7/05/2023

A órfã (Conto), de Inês Sabino


A ÓRFÃ
(A REVOCATA DE MELLO)

Sabes o que é ser pobre, Maria? Sabes o que seja viver-se economicamente, com uns simples duzentos mil reis mensais, contando vintém por vintém, despesa por despesa, comprando por quarenta, o que vale cem réis, regularizando os gastos a preço fixo diário, tendo receio do dia de amanhã? Sabes tu por ventura, o que seja constituir-se família fiado nos próprios esforços, sem ter d’onde herdar, nem muito menos olhar-se para um pecúlio posto na Caixa Econômica nem ainda menos em Letras do Banco com o “Pague-se ao portador”? Terás coragem de deixar passar um vestido moderno, vindo como prova de bom gosto, e disputado pelas moças do tem que presumem vestir bem; e mais um toucado exposto na vitrina, sem teres vontade de o possuir imediatamente, embora comprado a prazo que prolonga-se, recebendo-se depois a conta do mesmo com ameaças judiciais?

Tudo isto, minha querida, deve ser metodicamente examinado, refletido e combinado desde agora. O casamento, depois de realizado, é um encargo oneroso para quem não quer ver-se em contingências precárias, vindo em seguida o arrependimento, o fastio, que por seu turno trazem a indiferença, e daí... mas não: não continuo; és muito chã, muito sensata, muito boa e muito virtuosa para te passar por um instante ideias impróprias de ti e dos teus sentimentos... Coras? Imagina, pois, que, quando o homem ama a uma mulher com quem quer ligar o seu destino, deve ao menos juntar ao amor, a sensatez, porque esse estado de deleite da fantasia, criado pela subjetividade de um afeto nascido inconsciente, e preciso ao coração não poderá continuar da mesma forma, se não for escudado num outro sentimento mais duradouro:  — a amizade, que, por seu turno, faz-nos compartilhar em comum as dores, as alegrias, as vicissitudes, as represálias, tudo abraçado à moral, à dignidade, tendo por fiador:  — o coração, e como juros de juros:  — o dever.

Isto dizia numa modesta sala de visitas, o Henrique Carneiro, empregado na Tesouraria da Fazenda, em casa do futuro sogro o Sr. Rosado da Rocha, primeiro oficial da mesma repartição, e junto a uma futura cunhada, sendo o projetado consórcio levado muito a gosto da família inteira que só conhecia um ponto negro no porvir dos noivos; o de ter ele além da mãe, mais três irmãs solteiras. A família do Sr. Rosado não era muito crescida, ele apenas tinha duas filhas, a Maria, noiva do empregado do Tesouro, que já conhecemos, e a Ismênia, noiva também, mas de um inglês excêntrico e bastante endinheirado que no superlativo da paixão que sentia por ela, tornou-se até Católico Romano, de protestante que era, isso com suma satisfação da menina que, bastante religiosa, não queria, a bem do encargo da sua consciência, unir-se a um homem que depois preferisse o Templo nu dos Calvinistas ao elegante e cheios de adornos dos cristãos.

Era engraçado de ver-se Mr.William Bwxley em plena musculatura quase gaulesa com longas suíças louras e maneiras corteses, embora meio extravagantes, a falar em linguagem só entendida pela pet, e a fazer declarações no idioma de Camões, onde entre outras frases dizia ele que: — “Mim quer você, minha peito, e você deve querer mim, tal como sou inteiro, eu mesmo.”

A cerveja andava a rodo nos dias em que o inglês ia visitar a moça a quem fez bons presentes, oferecendo-lhe no dia do consórcio não só o ramalhete de cravos brancos como também o landau para conduzi-la à matriz. Casada alguns dias antes da irmã, a mulher do empregado público ficou deveras admirada ao ver Mr. Bwxley mandar-lhe um rico corte de seda para assistir à sua grande festa.

