, Sr. Desembargador. Semelhante ideia não passará de uma utopia por enquanto. Aqui no Brasil a mulher jamais salientar-se-á, porque não está preparada ainda para o desenvolvimento dos grandes problemas sociais.

A moça tinha razão.

A política brasileira tem muito ainda que metamorfosear-se; tem muito que consolidar-se, para, de acordo com a fase por que está passando, definir de vez a sua autoridade pensante junto dos grandes centros civilizados do velho mundo. Falta a eles, os políticos, uma certa autoridade de pensamento e mesmo de ação, e, daí, veja-se a divergência das ideias na época atual, onde cada qual quer emitir a sua opinião, procurando melhorar a situação meio falsa com que se acentua o grande congresso da crise social, aliás já encaminhada por espíritos, que embora superiores, contudo muito terão de lutar para acentuar suas ideias e enraizar suas convicções, melhorando pela nova forma de governo as finanças, a instrução pública, e o bem estar da nação em geral.

Quanto à posição da mulher brasileira, intelectualmente falando, agora é que tem ela de forçosamente inativar-se, procurando apenas sobressair nos salões, desenvolvendo o espírito como mulher instruída e educada, mas nunca como mulher útil, salvo na instrução pública.

Fecharam-lhe as portas das Academias pelo sistema errôneo da religião Contista, absurda e irracional, porque, como um ser frágil, tem apenas ela o direito de restringir-se a condições especiais adaptadas ao sexo e ao meio.

Não direi, todavia, que, a mulher moderna  transforma o sexo em desproveito do pudor o seu mais belo ornamento. A mulher, é sempre mulher: mas por Deus! aquela que por um ímpeto evolutivo quisesse sobressair, afastando-se do circulo apertado em que vive deixassem-na sobressair, não se lhe fechassem assim os templos da ciência, que na Europa e na América do Norte são franqueados às mesmas cortesmente.

A ciência e a arte, são duas irmãs gêmeas precisas ao desenvolvimento da intelectualidade feminina daqui, dali, e d’além.

A mulher de hoje, felizmente, já não é uma simples figura alegórica de ornato, nem uma Cariatide enfim.

Veja-se a mulher russa, e negue-se depois a veracidade dos fatos. Nem todas serão Sands; nem todas serão Staels; sei eu; porém como o século é das grandes cabeças, dos grandes desenvolvimentos científicos e literários, se a sociologia tem bases solidas para o desenvolvimento da síntese da perfectibilidade humana, encarando a evolução como a força motriz do cérebro nas leis da dinâmica social, por que razão entre as grandes cabeças não poderá possuir igualmente uma grande cabeça a mulher?

***

A pergunta acima feita pelo Desembargador Sebastião Sertório à moça, não era nenhum disparate, visto ser ela entendida em política, na qual foi nascida, criada, e educada, distraindo-se com isso lá na roça, no engenho, onde com a Georgeta, irmã mais velha de Alina, as duas, inteligentes, discutiam política com o pai e com os potentados do lugar, o que muito os divertia.

Filhas ambas do Major Francisco Cavalcanti de Siqueira, rico agricultor e chefe do partido conservador lá da Escada, bom pai de família, completo fidalgo no trato, grande influencia política no distrito, mandara educaras filhas com certo esmero, atendendo à sua posição, e á altivez dos seus predicados de fidalgo.

Nos seus domínios rurais, em época de eleições, punha a sua mesa à disposição do pretendente, ativando os cambalachos nas tricas eleitorais, conhecendo cada individuo tão bem como conhecia o fundo comercial da casa, a quem consignava o produto da sua fabrica que rendia-lhe não poucos contos de réis.

No Recife, à Rua da Aurora, onde tinha uma boa residência, vivia no inverno com todo o conforto possível. Entre os seus frequentadores, viam-se alguns acadêmicos. Um deles, o Maciel da Silva, enlevado pelo espírito da filha mais nova do major, amava-a com toda a plenitude de um afeto sincero.

Alina, correspondeu-o; limitando-se a ocultar o que sentia, deixava ele tocar-lhe no assunto.

