NA ROÇA E NA CIDADE
(À LYDIA BLATER PINHO)
Ele era um ingênuo ainda.
Natureza fraca e tímida, já aos
dezoito anos, corava à menor palavra mais dura, fugia de ir à vila, onde haviam
rapazes conhecidos, que zombavam do seu efeminado modo de viver, chamando-o de simplório,
piegas, ingênuo e toleirão, com o que se não zangava, mas antes até sorria.
Lá mesmo, na fazenda, havia
estudado uns preparatórios, e quando falavam em fazê-lo ir à cidade, essa ideia
o não contentava.
Sua infância, tinha-na passado ora
lá na propriedade rural, ora na chácara que a D. Jerônima, sua tia materna e
madrinha, possuía na vila, criando-o como um verdadeiro enfant gâté, cheio de mimos, com companheiros escolhidos para os
folguedos, nos quais tomava igualmente parte a Olga, órfã, como o rapaz, que
travessíssima e bem desenvolvida, lá no pátio gramado da Piedade saltava como
ninguém a corda e o arco, apostando carreiras, no que era disputada em desafio
pelos companheiros, menos pelo Maneco, que achava feio uma mocinha dar-se à semelhante
divertimento.
Havia pouco tempo que ele mudara-se
para um quarto fora do corpo da casa, uma espécie de chalé, bem arejado, e
confortável, porém habituado com a tia e a prima, muita vez ensinava a esta a
tirar dos Jornais de modas, amostras de crochê e aniagem, cortava costura, cosia
na máquina e até dormia ainda à sesta no colo da idosa senhora. O original
viver do rapaz o punha fraco, anêmico, quase sem ação para reagir energicamente
qualquer eventualidade imprevista. Os íntimos censuravam; o velho sacerdote, que
o havia batizado aconselhava que o moço devia já por conta própria escolher
qualquer carreira; a de engenharia, por exemplo, que garantia mais futuro.
— Não tenho animo de vê-lo partir
respondia a fazendeira. Lá na corte pode mudar, corromper-se, como a tantos
outros tem sucedido.
— E um engano, excelentíssima dizia
o sacerdote. O homem na idade dele já necessita de mais um poucochinho de
liberdade; precisa ir habituando-se ao mundo, a ser enérgico, ter dinheiro na
carteira para não fazer figura triste, não competindo à minha amiga o
perguntar-lhe como, quando e onde gastou-o.
— Pois, meu reverendo, nem mesmo
dinheiro ele quer.
— Dê-lho sempre que há de achar
onde gastá-lo. Muitos, na idade dele têm casado e provado depois ser ótimos pais
de família.
— Casar? exclamou a
bondosa senhora caindo das nuvens, aos dezoito anos?
— E já não será um homem? Ah! Sra.
D. Jerônima, vossa excelência não conhece o mundo, não. O meio em que vive
tem-lhe dado uma certa simploriedade que é preciso por à margem.
Um rapaz na idade do nosso afilhado
não deve ter plena largueza, isso nunca; mas a mesma idade pede distrações, observação
e tino, do contrário andará sempre às apalpadelas.
Evita-se o perigo à proporção que se conhece o perigo. A saúde, requer certos
preceitos; mande-o, obrigue-o a sair, a fazer exercícios; de vez em quando
mudar de ares, mesmo de alimentos, conservando todavia à risca o que manda a higiene
moral e física, a que verá o rapaz robustecido e forte, como um sertanejo.
Dois meses depois, a rica
fazendeira D. Jerônima Teles instalava-se em uma boa casa na cidade.
***
A Olga, com os seus quatorze para
quinze anos, teve logo o seu professor de piano, de desenho e de francês, além
de uma mestra de bordados.
A menina, em pouco tempo, já
parecia outra. Adotara as maneiras elegantes da boa sociedade, ia às corridas, tinha
amigas, frequentava a Rua do Ouvidor, e morria por ir a qualquer espetáculo, no
que era contrariada pela tia; até que afinal, uma manhã, ao almoço, a
fazendeira, lendo o anúncio de uma revista nova, aconselhou o sobrinho a ir.
Ele, não obstante estar na cidade, era
ainda retraído, acanhado, fugindo dos colegas e das moças, sem fumar, e
dormindo diariamente à sesta, dizendo só pensar na prima.