O ato, foi mais pomposo do que o da filha mais nova do Sr. Rosado, que teve de chamar professor de inglês para esta, a quem o excêntrico gentleman ensinava pronuncia mais correta, dando-lhe além das prendas, um seguro de vida vantajoso na Life Insurance Company. Finda a cerimônia religiosa, ao partirem os desposados para sua casa depois do jantar, choveu sobre a elegante carruagem uma nuvem de “old shoes, ” e alguns punhados de confeitos, como prenuncio de prosperidades.

***

A nova família de Maria à exceção de uma das cunhadas, não recebeu a moça com bons olhos. Elias, com o casamento do irmão, tinham de granjear por si algum trabalho para vestirem-se.

A sogra, por delicadeza da nora para com ela, ficou na gerência da casa, pondo e dispondo tudo ao seu belo prazer, consultando ao principio a recém-casada, depois já com uma certa autoridade censurando o filho quando via-o trazer à esposa alguma modesta joia ou presente de certa importância.

Afora a cunhada que a estimava, pouco a pouco foi se rasgando o véu que encobria o despeito que às outras produziam, a ninharia que agora lhes tocava, e a muita energia necessária para conterem-se todas as fezes que guardavam desde há muito, solapando-lhes a paciência e o bom humor.

No entanto, ela, a vitima, laboriosa, econômica e cortês, cerrava os olhos a tudo quanto via, desculpando às cunhadas e à mãe de seu marido, sendo o gênio bom para com o esposo que continha-se e calava-se, quando um entezinho puro como os arcanjos e louro como uma manhã de primavera, veio fazer a mãe sorrir e sentir o coração mais aumentado de volume de ternura ao beijar a pequenina que sorria inconsciente ao receber o osculo leve dos purpurinos lábios maternos.

Uma criancinha nestas condições deveria ser o Messias que trouxesse para aquela gente a paz, com o sorriso casto, fazendo um coro harmônico de afeto entre os beijos disputados e o carinho repartido.

A jovem mãe, com o semblante simpático e expressivo junto ao berço, fazia por sua mão os vestidinhos que ela, a Bebe, deveria usar quando tivesse de deixar as faixas dos primeiros mês São Toda pudores, tomava a filhinha para amamentá-la, depois dava-lhe a farinha láctea na chupeta, e à noite erguia-se para aquecer o leite no espírito de vinho, com essa paciência celeste só própria do amor de mãe. Depois, brandamente, ao deitar a criancinha beijava-a quase sem tocar-lhe a face, adormecendo ao lado do esposo no sono calmo de quem cumpre o que lhe ditam o amor e o dever.

Uma manhã, a família do oficial da tesouraria foi passar com a filha algumas horas. Como pessoas de juízo, aconselharam à jovem que desculpasse tudo, porque aquilo passaria com o tempo, que é o verdadeiro mestre que se incumbe por si, de premiar a virtude e castigar o vício.

Todos reunidos na sala de jantar conversavam sobre diversos assuntos esperando o almoço. Bebê no colo do pai, sorria às festas que fazia-lhe a avó materna; ele, a embalar a perna, obrigava a menina satisfeita, a sacudir os bracinhos, procurando articular sons que eram desprendidos entre os ditongos ão, am em, um, ei, oi, quando ao ver a jovem mãe que vinha trazer-lhe na chupeta o quotidiano alimento, fazendo esforço, quase a arrancar-se dos braços paternos, exclamou claramente em duas silabas nunca então pronunciadas, a palavra: ma-mã. C. L.

Maria estacou; pálida, ofegante, trêmula, extasiada, nervosa, nessa agitação sem igual onde os direitos maternos reivindicam os seus títulos. Caiu-lhe das mãos o invólucro que se desfez em mil pedaços derramando-se o líquido ainda morno, que entornado, sujou o assoalho.

Tomar a filhinha nos braços, cobri-la de beijos, foi obra de um minuto. Todos, até mesmo as cunhadas rebeldes, beijaram a inocente; o Henrique, deveras emocionado, mostrou nos olhos negros uma nuvem de pranto, êmulo do prazer; a avó, mãe da Ismênia, cerrou ao peito o frágil entezinho que era sua filha duas vezes, e a quem aquela palavra mãe, fez estremecer recordando o passado que apresentavase-lhe encarnado na netinha, a filha, que agora também mãe, sentia igualmente o que sentira ela, na época da sua primeira mocidade.

