MARIANITA
(À MARIANA GONÇALVES)
Diga-me, minha senhora, se no Brasil
a mulher tivesse o direito de voto, ou interesse na política, vossa excelência
o que faria?
A interpelada, como que despertando
de um sonho, fitou um cavalheiro baixote, idoso, com bastante vivacidade nos
olhos pequenos mas expressivos, sem contudo responder-lhe.
Ele repetiu-lhe a pergunta.
— Nem mesmo sei dizer nada a
respeito, Sr. Desembargador. Semelhante ideia não passará de uma utopia por enquanto.
Aqui no Brasil a mulher jamais salientar-se-á, porque não está preparada ainda
para o desenvolvimento dos grandes problemas sociais.
A moça tinha razão.
A política brasileira tem muito
ainda que metamorfosear-se; tem muito que consolidar-se, para, de acordo com a fase
por que está passando, definir de vez a sua autoridade pensante junto dos
grandes centros civilizados do velho mundo. Falta a eles, os políticos, uma
certa autoridade de pensamento e mesmo de ação, e, daí, veja-se a divergência
das ideias na época atual, onde cada qual quer emitir a sua opinião, procurando
melhorar a situação meio falsa com que se acentua o grande congresso da crise
social, aliás já encaminhada por espíritos, que embora superiores, contudo
muito terão de lutar para acentuar suas ideias e enraizar suas convicções, melhorando
pela nova forma de governo as finanças, a instrução pública, e o bem estar da
nação em geral.
Quanto à posição da mulher brasileira,
intelectualmente falando, agora é que tem ela de forçosamente inativar-se, procurando
apenas sobressair nos salões, desenvolvendo o espírito como mulher instruída e
educada, mas nunca como mulher útil, salvo na instrução pública.
Fecharam-lhe as portas das
Academias pelo sistema errôneo da religião Contista, absurda e irracional, porque,
como um ser frágil, tem apenas ela o direito de restringir-se a condições
especiais adaptadas ao sexo e ao meio.
Não direi, todavia, que, a mulher
moderna transforma o sexo em desproveito
do pudor o seu mais belo ornamento. A mulher, é sempre mulher: mas por Deus!
aquela que por um ímpeto evolutivo quisesse sobressair, afastando-se do circulo
apertado em que vive deixassem-na sobressair, não se lhe fechassem assim os
templos da ciência, que na Europa e na América do Norte são franqueados às mesmas
cortesmente.
A ciência e a arte, são duas irmãs gêmeas
precisas ao desenvolvimento da intelectualidade feminina daqui, dali, e d’além.
A mulher de hoje, felizmente, já
não é uma simples figura alegórica de ornato, nem uma Cariatide enfim.
Veja-se a mulher russa, e negue-se
depois a veracidade dos fatos. Nem todas serão Sands; nem todas serão Staels;
sei eu; porém como o século é das grandes cabeças, dos grandes desenvolvimentos
científicos e literários, se a sociologia tem bases solidas para o
desenvolvimento da síntese da perfectibilidade humana, encarando a evolução
como a força motriz do cérebro nas leis da dinâmica social, por que razão entre
as grandes cabeças não poderá possuir igualmente uma grande cabeça a mulher?
***
A pergunta acima feita pelo Desembargador Sebastião Sertório à
moça, não era nenhum disparate, visto ser ela entendida em política, na qual
foi nascida, criada, e educada, distraindo-se com isso lá na roça, no engenho,
onde com a Georgeta, irmã mais velha de Alina, as duas, inteligentes, discutiam
política com o pai e com os potentados do lugar, o que muito os divertia.
Filhas ambas do Major Francisco Cavalcanti de Siqueira, rico
agricultor e chefe do partido conservador lá da Escada, bom pai de família,
completo fidalgo no trato, grande influencia política no distrito, mandara
educaras filhas com certo esmero, atendendo à sua posição, e á altivez dos seus
predicados de fidalgo.
Nos seus domínios rurais, em época de eleições, punha a sua
mesa à disposição do pretendente, ativando os cambalachos nas tricas eleitorais,
conhecendo cada individuo tão bem como conhecia o fundo comercial da casa, a
quem consignava o produto da sua fabrica que rendia-lhe não poucos contos de
réis.