— Tens jeito para leviana, Olga, dizia
o moço à órfã. Deixa-te estar que se me aborrecer disto, tu voltarás para a
fazenda. Não quero que, tornando-te minha esposa, mais tarde sejas coquette e só gostes de festas e de
vestidos novos, como se fosses uma vitrina da Rua do Ouvidor.
— Antes assim, do que ser um urso
como tu, respondia ela rindo-se.
Instado a obedecer, o estudante de
preparatórios lá foi comprar quase às horas do espetáculo, a cadeira para fazer
a vontade à madrinha.
O teatrinho era pequeno para conter
o grande número de espectadores. As cadeiras estavam todas compradas. Com as
pessoas que entravam, o Maneco tomou igualmente assento em uma de primeira
classe, quando viu que tinha por vizinhas a mulheres vestidas espaventosamente,
abanando-se sem método, umas criaturas que a má sorte as conduziu ao desprezo
dos entes sensatos, mas que sendo o teatro o lugar próprio da exibição, elas afrontavam
a moralidade publica da forma a mais indecorosa, a mais repugnante até.
Ele, ainda não pervertido nos foyers dos teatros, estava vexado, vendo
famílias sentadas junto de semelhantes entes, forçadas portanto, a ouvir frases
indecorosas. Desconcertado, ficou rubro de indignação pelo que via, , e, posto
que julgasse que o melhor é não se ligar importância ao que se vê, desde que
não se possa coibir ou repelir a afronta, sério, olhava para o povo que entrava
descuidado, tomando seus lugares, de chapéu na cabeça, tão senhor de si, como
se estivesse em sua casa, abanando-se, saudando-se, tudo produzindo um ruído
surdo, prenuncio de hilaridade, que, sob os primeiros sons da orquestra, aplacou
um pouco, mas não cessou de todo. A profusão das luzes feria-lhe a vista; o
perfume reunido de esquisitos extratos, aquelas cabecinhas travessas lá nos
camarotes, as mãos enluvadas a se abanarem ou a sustentarem binóculos brancos e
negros, entonteciam o moço. Aquela novidade encantava-o e aborrecia-o também, fazendo-o
ficar quase boquiaberto, atônito, esquecendo que fazia uma figura ridícula.
Quando subiu o pano, porém, o nosso herde era todo atenção.
Ao acabar o primeiro ato, sentindo
os olhos arderem, maquinalmente bocejou.
A plateia ficara deserta, dele
conservava-se sentado, indeciso, acanhado como um colegial. Olhando para traz,
viu o jardim iluminado, com as mesinhas dispersas, onde grupos de homens e
mulheres tomavam refrescos e gelados.
Quando resolutamente ergueu-se, ouviu
a campainha tocando a chamada; os músicos tomarem lugar junto aos seus
instrumentos, e principiarem uma sinfonia.
O segundo ato começou ruidoso, com
o tango final, dançado livre e sem constrangimento, o que fê-lo muitas vezes
virar a cabeça, ainda por um certo receio que, o não constrangia a mostrar-se
de semblante aparvalhado, desviando os olhos, admirado dever como se tinha a
coragem de escrever somente com o intuito de produzir hilaridade e galhofa.
As dançarinas, animadas pelas
palmas e bravos, entusiasmadas, dançavam, sendo muitas vezes a arte coreográfica
sacrificada ao exagero dos partidários que à porfia queriam ver sobressair as
fadas desse olimpo provisório.
— Como deve esta gente cansar!...
murmurou ele, limpando o suor da testa, servindo-se do lenço como leque.
No entretanto, os buquês e as
flores soltas caíam em chuva sobre o palco, seguindo-se a este mais dois atos, sempre
escritos com espírito, porém com tal liberdade, que, a não ser a índole mal
educada dos frequentadores que desprezam os dramas sérios e morais em proveito
dos cancãs dançados desbragadamente, arredaria em favor da moral a família, e
todo aquele que pensa de certa forma, mostrando assim que, se bem que a civilização
esteja de acordo com o que desgraçadamente se observa entre nós, contudo o bom
senso manda que deixe-se o vicio ao vicio, e a moral à moral.
A não pensar-se assim, é ser-se retrógrado.