A D. Lauriana, mãe do dono da casa, foi a única que conservou uma nota de tédio à comum alegria da família. O filho pressentiu-o, e, a uma censura fora de tempo sobre o assunto, ele cortês, disse-lhe que vexava-se de ver o quase abandono que ela fazia da criança, sua afilhada. Sem poder então conter-se, a mãe do empregado público discorreu largamente sobre a questão, resultando haver entre o pai da moça e a mãe do genro, uma meia dúzia de frases explicativas assim com modo de decidida arenga, dando como fim a tudo o retirar-se Maria para o lar paterno naquela mesma hora, rompendo-se portanto relações, mas, comprometendo-se o pai da inocente, culpada de todo o aranzel, em dar parte do ordenado à família que deixava.

A sogra de Maria respirou. Como verdadeira sogra, no dia em que viu partir para sempre os moveis do quarto da jovem senhora e a bagagem da mesma, fazendo sacrifício, foi com as filhas à noite ao espetáculo.

***

Voltando a morar com seus pais, nem por isso ela mudou. Passados alguns meses, sendo pelo Henrique pedido uma remoção por precisar mudar de clima, os dois esposos longe da família e da terra natal, na modéstia da sua posição, souberam captar simpatias, souberam angariar amigos, souberam tornar-se queridos, 1 ^ ao passo que a D. Lauriana, cada vez mais insuportável, rabugenta, com dois genros, geniosos também, desses que não admitem conselhos nem pareceres, só por um dever a aturavam. Ela, arrependida, procurou então reconciliar-se com o filho que, de braços abertos, a receberia se não fosse o seu mau estado de saúde. O clima úmido e irregular do Rio, obrigava-o a voltar à Província quase sem recursos, fiado agora na vontade de ferro da Maria que, decidida a ajudá-lo, trabalhava lecionando.

Na harmonia de espírito em que vivia com o marido, era natural o interesse que agora ele lhe despertava, e como a filha, já com os seus oito anos, estivesse adiantada, ela, sem contudo abandonar todos os cuidados que a pequenina requeria, saía a lecionar, comprando com o dinheiro adquirido, já uma especialidade para o doente, já uma roupinha nova para a criança, nessa intima satisfação de quem ama e é amado, e de quem procura prolongar a existência dos que lhe são caros, por intermédio de seus próprios esforços.

Um mal porém nunca vem só. Resignado, mas atormentado por uma consumpção pulmonar, ele, fraco, dava lições à menina, quando de repente expirou sem ter Maria a seu lado.

A dor da viúva foi enorme, intraduzível, porém calma, sem prolongados ais, nem aflitivos gritos. O ataúde partiu, mas a miséria ficou, e após o espanto que produz a morte, após o torpor em que condensava-se a alma, Maria olhou em roda... Uma órfã, pedia a ela, mãe, mais sacrifícios, mais trabalho, mais insônias, mais atividade, e a conservação da vida no estimulo preciso à saúde, que, com a doença, a querer tomar cada qual o quinhão que lhe pertencia, lutaram, vindo o esfalfar das forças fazer com que a pobre senhora se resolvesse a tomar discípulas externas na sua própria casa.

Metodizando a economia vital, Maria, já bem doente e cansada, uns bons três anos depois, ainda no seu papel de professora, mal sustinha-se em pé.

A menina tomara a seu cargo as discípulas pequenas para ensinar-lhes os primeiros rudimentos. Sim, com que paciência, com que graça a pobrezinha corrigia aquelas da sua idade, aprendendo, ao passo que ensinava?

Já sem poder erguer-se do leito, com uma substituta, a professora levantou-se uma tarde dizendo sentir-se melhor. Como o marido, ela morreria da mesma moléstia, teria o mesmo fim, porque o contágio fora inevitável, previsto quase.