No Recife, à Rua da Aurora, onde tinha uma boa residência,
vivia no inverno com todo o conforto possível. Entre os seus frequentadores,
viam-se alguns acadêmicos. Um deles, o Maciel da Silva, enlevado pelo espírito
da filha mais
nova do major, amava-a com
toda a plenitude de um afeto sincero.
Alina, correspondeu-o; limitando-se a ocultar o que sentia,
deixava ele tocar-lhe no assunto.
Engolfado no idílio da sua alma, a moça avara do seu primeiro
amor, nem à irmã comunicava as suas impressões, notando que Georgeta, de tão
alegre que era, tornara-se macambúzia, pensativa, como que imersa em um
pensamento único e constante.
A filha do agricultor procurando adivinhar o que dava-se no
coração da irmã, indagou, obtendo, porém, uma evasiva por desculpa dada pela
mesma.
Ela calou-se e magoou-se. Os seus dezessete anos ainda não
davam-lhe uma certa lógica para desprezar situações. Desde então, houve entre
elas uma certa reserva nas comunicações íntimas, fugiam de fazer confidências, fugiam
de falar no nome do acadêmico, e no entretanto amavam-se, eram amicíssimas,
salvo, , quando por um instinto especial, conheciam que o coração tinha por lema
o mesmo indivíduo. O ódio mútuo era todo parcial então; Georgeta, ao ver o
Maciel olhar singela mente para si, julgava perscrutar-lhe no brilho das pupilas
um lampejo de amor; e Alina, senhora quase do coração do namorado, sentia um
agudo espinho quando adivinhava o que os olhos dele diziam sem querer, deixando
trair assim o pensamento que o absorvia.
Mais moça, menos experiente, uma ou
outra vez consentia escapar do coração junto a irmã um suspiro doce e
imperceptível que a outrem, que não fosse a Georgeta, sentiria paralisar o
sangue nas veias, encrespando todavia ligeiramente o sobrolho ao percebê-lo.
A mãe, por intuição especial, adivinhava
o que sucedia e procurava afastá-las do moço, que às noites, ia infalivelmente
jogar com o major o xadrez, não imaginando sequer que fosse o motivo do
desequilíbrio de afeto que dava-se entre as duas espirituosas filhas d o senhor
de engenho.
O mês de Setembro já ia em meio. O
calor sufocante exigia um ar mais puro do que o respirado na poética capital
que conhecemos. A família Cavalcanti resolveu ir passar uma temporada no campo,
abandonando a propriedade rural por grassar na mesma a varíola, isto com grande
desapontamento do major que precipitadamente com a esposa, foram para Caxangá.
***
No campo, à tarde, é delicioso o
panorama que tem-se à vista quando o sol a fugir vai deixando escoar pelas cristas
dos montes um arco Iris de cores rubras, formando cambiantes diversas, onde a cor
de rubi predomina, transformando-se em amarelo fogueado, incandescente, que
desmaia aos poucos, até confundir-se com as cores sombrias da noite que
lentamente descem sobre a terra envolvendo-a no manto escuro, onde surge em
intervalos uma ou outra estrela, aparecendo em seguida essa multidão de pontos
luminosos que embelezam a vasta amplidão do mundo etéreo.
Estamos em Caxangá. Nesta hora, aí,
a paisagem é esplendida, independente de ser mesquinha a povoação, e nem mesmo atraente
o conjunto do todo, tendo somente casinhas sem importância que se alugam a alto
preço no tempo do calor, a quem deseja passar
a festa e que não olha a dinheiro para usufruir banhos do rio, os passeios,
e manter com outros mais uma estação característica à gente do norte, isto é, à
recifense. Uma meia dúzia de prédios confortáveis pertencentes a particulares, é
o que nota-se de mais importância, assim como a capelinha dedicada a São Vicente
de Paulo, toda elegante na sua simplicidade arquitetônica, sem douraduras nem
arabescos, mas clara, limpa, com o altar-mor alcatifado, e separado do corpo do
edifício por uma grade dc madeira envernizada.
Tudo nela respira pureza e
recolhimento. O coro com uma serafina, tem grandes janelas de vidraças que
abrem no dia da festa do patrono, deixando
a luz banhar em jorros o centro do edifício que aos Domingos, no tempo da festa,
vê-se repleto de devotos que fazem d ali um ponto de encontros matutinos.