Ao terminar o espetáculo, uma chuva
miúda, impertinente, retinha à porta do teatro a quem esperava os bondes. Aquele
que queria sair primeiro, acotovelava quem estivesse em frente, nessa impolidez
permitida em tais ocasiões.
Chuviscava.
Maneco, que igualmente esperava sair,
sentiu como que tomarem-lhe o braço, o que fê-lo ficar boquiaberto, surpreso, procurando
embalde quem tinha tido semelhante liberdade.
A custo podia romper o povo que se
aglomerava agora na entrada, esperando passar os bondes, com os chapéus de
chuva abertos.
Pôde enfim safar-se; ao chegar em
casa encontrou todos dormindo, mas esperando o criado, por ordem da boa D. Jerônima.
— No dia imediato, a tia e a prima
atrapalharam-no para discorrer tim-tim
por tim-tim do que houvera
presenciado!
— Dizem que é uma critica aos
acontecimentos do ano, não é? perguntou-lhe a Olga.
— É, é, mas para família não serve,
minha tia, disse ele, dirigindo-se à matrona.
— E lá não tinha gente séria, mocinhas
ou senhoras? perguntou ela.
— Tinha, e até muitas, porém...
— Pois, meu filho, eu quero ver se
é assim como afirmas; amanhã lá estarei, porque dizem que o demônio não é tão
feio como se pinta.
Com efeito, ela daí há dias deu-lhe
dinheiro para um camarote. A Olga, que morria por ver uma Revista, estava em um contentamento doido.
Os vestidos foram passados por
escrupuloso exame, resolvendo por fim escolher o que lhe fosse melhor.
A D. Jerônima, estava outra: já com
algumas relações, acompanhava à toda a parte a sobrinha e havia mudado mesmo
para com o afilhado; franqueava-lhe a bolsa, mandava-o passear, ao que respondia
ele gostar mais da casa e dos seus cômodos.
— Pareces mesmo um roceiro, dizia-lhe
a Olga desdenhosamente. Se não te divertires agora, quando velho é que o
quererás fazer, não é? Bem faço eu, que da Corte ninguém me tira. Além da titia
dizer que só irá para a fazenda quando tiver de ir para a Europa, eu, se quisesse,
nem lá na Piedade punha os pés. Tenho
tanta amiga que me oferece a casa!...
— Vai-te fiando n isso, respondeu o
Maneco estirando-se em um divã. Se te oferecem casa e amizade, é porque sabem
que és rica, do contrário nem olhariam para ti.
— Bolas!... respondeu a gentil
mocinha, dando-lhe com o dedo no nariz e indo sentar-se ao piano.
No dia imediato, às oito da noite
saíam de casa tia, sobrinha e primo, tomavam o bonde e a tempo chegaram ao teatro,
instalando-se no camarote.
Era a primeira vez que a fazendeira
via uma Revista, e ainda com os
requintes de dama educada à antiga, se bem que tudo lhe parecesse fantástico, bonito,
todavia com as faces inflamadas de pudor, retinha o olhar, disfarçando-o, mostrando-se
entretanto bem educada.
— Tiveste razão, disse ela ao
estudante; a peça é bonita, mas vexa a gente.
— E tudo quanto é Revista é assim? perguntou a Olga.
— Dizem que há piores até.
Vestida de voile creme, com fitas iguais, chapéu irmanado e um raminho de
violetas ao peito, a menina estava realmente feiticeira.
Naturalmente vaidosa, vestindo-se
na melhor modista, conhecia já o segredo de fazer a cintura fina, e o mais de acordo;
manejava com desenvoltura o leque de gaze cor de rosa seca, sorria, virando a
face onde pusera um sinal suposto que havia merecido acres censuras do moço
estudante, que prometeu não comprar-lhe mais artifícios.
No fim do segundo ato, as senhoras
ergueram-se, pedindo a moça ao primo que fosse ver-lhe umas balas. Ao trazer-lhas,
retirou-se para o jardim, que estava repleto de gente alegre de ambos os sexos.
O moço sentou-se à uma mesinha e
pediu cerveja.
Defronte, em um lugar vazio, viu sentar-se
igualmente uma pessoa desconhecida, que o fez corar, por ver que não autorizava
liberdades, muito menos levando a família, que seguramente o estaria
observando.
