7/03/2023

Na roça e na cidade (Conto), de Inês Sabino


 NA ROÇA E NA CIDADE
(À LYDIA BLATER PINHO)

 

Ele era um ingênuo ainda.

Natureza fraca e tímida, já aos dezoito anos, corava à menor palavra mais dura, fugia de ir à vila, onde haviam rapazes conhecidos, que zombavam do seu efeminado modo de viver, chamando-o de simplório, piegas, ingênuo e toleirão, com o que se não zangava, mas antes até sorria.

Lá mesmo, na fazenda, havia estudado uns preparatórios, e quando falavam em fazê-lo ir à cidade, essa ideia o não contentava.

Sua infância, tinha-na passado ora lá na propriedade rural, ora na chácara que a D. Jerônima, sua tia materna e madrinha, possuía na vila, criando-o como um verdadeiro enfant gâté, cheio de mimos, com companheiros escolhidos para os folguedos, nos quais tomava igualmente parte a Olga, órfã, como o rapaz, que travessíssima e bem desenvolvida, lá no pátio gramado da Piedade saltava como ninguém a corda e o arco, apostando carreiras, no que era disputada em desafio pelos companheiros, menos pelo Maneco, que achava feio uma mocinha dar-se à semelhante divertimento.

Havia pouco tempo que ele mudara-se para um quarto fora do corpo da casa, uma espécie de chalé, bem arejado, e confortável, porém habituado com a tia e a prima, muita vez ensinava a esta a tirar dos Jornais de modas, amostras de crochê e aniagem, cortava costura, cosia na máquina e até dormia ainda à sesta no colo da idosa senhora. O original viver do rapaz o punha fraco, anêmico, quase sem ação para reagir energicamente qualquer eventualidade imprevista. Os íntimos censuravam; o velho sacerdote, que o havia batizado aconselhava que o moço devia já por conta própria escolher qualquer carreira; a de engenharia, por exemplo, que garantia mais futuro.

— Não tenho animo de vê-lo partir respondia a fazendeira. Lá na corte pode mudar, corromper-se, como a tantos outros tem sucedido.

— E um engano, excelentíssima dizia o sacerdote. O homem na idade dele já necessita de mais um poucochinho de liberdade; precisa ir habituando-se ao mundo, a ser enérgico, ter dinheiro na carteira para não fazer figura triste, não competindo à minha amiga o perguntar-lhe como, quando e onde gastou-o.

— Pois, meu reverendo, nem mesmo dinheiro ele quer.

— Dê-lho sempre que há de achar onde gastá-lo. Muitos, na idade dele têm casado e provado depois ser ótimos pais de família.

Casar? exclamou a bondosa senhora caindo das nuvens, aos dezoito anos?

— E já não será um homem? Ah! Sra. D. Jerônima, vossa excelência não conhece o mundo, não. O meio em que vive tem-lhe dado uma certa simploriedade que é preciso por à margem.

Um rapaz na idade do nosso afilhado não deve ter plena largueza, isso nunca; mas a mesma idade pede distrações, observação e tino, do contrário andará  sempre às apalpadelas. Evita-se o perigo à proporção que se conhece o perigo. A saúde, requer certos preceitos; mande-o, obrigue-o a sair, a fazer exercícios; de vez em quando mudar de ares, mesmo de alimentos, conservando todavia à risca o que manda a higiene moral e física, a que verá o rapaz robustecido e forte, como um sertanejo.

Dois meses depois, a rica fazendeira D. Jerônima Teles instalava-se em uma boa casa na cidade.

***

A Olga, com os seus quatorze para quinze anos, teve logo o seu professor de piano, de desenho e de francês, além de uma mestra de bordados.

A menina, em pouco tempo, já parecia outra. Adotara as maneiras elegantes da boa sociedade, ia às corridas, tinha amigas, frequentava a Rua do Ouvidor, e morria por ir a qualquer espetáculo, no que era contrariada pela tia; até que afinal, uma manhã, ao almoço, a fazendeira, lendo o anúncio de uma revista nova, aconselhou o sobrinho a ir.

Ele, não obstante estar na cidade, era ainda retraído, acanhado, fugindo dos colegas e das moças, sem fumar, e dormindo diariamente à sesta, dizendo só pensar na prima.