À tarde, pois, nessa hora, na longa
e larga estrada que principia na Madalena e perde-se no interior da província, ergue-se
uma enorme nuvem de poeira produzida pelos animais que quotidianamente cruzam o
caminho, sendo os mesmos tangidos pelos cargueiros, que, de pé, vestidos de
calça e camisa de cores, com o clássico chapéu de couro, andam apressados a fim
de pernoitarem em algum rancho próximo.
Atravessa Caxangá um rio, o Capibaribe, que aí é estreito e raso
como um regato, sobre o qual já figurou uma ponte pênsil destruída por uma
inundação, sendo substituída agora por uma outra mais solida, visto ser temida
a correnteza do rio que no inverno torna-se caudaloso a ponto de reduzir a nada
tudo que encontra como obstáculo à impetuosidade da sua carreira.
No verão, porém, quando a concorrência
dos passadores de festa, é grande, vê-se
inúmeros banheiros de pindoba, ornando uma e outra margem desse braço do Capibaribe, onde,
ainda no lado esquerdo, haviam dois hotéis muito concorridos. O trem de ferro
dos subúrbios para na povoação e segue para a Várzea, tornando-se agradável o
passeio por desfrutar-se simpáticos golpes de vista alcançando a vista muitas
casinhas poéticas, quase todas pertencentes a estrangeiros abastados.
Nos outeiros onde os pobres têm as
suas casinhas de barro cobertas de telha ou de um tecido de folhas de coqueiro,
à hora poética do por do sol, vê-se uma mulher dando a última ração do dia à cabra
que sustenta com o leite as crianças da casa; acolá, um camponês conduzindo ao
curral as vacas que pastam durante o dia, e que agora, a passo, ao som do canto
monótono do pastor e acompanhadas dos cães, embalando metodicamente os
chocalhos presos ao pescoço, entram no curral urrando tristemente.
Depois, tangendo as aves domesticas
que cacarejam no terreiro, além, um ou outro menino, com uma varinha, corre atrás
das mesmas fazendo-as trepar no galho dos ingazeiros, indo depois eles, os pequeninos, despreocupados
lançarem-se na água, nessa alegria infantil própria dos primeiros anos e da
qual tantas saudades restam-nos depois.
***
Há há grande animação nas casas
habitadas, onde aos domingos uma nuvem de imigrantes frequentam-nas, sendo bonito
de ver-se a concorrência de amigos que se encontrão em grupos pelas ruas
gramadas, cortejando-se, abraçando-se, beijando-se, indo depois para casa de
algum conhecido, onde quase sempre dançam e tocam até à saída do último trem
que parte para a cidade.
Numa das melhores casas do
arrabalde vamos encontrar o Major Calvacanti nesse domingo à tarde, vestido de
roupa branca, cercado de amigos que no terraço jogavam o voltarete. D. Lauriana,
sua esposa, ocupava-se em conversar com algumas senhoras, ao passo que Alina e
Georgeta entretidas em prosar com algumas moças, de vez em quando olhavam a
furto para um rapaz simpático que, embora entretido a jogar, contudo lançava
rápidos olhares para a morena filha do agricultor, que certa de ser amada, tendo-se
comprometido com o moço, esperava ser pedida em breve, ao passo que Georgeta, depois
de muita luta, e, a bem de sua irmã, da sua dignidade mesmo, sacrificara o seu
amor em proveito de Alina. As condições excepcionais em que o destino as havia
colocado amando o mesmo homem, faziam com que ela impusesse ao coração umas
condições muito fora do natural, sobretudo depois que sua irmã, a preferida, confessou
que amava o moço e que casaria com o mesmo, não obstante a desconfiança que
tinha de ser ele também amado por alguém a quem muito conhecia.
Georgeta corou, atrapalhou-se um
pouco e resolutamente confessou que houvera sido por efeito de mera fantasia o
curto estado psicológico de sua alma, mas que depois cerrara o coração
fazendo-o votar à indiferença essa fase doentia em que o mesmo achava-se por efeito
de uma impressão passageira.