Engolfado no idílio da sua alma, a moça avara do seu primeiro amor, nem à irmã comunicava as suas impressões, notando que Georgeta, de tão alegre que era, tornara-se macambúzia, pensativa, como que imersa em um pensamento único e constante.

A filha do agricultor procurando adivinhar o que dava-se no coração da irmã, indagou, obtendo, porém, uma evasiva por desculpa dada pela mesma.

Ela calou-se e magoou-se. Os seus dezessete anos ainda não davam-lhe uma certa lógica para desprezar situações. Desde então, houve entre elas uma certa reserva nas comunicações íntimas, fugiam de fazer confidências, fugiam de falar no nome do acadêmico, e no entretanto amavam-se, eram amicíssimas, salvo, , quando por um instinto especial, conheciam que o coração tinha por lema o mesmo indivíduo. O ódio mútuo era todo parcial então; Georgeta, ao ver o Maciel olhar singela mente para si, julgava perscrutar-lhe no brilho das pupilas um lampejo de amor; e Alina, senhora quase do coração do namorado, sentia um agudo espinho quando adivinhava o que os olhos dele diziam sem querer, deixando trair assim o pensamento que o absorvia.

Mais moça, menos experiente, uma ou outra vez consentia escapar do coração junto a irmã um suspiro doce e imperceptível que a outrem, que não fosse a Georgeta, sentiria paralisar o sangue nas veias, encrespando todavia ligeiramente o sobrolho ao percebê-lo.

A mãe, por intuição especial, adivinhava o que sucedia e procurava afastá-las do moço, que às noites, ia infalivelmente jogar com o major o xadrez, não imaginando sequer que fosse o motivo do desequilíbrio de afeto que dava-se entre as duas espirituosas filhas d o senhor de engenho.

O mês de Setembro já ia em meio. O calor sufocante exigia um ar mais puro do que o respirado na poética capital que conhecemos. A família Cavalcanti resolveu ir passar uma temporada no campo, abandonando a propriedade rural por grassar na mesma a varíola, isto com grande desapontamento do major que precipitadamente com a esposa, foram para Caxangá.

***

No campo, à tarde, é delicioso o panorama que tem-se à vista quando o sol a fugir vai deixando escoar pelas cristas dos montes um arco Iris de cores rubras, formando cambiantes diversas, onde a cor de rubi predomina, transformando-se em amarelo fogueado, incandescente, que desmaia aos poucos, até confundir-se com as cores sombrias da noite que lentamente descem sobre a terra envolvendo-a no manto escuro, onde surge em intervalos uma ou outra estrela, aparecendo em seguida essa multidão de pontos luminosos que embelezam a vasta amplidão do mundo etéreo.

Estamos em Caxangá. Nesta hora, aí, a paisagem é esplendida, independente de ser mesquinha a povoação, e nem mesmo atraente o conjunto do todo, tendo somente casinhas sem importância que se alugam a alto preço no tempo do calor, a quem deseja passar a festa e que não olha a dinheiro para usufruir banhos do rio, os passeios, e manter com outros mais uma estação característica à gente do norte, isto é, à recifense. Uma meia dúzia de prédios confortáveis pertencentes a particulares, é o que nota-se de mais importância, assim como a capelinha dedicada a São Vicente de Paulo, toda elegante na sua simplicidade arquitetônica, sem douraduras nem arabescos, mas clara, limpa, com o altar-mor alcatifado, e separado do corpo do edifício por uma grade dc madeira envernizada.

Tudo nela respira pureza e recolhimento. O coro com uma serafina, tem grandes janelas de vidraças que abrem no dia da festa do patrono, deixando a luz banhar em jorros o centro do edifício que aos Domingos, no tempo da festa, vê-se repleto de devotos que fazem d ali um ponto de encontros matutinos.

À tarde, pois, nessa hora, na longa e larga estrada que principia na Madalena e perde-se no interior da província, ergue-se uma enorme nuvem de poeira produzida pelos animais que quotidianamente cruzam o caminho, sendo os mesmos tangidos pelos cargueiros, que, de pé, vestidos de calça e camisa de cores, com o clássico chapéu de couro, andam apressados a fim de pernoitarem em algum rancho próximo.