— Tens jeito para leviana, Olga, dizia o moço à órfã. Deixa-te estar que se me aborrecer disto, tu voltarás para a fazenda. Não quero que, tornando-te minha esposa, mais tarde sejas coquette e só gostes de festas e de vestidos novos, como se fosses uma vitrina da Rua do Ouvidor.

— Antes assim, do que ser um urso como tu, respondia ela rindo-se.

Instado a obedecer, o estudante de preparatórios lá foi comprar quase às horas do espetáculo, a cadeira para fazer a vontade à madrinha.

O teatrinho era pequeno para conter o grande número de espectadores. As cadeiras estavam todas compradas. Com as pessoas que entravam, o Maneco tomou igualmente assento em uma de primeira classe, quando viu que tinha por vizinhas a mulheres vestidas espaventosamente, abanando-se sem método, umas criaturas que a má sorte as conduziu ao desprezo dos entes sensatos, mas que sendo o teatro o lugar próprio da exibição, elas afrontavam a moralidade publica da forma a mais indecorosa, a mais repugnante até.

Ele, ainda não pervertido nos foyers dos teatros, estava vexado, vendo famílias sentadas junto de semelhantes entes, forçadas portanto, a ouvir frases indecorosas. Desconcertado, ficou rubro de indignação pelo que via, , e, posto que julgasse que o melhor é não se ligar importância ao que se vê, desde que não se possa coibir ou repelir a afronta, sério, olhava para o povo que entrava descuidado, tomando seus lugares, de chapéu na cabeça, tão senhor de si, como se estivesse em sua casa, abanando-se, saudando-se, tudo produzindo um ruído surdo, prenuncio de hilaridade, que, sob os primeiros sons da orquestra, aplacou um pouco, mas não cessou de todo. A profusão das luzes feria-lhe a vista; o perfume reunido de esquisitos extratos, aquelas cabecinhas travessas lá nos camarotes, as mãos enluvadas a se abanarem ou a sustentarem binóculos brancos e negros, entonteciam o moço. Aquela novidade encantava-o e aborrecia-o também, fazendo-o ficar quase boquiaberto, atônito, esquecendo que fazia uma figura ridícula. Quando subiu o pano, porém, o nosso herde era todo atenção.

Ao acabar o primeiro ato, sentindo os olhos arderem, maquinalmente bocejou.

A plateia ficara deserta, dele conservava-se sentado, indeciso, acanhado como um colegial. Olhando para traz, viu o jardim iluminado, com as mesinhas dispersas, onde grupos de homens e mulheres tomavam refrescos e gelados.

Quando resolutamente ergueu-se, ouviu a campainha tocando a chamada; os músicos tomarem lugar junto aos seus instrumentos, e principiarem uma sinfonia.

O segundo ato começou ruidoso, com o tango final, dançado livre e sem constrangimento, o que fê-lo muitas vezes virar a cabeça, ainda por um certo receio que, o não constrangia a mostrar-se de semblante aparvalhado, desviando os olhos, admirado dever como se tinha a coragem de escrever somente com o intuito de produzir hilaridade e galhofa.

As dançarinas, animadas pelas palmas e bravos, entusiasmadas, dançavam, sendo muitas vezes a arte coreográfica sacrificada ao exagero dos partidários que à porfia queriam ver sobressair as fadas desse olimpo provisório.

— Como deve esta gente cansar!... murmurou ele, limpando o suor da testa, servindo-se do lenço como leque.

No entretanto, os buquês e as flores soltas caíam em chuva sobre o palco, seguindo-se a este mais dois atos, sempre escritos com espírito, porém com tal liberdade, que, a não ser a índole mal educada dos frequentadores que desprezam os dramas sérios e morais em proveito dos cancãs dançados desbragadamente, arredaria em favor da moral a família, e todo aquele que pensa de certa forma, mostrando assim que, se bem que a civilização esteja de acordo com o que desgraçadamente se observa entre nós, contudo o bom senso manda que deixe-se o vicio ao vicio, e a moral à moral.

A não pensar-se assim, é ser-se retrógrado.