Ela mentira. Em questão de amor, onde
a alma é o receptáculo dos sentimentos, o coração, o transmissor deles, e a imaginação o
alvo dos sonhos espontâneos, só se encarando o assunto pelo seu lado moral é
que reage-se, tanto que vimos, de quando em vez, ela fitar disfarçadamente o
rapaz enquanto conversava com as amigas. Alina acreditava-a; Georgeta fugia de
ambos, procurava distrair e falava até com certo desprendimento que dir-se-ia
nunca haver ela sentido pelo estudante qualquer impressão menos passageira.
Nessa noite a sala do pai das duas
irmãs estava repleta. Na véspera haviam dançado muito. Estavam quase cansadas;
mas, como no tempo de festa não se
cansa, e nessa ocasião tinham entre os visitantes o Sinhozinho, um mártir da
vontade despótica das moças que dançavam muitos dias seguidos à custa do pobre
rapaz, que tocava, como uma manivela, sem parar, sujeitando-se aos caprichos delas,
resolveram dançar ainda.
A D. Lauriana convidou a todos para
tomarem par. A dança é tão boa! tão atraente!... Porém... quem tocaria? Estafar
as moças ao piano era um suplício, uma falta de delicadeza... quem tocaria
então?
— O Sinhozinho, respondeu alguém.
— Oh! Sinhozinho!... onde estará ele?
perguntava um rapaz, procurando o mísero que foi trazido para a sala a reboque
pelo braço de um amigo, indo sentar-se ao piano, embora um pouco contrafeito.
— Tirem pares, meus senhores, disse
preludiando; mas observo-lhes que estou cansadíssimo. Há dois dias que toco sem
cessar e não tenho dançado nada.
— Coitado!... respondeu uma menina
loura e esbelta, vou substituí-lo, meu amigo.
— Nada! disse a dona da casa, onde
há homens, as senhoras não se enfadam. Toque o Sinhozinho.
As danças corriam animadas. O rapaz
já tocava como um realejo: sem compasso, quase á toa. Do chão erguiam-se nuvens
de pó, quando já cansados, suados, ofegantes, com os pés em brasas e uns perros
de uns calos a doer a ponto de fazer alguém ver estrelas, pararam para
recomeçar.
As senhoras abanavam-se, sorriam, falavam
baixinho ao ouvido das outras, segredando uma criticaznha sutil e ligeira, como
ligeiro era o sarau que improvisavam; e o Sinhozinho a bufar de cansado, teve
de sentar-se de novo ao piano com ar abatido.
— Toque uma polca, diziam
uns.
— Toque uma valsa, gritavam outros.
— Em que ficam, meus senhores?
perguntou o pianista.
— Valsa, valsa! repetiam as moças.
A valsa foi tocada com bravura, finalizando-a
o rapaz num galope desenfreado.
O apito do trem ordenou as
despedidas, e quando o Maciel despediu-se da filha mais nova do dono da casa
sentiu que a mão da jovem escaldava, ao passo que a de Georgeta parecia haver
saído do túmulo.
***
A temporada da festa passada pela família Cavalcanti no campo, não foi feliz. O
acadêmico considerado já noivo, tendo a liberdade outorgada pela sua posição, notou
que a sua prometida depois de um piquenique que houvera na Caixa d’água, tinha
febre diariamente.
Ela, sem fazer caso dos assaltos
intermitentes, andava de pé, se bem que um pouco pálida. A mandado do médico
teve de recolher-se ao leito, porém já era tarde. Estava escrito que não se
ornaria com as suas flores de laranjeiras.
Degenerando em tifo, a febre
levou-a à sepultura. Georgeta foi sublime de dedicação.
O moço retirando-se de Pernambuco, deixou
uma lágrima ornando a coroa de rosas que pusera por suas mãos no tumulo de
Alina Cavalcanti.
***
Uma manhã, a família do major
almoçava no engenho, quando na correspondência veio uma carta do Maciel, que, formado
e já em boa posição, pedia a Georgeta em casamento.
Meses depois efetuava-se o consórcio
com muito prazer dos pais.
— Eu o amava de há muito, disse a
desposada confidencialmente a uma amiga, mas daria a minha vida para ter feito
feliz a minha irmã, a quem amei ainda mais, depois de refletir que a rivalidade
seria um absurdo desde que eu não era amada pelo que hoje é meu marido.
— E o egoísmo?
— Esse, o coração que compreende o
que seja sacrifício põe-no à margem, porque não se vive somente da felicidade
própria: é-se feliz igualmente quando se pode tornar a outrem feliz também.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023
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