E se a Olga visse, ela que não
pedia licença para dizer-lhe frases picantes e espirituosas! Que vergonha!
Contendo-se, ergueu-se, e nos
intervalos não foi mais ao jardim, prometendo que de outra vez não traria a família
em semelhantes lugares.
***
Havia mais de um ano que já estavam
na cidade quando a órfã teve o primeiro pedido de casamento. A tia, tencionando
casá-la com Maneco, que agora era já chamado simplesmente
— o Manuelzinho, viu-se embaraçada,
em razão do quase compromisso que o mesmo tinha com a prima, posto que ainda
nada houvesse ao certo, mas ele desde pequeno que, gostava dela, até já falava
no futuro, e, se bem que a menina parecesse estar meio fria no assunto, contudo
resolveu consultá-la.
— Ela o que respondeu?
perguntou-lhe o estudante, procurando mostrar-se sereno.
— Que aceitava!
O ex-pretendente empalideceu; mas
depois de refletir, anuiu, dizendo que a prima fazia bem, que o partido era bom,
e... que talvez fosse até melhor para si.
— Ah! minha primeira ilusão!...
murmurou depois sozinho, a enxugar as lágrimas. O que farei? Eu, que tenho
vivido como um anacoreta, conservando-me sem vícios, somente por amor dela!...
Ah! mulheres!... Ah! convívio pútrido de uma sociedade banal, irrefletida!...
Ah! sociedade mal educada, pervertida e perniciosa, que a perverteste também!...
Ele, entre suspiros, deu curso de
novo ao pranto, emudecendo por fim.
Depois, ainda sob a influência da
paixão, tirou do bolso a fotografia última que a prima lhe dera longamente.
— Como está formosa!... Como o
seria depois, quando já mãe, com o semblante acentuadamente lindo, ar mais
grave, eu a visse tirar o seio moreno e túmido com esta castidade de esposa
pura, dando-o a ruborescer ao nosso anjinho, como dá-se um botão de rosa à noiva
estremecida, tomando-o ele, meu filho, o inocente, entre os lábios purpurinos e
angélicos!...
O moço guardou de novo o retrato, passeou
um pouco pela sala, e, em um gesto de decisão, murmurou ainda:
— Hei de esquecê-la! Sentir-me-ei
então homem, atirando-a ao desprezo!... Vou tentar aventuras que me repugnam, é
certo, mas que afinal são comuns à vida do acadêmico.
Nessa noite, a primeira, o sono
fugiu-lhe das pálpebras.
No dia imediato saiu e trouxe um
presente à prima. Era um elegante bracelete de safiras.
De então, a tia notou que ele não
parava em casa, que gastava sem conta, fumava, bebia, trazia companheiros que faziam
infernal barulho, contando muitas vezes até anedotas livres, enfim, que estava
mudado.
Indiferente, assistiu depois ao
casamento da Olga, continuando porém a ser cada vez mais estroina, transformando
a natureza, emagrecendo, se adoentando, tornando-se outro, enfim.
Uma pneumonia aguda, consequência
de um resfriamento, o prostrou, sendo preciso guardar o leito, por ficar quase
às portas da morte.
O médico recomendou-lhe que fugisse
da umidade, da chuva, do vinho, dos gelados, pois que uma repetição da mesma
enfermidade ser-lhe-ia talvez funesta.
A velha tia foi de uma dedicação
materna; chegando-lhe às mãos neste ínterim mais de uma cartinha de namoro e
mesmo até duvidosa, que ela queimava sem ler.
Por mais de uma vez o remorso afligiu
a fazendeira: — “Um rapaz deve ser criado para o que der e vier, murmurava ela;
eu fui quem o pôs assim...” e redobrava de cuidados, prometendo a si aumentar
os mesmos para com aquele a quem tanto amava, como só amaria a um filho, si o
tivesse...
***
Depois de ter experimentado as dores
do corpo, amortizando a dívida d'alma, o rapaz aborreceu a cidade e tornou à roça.
Os ares do campo reanimaram-no. Pondo então em revista as páginas do livro do
coração, viu que a cifra que o pusera em bancarrota com o raciocínio, havia
estampado na experiência a nota bancaria do aborrecimento, resultando desta soma,
o prejuízo da saúde, o prejuízo da moral e o prejuízo mesmo do coração.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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