Ao terminar o espetáculo, uma chuva miúda, impertinente, retinha à porta do teatro a quem esperava os bondes. Aquele que queria sair primeiro, acotovelava quem estivesse em frente, nessa impolidez permitida em tais ocasiões.

Chuviscava.

Maneco, que igualmente esperava sair, sentiu como que tomarem-lhe o braço, o que fê-lo ficar boquiaberto, surpreso, procurando embalde quem tinha tido semelhante liberdade.

A custo podia romper o povo que se aglomerava agora na entrada, esperando passar os bondes, com os chapéus de chuva abertos.

Pôde enfim safar-se; ao chegar em casa encontrou todos dormindo, mas esperando o criado, por ordem da boa D. Jerônima.

— No dia imediato, a tia e a prima atrapalharam-no para discorrer tim-tim por tim-tim do que houvera presenciado!

— Dizem que é uma critica aos acontecimentos do ano, não é? perguntou-lhe a Olga.

— É, é, mas para família não serve, minha tia, disse ele, dirigindo-se à matrona.

— E lá não tinha gente séria, mocinhas ou senhoras? perguntou ela.

— Tinha, e até muitas, porém...

— Pois, meu filho, eu quero ver se é assim como afirmas; amanhã lá estarei, porque dizem que o demônio não é tão feio como se pinta.

Com efeito, ela daí há dias deu-lhe dinheiro para um camarote. A Olga, que morria por ver uma Revista, estava em um contentamento doido.

Os vestidos foram passados por escrupuloso exame, resolvendo por fim escolher o que lhe fosse melhor.

A D. Jerônima, estava outra: já com algumas relações, acompanhava à toda a parte a sobrinha e havia mudado mesmo para com o afilhado; franqueava-lhe a bolsa, mandava-o passear, ao que respondia ele gostar mais da casa e dos seus cômodos.

— Pareces mesmo um roceiro, dizia-lhe a Olga desdenhosamente. Se não te divertires agora, quando velho é que o quererás fazer, não é? Bem faço eu, que da Corte ninguém me tira. Além da titia dizer que só irá para a fazenda quando tiver de ir para a Europa, eu, se quisesse, nem lá na Piedade punha os pés. Tenho tanta amiga que me oferece a casa!...

— Vai-te fiando n isso, respondeu o Maneco estirando-se em um divã. Se te oferecem casa e amizade, é porque sabem que és rica, do contrário nem olhariam para ti.

— Bolas!... respondeu a gentil mocinha, dando-lhe com o dedo no nariz e indo sentar-se ao piano.

No dia imediato, às oito da noite saíam de casa tia, sobrinha e primo, tomavam o bonde e a tempo chegaram ao teatro, instalando-se no camarote.

Era a primeira vez que a fazendeira via uma Revista, e ainda com os requintes de dama educada à antiga, se bem que tudo lhe parecesse fantástico, bonito, todavia com as faces inflamadas de pudor, retinha o olhar, disfarçando-o, mostrando-se entretanto bem educada.

— Tiveste razão, disse ela ao estudante; a peça é bonita, mas vexa a gente.

— E tudo quanto é Revista é assim? perguntou a Olga.

— Dizem que há piores até.

Vestida de voile creme, com fitas iguais, chapéu irmanado e um raminho de violetas ao peito, a menina estava realmente feiticeira.

Naturalmente vaidosa, vestindo-se na melhor modista, conhecia já o segredo de fazer a cintura fina, e o mais de acordo; manejava com desenvoltura o leque de gaze cor de rosa seca, sorria, virando a face onde pusera um sinal suposto que havia merecido acres censuras do moço estudante, que prometeu não comprar-lhe mais artifícios.

No fim do segundo ato, as senhoras ergueram-se, pedindo a moça ao primo que fosse ver-lhe umas balas. Ao trazer-lhas, retirou-se para o jardim, que estava repleto de gente alegre de ambos os sexos.

O moço sentou-se à uma mesinha e pediu cerveja.

Defronte, em um lugar vazio, viu sentar-se igualmente uma pessoa desconhecida, que o fez corar, por ver que não autorizava liberdades, muito menos levando a família, que seguramente o estaria observando.