Passeou com passos firmes pelo aposento, comeu melhor, conversou, e riu-se muito; depois, já pela noite, mostrou desejos de deitar-se, pedindo para darem-lhe qualquer alimento, o qual só obrigada tomava sempre.

Bebê, transformada em enfermeira, foi buscar-lhe um caldo que foi bebido avidamente.

— Vou ver se durmo um pouco, meu anjo. A noite resfria; preciso já deitar-me.

Convenientemente agasalhada, deu como de costume o beijo na criança que deitou-se ao lado da enferma, acordando apenas no dia imediato. Seriam nove horas da manhã, e de um pulo ela pôs-se de pé.

— Como dorme bem!.. murmurou ao ver que a desditosa tísica, calma, nem se movia; como depois ao apalpar-lhe a testa sentisse que estava fria, conchegou-lhe mais os cobertores, receando despertar-lhe o sono. Já vestida, pé ante pé, saiu do aposento indo em seguida ao almoço tomar conta das suas companheirazinhas que a aguardavam.

E a faina do dia começou. As vozes infantis reunidas em coro davam as lições marcadas.

— Agora vou ver a mamã, disse a professorinha à criançada. Com efeito, dirigindo-se ao quarto, viu que Maria ainda dormia.

— Vou despertá-la com um beijo, murmurou. Sem querer, porém, ao acordá-la recuou, vendo que não acudia ao seu chamado. Beijando-a então mais demoradamente foi tal a impressão do frio que sentiu, que estremeceu contra a vontade.

Osculou ainda assim os lábios, que agora lívidos, não lhe corresponderam ao amoroso tato.... porém... para certificar-se se dormiria ou não, ergueu-lhe as pálpebras, onde, em vez daquele olhar casto, enternecido, cheio de bondade e de doçura, viu sobre a pupila azul um véu esbranquiçado. Pressou-lhe as mãos; estas, rígidas, não lhe apertaram os dedos; chamou-a aflita, já em alta voz, mas ninguém respondeu ao seu apelo; a chorar, com os olhos meio espantados, sacudiu o corpo com força, nervosamente, porém ele, duro na imobilidade de cadáver, conservou-se firme; então ela, a menina, que sabia existir a morte porque tinha visto a seu pai assim, frio, rijo, marmóreo, e imóvel, . viu que alguma coisa de anormal passava-se com sua mãe. Com a estupefação desenhada no semblante, com os olhos prestes a saírem-lhe das órbitas, recuou sem querer; os lábios tremeram; gotas de suor banharam-lhe a fronte; um arrepio de medo agitou-lhe o corpo; muda, inconsciente, sem mais fitar o cadáver, precipitou-se em uma carreira vertiginosa, indo desmaiar no colo da adjunta da falecida que, adivinhando o que se dera, correu ao quarto, onde, de Maria Carneiro, restava apenas a matéria que iria em poucas horas ser o pasto, de milhões de vermes roedores, sedentos da carne dos seus iguais, verdadeiros antropófagos, filhos de uma tribo medonha e lúgubre, que por infiltar-nos seu peçonhento vírus, torna-se mister cerrar sobre eles a álgida pedra dos sepulcros!

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Mr. Bwxley, tornando à Inglaterra com sua mulher, deu-lhe na mania de viajar; tanto  que só de longe em longe a falecida Maria recebia carta do spleenético cunhado. Agora porém, na febre das viagens em que se absorvia o gentleman, sem mais noticias da irmã de sua mulher cuja morte ignorava, voltou ao Brasil.

A órfã, tomada sob a proteção da amiga que substituiu a mãe nas lides escolares, vivia pobremente, tencionando frequentar mais tarde a Escola Normal afim de obter por essa forma um meio certo de vida.

Entretanto, chegavam em um vapor da Austrália Mr. e Mrs. Wiliam Bwxley que anunciaram, procurando por esta forma a menina que lhes foi entregue pela boa senhora.

Ali riglit! exclamou fleumaticamente o inglês; ela será minha filha, herdará a minha fortuna, e me acompanhará nas minhas viagens.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023. 

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