Atravessa Caxangá um rio, o Capibaribe, que aí é estreito e raso como um regato, sobre o qual já figurou uma ponte pênsil destruída por uma inundação, sendo substituída agora por uma outra mais solida, visto ser temida a correnteza do rio que no inverno torna-se caudaloso a ponto de reduzir a nada tudo que encontra como obstáculo à impetuosidade da sua carreira.

No verão, porém, quando a concorrência dos passadores de festa, é grande, vê-se inúmeros banheiros de pindoba, ornando uma  e outra margem desse braço do Capibaribe, onde, ainda no lado esquerdo, haviam dois hotéis muito concorridos. O trem de ferro dos subúrbios para na povoação e segue para a Várzea, tornando-se agradável o passeio por desfrutar-se simpáticos golpes de vista alcançando a vista muitas casinhas poéticas, quase todas pertencentes a estrangeiros abastados.

Nos outeiros onde os pobres têm as suas casinhas de barro cobertas de telha ou de um tecido de folhas de coqueiro, à hora poética do por do sol, vê-se uma mulher dando a última ração do dia à cabra que sustenta com o leite as crianças da casa; acolá, um camponês conduzindo ao curral as vacas que pastam durante o dia, e que agora, a passo, ao som do canto monótono do pastor e acompanhadas dos cães, embalando metodicamente os chocalhos presos ao pescoço, entram no curral urrando tristemente.

Depois, tangendo as aves domesticas que cacarejam no terreiro, além, um ou outro menino, com uma varinha, corre atrás das mesmas fazendo-as trepar no galho dos ingazeiros, indo depois eles, os pequeninos, despreocupados lançarem-se na água, nessa alegria infantil própria dos primeiros anos e da qual tantas saudades restam-nos depois.

***

Há há grande animação nas casas habitadas, onde aos domingos uma nuvem de imigrantes frequentam-nas, sendo bonito de ver-se a concorrência de amigos que se encontrão em grupos pelas ruas gramadas, cortejando-se, abraçando-se, beijando-se, indo depois para casa de algum conhecido, onde quase sempre dançam e tocam até à saída do último trem que parte para a cidade.

Numa das melhores casas do arrabalde vamos encontrar o Major Calvacanti nesse domingo à tarde, vestido de roupa branca, cercado de amigos que no terraço jogavam o voltarete. D. Lauriana, sua esposa, ocupava-se em conversar com algumas senhoras, ao passo que Alina e Georgeta entretidas em prosar com algumas moças, de vez em quando olhavam a furto para um rapaz simpático que, embora entretido a jogar, contudo lançava rápidos olhares para a morena filha do agricultor, que certa de ser amada, tendo-se comprometido com o moço, esperava ser pedida em breve, ao passo que Georgeta, depois de muita luta, e, a bem de sua irmã, da sua dignidade mesmo, sacrificara o seu amor em proveito de Alina. As condições excepcionais em que o destino as havia colocado amando o mesmo homem, faziam com que ela impusesse ao coração umas condições muito fora do natural, sobretudo depois que sua irmã, a preferida, confessou que amava o moço e que casaria com o mesmo, não obstante a desconfiança que tinha de ser ele também amado por alguém a quem muito conhecia.

Georgeta corou, atrapalhou-se um pouco e resolutamente confessou que houvera sido por efeito de mera fantasia o curto estado psicológico de sua alma, mas que depois cerrara o coração fazendo-o votar à indiferença essa fase doentia em que o mesmo achava-se por efeito de uma impressão passageira.

Ela mentira. Em questão de amor, onde a alma é o receptáculo dos sentimentos, o  coração, o transmissor deles, e a imaginação o alvo dos sonhos espontâneos, só se encarando o assunto pelo seu lado moral é que reage-se, tanto que vimos, de quando em vez, ela fitar disfarçadamente o rapaz enquanto conversava com as amigas. Alina acreditava-a; Georgeta fugia de ambos, procurava distrair e falava até com certo desprendimento que dir-se-ia nunca haver ela sentido pelo estudante qualquer impressão menos passageira.