E se a Olga visse, ela que não pedia licença para dizer-lhe frases picantes e espirituosas! Que vergonha!

Contendo-se, ergueu-se, e nos intervalos não foi mais ao jardim, prometendo que de outra vez não traria a família em semelhantes lugares.

***

Havia mais de um ano que já estavam na cidade quando a órfã teve o primeiro pedido de casamento. A tia, tencionando casá-la com Maneco, que agora era já chamado simplesmente

— o Manuelzinho, viu-se embaraçada, em razão do quase compromisso que o mesmo tinha com a prima, posto que ainda nada houvesse ao certo, mas ele desde pequeno que, gostava dela, até já falava no futuro, e, se bem que a menina parecesse estar meio fria no assunto, contudo resolveu consultá-la.

— Ela o que respondeu? perguntou-lhe o estudante, procurando mostrar-se sereno.

— Que aceitava!

O ex-pretendente empalideceu; mas depois de refletir, anuiu, dizendo que a prima fazia bem, que o partido era bom, e... que talvez fosse até melhor para si.

— Ah! minha primeira ilusão!... murmurou depois sozinho, a enxugar as lágrimas. O que farei? Eu, que tenho vivido como um anacoreta, conservando-me sem vícios, somente por amor dela!... Ah! mulheres!... Ah! convívio pútrido de uma sociedade banal, irrefletida!... Ah! sociedade mal educada, pervertida e perniciosa, que a perverteste também!...

Ele, entre suspiros, deu curso de novo ao pranto, emudecendo por fim.

Depois, ainda sob a influência da paixão, tirou do bolso a fotografia última que a prima lhe dera longamente.

— Como está formosa!... Como o seria depois, quando já mãe, com o semblante acentuadamente lindo, ar mais grave, eu a visse tirar o seio moreno e túmido com esta castidade de esposa pura, dando-o a ruborescer ao nosso anjinho, como dá-se um botão de rosa à noiva estremecida, tomando-o ele, meu filho, o inocente, entre os lábios purpurinos e angélicos!...

O moço guardou de novo o retrato, passeou um pouco pela sala, e, em um gesto de decisão, murmurou ainda:

— Hei de esquecê-la! Sentir-me-ei então homem, atirando-a ao desprezo!... Vou tentar aventuras que me repugnam, é certo, mas que afinal são comuns à vida do acadêmico.

Nessa noite, a primeira, o sono fugiu-lhe das pálpebras.

No dia imediato saiu e trouxe um presente à prima. Era um elegante bracelete de safiras.

De então, a tia notou que ele não parava em casa, que gastava sem conta, fumava, bebia, trazia companheiros que faziam infernal barulho, contando muitas vezes até anedotas livres, enfim, que estava mudado.

Indiferente, assistiu depois ao casamento da Olga, continuando porém a ser cada vez mais estroina, transformando a natureza, emagrecendo, se adoentando, tornando-se outro, enfim.

Uma pneumonia aguda, consequência de um resfriamento, o prostrou, sendo preciso guardar o leito, por ficar quase às portas da morte.

O médico recomendou-lhe que fugisse da umidade, da chuva, do vinho, dos gelados, pois que uma repetição da mesma enfermidade ser-lhe-ia talvez funesta.

A velha tia foi de uma dedicação materna; chegando-lhe às mãos neste ínterim mais de uma cartinha de namoro e mesmo até duvidosa, que ela queimava sem ler.

Por mais de uma vez o remorso afligiu a fazendeira: — “Um rapaz deve ser criado para o que der e vier, murmurava ela; eu fui quem o pôs assim...” e redobrava de cuidados, prometendo a si aumentar os mesmos para com aquele a quem tanto amava, como só amaria a um filho, si o tivesse...

***

Depois de ter experimentado as dores do corpo, amortizando a dívida d'alma, o rapaz aborreceu a cidade e tornou à roça. Os ares do campo reanimaram-no. Pondo então em revista as páginas do livro do coração, viu que a cifra que o pusera em bancarrota com o raciocínio, havia estampado na experiência a nota bancaria do aborrecimento, resultando desta soma, o prejuízo da saúde, o prejuízo da moral e o prejuízo mesmo do coração.


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...