Nessa noite a sala do pai das duas irmãs estava repleta. Na véspera haviam dançado muito. Estavam quase cansadas; mas, como no tempo de festa não se cansa, e nessa ocasião tinham entre os visitantes o Sinhozinho, um mártir da vontade despótica das moças que dançavam muitos dias seguidos à custa do pobre rapaz, que tocava, como uma manivela, sem parar, sujeitando-se aos caprichos delas, resolveram dançar ainda.

A D. Lauriana convidou a todos para tomarem par. A dança é tão boa! tão atraente!... Porém... quem tocaria? Estafar as moças ao piano era um suplício, uma falta de delicadeza... quem tocaria então?

— O Sinhozinho, respondeu alguém.

— Oh! Sinhozinho!... onde estará ele? perguntava um rapaz, procurando o mísero que foi trazido para a sala a reboque pelo braço de um amigo, indo sentar-se ao piano, embora um pouco contrafeito.

— Tirem pares, meus senhores, disse preludiando; mas observo-lhes que estou cansadíssimo. Há dois dias que toco sem cessar e não tenho dançado nada.

— Coitado!... respondeu uma menina loura e esbelta, vou substituí-lo, meu amigo.

— Nada! disse a dona da casa, onde há homens, as senhoras não se enfadam. Toque o Sinhozinho.

As danças corriam animadas. O rapaz já tocava como um realejo: sem compasso, quase á toa. Do chão erguiam-se nuvens de pó, quando já cansados, suados, ofegantes, com os pés em brasas e uns perros de uns calos a doer a ponto de fazer alguém ver estrelas, pararam para recomeçar.

As senhoras abanavam-se, sorriam, falavam baixinho ao ouvido das outras, segredando uma criticaznha sutil e ligeira, como ligeiro era o sarau que improvisavam; e o Sinhozinho a bufar de cansado, teve de sentar-se de novo ao piano com ar abatido.

— Toque uma polca, diziam uns.

— Toque uma valsa, gritavam outros.

— Em que ficam, meus senhores? perguntou o pianista.

— Valsa, valsa! repetiam as moças.

A valsa foi tocada com bravura, finalizando-a o rapaz num galope desenfreado.

O apito do trem ordenou as despedidas, e quando o Maciel despediu-se da filha mais nova do dono da casa sentiu que a mão da jovem escaldava, ao passo que a de Georgeta parecia haver saído do túmulo.

***

A temporada da festa passada pela família Cavalcanti no campo, não foi feliz. O acadêmico considerado já noivo, tendo a liberdade outorgada pela sua posição, notou que a sua prometida depois de um piquenique que houvera na Caixa d’água, tinha febre diariamente.

Ela, sem fazer caso dos assaltos intermitentes, andava de pé, se bem que um pouco pálida. A mandado do médico teve de recolher-se ao leito, porém já era tarde. Estava escrito que não se ornaria com as suas flores de laranjeiras.

Degenerando em tifo, a febre levou-a à sepultura. Georgeta foi sublime de dedicação.

O moço retirando-se de Pernambuco, deixou uma lágrima ornando a coroa de rosas que pusera por suas mãos no tumulo de Alina Cavalcanti.

***

Uma manhã, a família do major almoçava no engenho, quando na correspondência veio uma carta do Maciel, que, formado e já em boa posição, pedia a Georgeta em casamento.

Meses depois efetuava-se o consórcio com muito prazer dos pais.

— Eu o amava de há muito, disse a desposada confidencialmente a uma amiga, mas daria a minha vida para ter feito feliz a minha irmã, a quem amei ainda mais, depois de refletir que a rivalidade seria um absurdo desde que eu não era amada pelo que hoje é meu marido.

— E o egoísmo?

— Esse, o coração que compreende o que seja sacrifício põe-no à margem, porque não se vive somente da felicidade própria: é-se feliz igualmente quando se pode tornar a outrem feliz também.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023

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