A ÓRFÃ
(A REVOCATA DE MELLO)
Tudo isto, minha querida, deve ser
metodicamente examinado, refletido e combinado desde agora. O casamento, depois
de realizado, é um encargo oneroso para quem não quer ver-se em contingências precárias,
vindo em seguida o arrependimento, o fastio, que por seu turno trazem a indiferença,
e daí... mas não: não continuo; és muito chã, muito sensata, muito boa e muito virtuosa
para te passar por um instante ideias impróprias de ti e dos teus
sentimentos... Coras? Imagina, pois, que, quando o homem ama a uma mulher com
quem quer ligar o seu destino, deve ao menos juntar ao amor, a sensatez, porque
esse estado de deleite da fantasia, criado pela subjetividade de um afeto
nascido inconsciente, e preciso ao coração não poderá continuar da mesma forma,
se não for escudado num outro sentimento mais duradouro: — a amizade, que, por seu turno, faz-nos
compartilhar em comum as dores, as alegrias, as vicissitudes, as represálias, tudo
abraçado à moral, à dignidade, tendo por fiador: — o coração, e como juros de juros: — o dever.
Isto dizia numa modesta sala de
visitas, o Henrique Carneiro, empregado na Tesouraria da Fazenda, em casa do
futuro sogro o Sr. Rosado da Rocha, primeiro oficial da mesma repartição, e
junto a uma futura cunhada, sendo o projetado consórcio levado muito a gosto da
família inteira que só conhecia um ponto negro no porvir dos noivos; o de ter ele
além da mãe, mais três irmãs solteiras. A família do Sr. Rosado não era muito
crescida, ele apenas tinha duas filhas, a Maria, noiva do empregado do Tesouro,
que já conhecemos, e a Ismênia, noiva também, mas de um inglês excêntrico e
bastante endinheirado que no superlativo da paixão que sentia por ela, tornou-se
até Católico Romano, de protestante que era, isso com suma satisfação da menina
que, bastante religiosa, não queria, a bem do encargo da sua consciência, unir-se
a um homem que depois preferisse o Templo nu dos Calvinistas ao elegante e
cheios de adornos dos cristãos.
Era engraçado de ver-se Mr.William
Bwxley em plena musculatura quase gaulesa com longas suíças louras e maneiras
corteses, embora meio extravagantes, a falar em linguagem só entendida pela pet, e a fazer declarações no idioma de
Camões, onde entre outras frases dizia ele que: — “Mim quer você, minha peito, e
você deve querer mim, tal como sou inteiro, eu mesmo.”
A cerveja andava a rodo nos dias em
que o inglês ia visitar a moça a quem fez bons presentes, oferecendo-lhe no dia
do consórcio não só o ramalhete de cravos brancos como também o landau para conduzi-la à matriz. Casada
alguns dias antes da irmã, a mulher do empregado público ficou deveras admirada
ao ver Mr. Bwxley mandar-lhe um rico corte de seda para assistir à sua grande
festa.
O ato, foi mais pomposo do que o da
filha mais nova do Sr. Rosado, que teve de chamar professor de inglês para esta,
a quem o excêntrico gentleman ensinava pronuncia mais correta, dando-lhe além
das prendas, um seguro de vida vantajoso na Life
Insurance Company. Finda a cerimônia religiosa, ao partirem os desposados
para sua casa depois do jantar, choveu sobre a elegante carruagem uma nuvem de “old
shoes, ” e alguns punhados de confeitos, como prenuncio de prosperidades.
***
A nova família de Maria à exceção
de uma das cunhadas, não recebeu a moça com bons olhos. Elias, com o casamento
do irmão, tinham de granjear por si algum trabalho para vestirem-se.
A sogra, por delicadeza da nora
para com ela, ficou na gerência da casa, pondo e dispondo tudo ao seu belo
prazer, consultando ao principio a recém-casada, depois já com uma certa
autoridade censurando o filho quando via-o trazer à esposa alguma modesta joia
ou presente de certa importância.
Afora a cunhada que a estimava, pouco
a pouco foi se rasgando o véu que encobria o despeito que às outras produziam, a
ninharia que agora lhes tocava, e a muita energia necessária para conterem-se
todas as fezes que guardavam desde há muito, solapando-lhes a paciência e o bom
humor.
No entanto, ela, a vitima, laboriosa,
econômica e cortês, cerrava os olhos a tudo quanto via, desculpando às cunhadas
e à mãe de seu marido, sendo o gênio bom para com o esposo que continha-se e
calava-se, quando um entezinho puro como os arcanjos e louro como uma manhã de
primavera, veio fazer a mãe sorrir e sentir o coração mais aumentado de volume
de ternura ao beijar a pequenina que sorria inconsciente ao receber o osculo
leve dos purpurinos lábios maternos.
Uma criancinha nestas condições
deveria ser o Messias que trouxesse para aquela gente a paz, com o sorriso
casto, fazendo um coro harmônico de afeto entre os beijos disputados e o
carinho repartido.
A jovem mãe, com o semblante simpático
e expressivo junto ao berço, fazia por sua mão os vestidinhos que ela, a Bebe, deveria
usar quando tivesse de deixar as faixas dos primeiros mês São Toda pudores, tomava
a filhinha para amamentá-la, depois dava-lhe a farinha láctea na chupeta, e à noite
erguia-se para aquecer o leite no espírito de vinho, com essa paciência celeste
só própria do amor de mãe. Depois, brandamente, ao deitar a criancinha
beijava-a quase sem tocar-lhe a face, adormecendo ao lado do esposo no sono
calmo de quem cumpre o que lhe ditam o amor e o dever.
Uma manhã, a família do oficial da tesouraria
foi passar com a filha algumas horas. Como pessoas de juízo, aconselharam à jovem
que desculpasse tudo, porque aquilo passaria com o tempo, que é o verdadeiro
mestre que se incumbe por si, de premiar a virtude e castigar o vício.
Todos reunidos na sala de jantar conversavam
sobre diversos assuntos esperando o almoço. Bebê no colo do pai, sorria às festas
que fazia-lhe a avó materna; ele, a embalar a perna, obrigava a menina
satisfeita, a sacudir os bracinhos, procurando articular sons que eram
desprendidos entre os ditongos ão, am em,
um, ei, oi, quando ao ver a jovem mãe que vinha trazer-lhe na chupeta o
quotidiano alimento, fazendo esforço, quase a arrancar-se dos braços paternos, exclamou
claramente em duas silabas nunca então pronunciadas, a palavra: ma-mã. C. L.
Maria estacou; pálida, ofegante, trêmula,
extasiada, nervosa, nessa agitação sem igual onde os direitos maternos
reivindicam os seus títulos. Caiu-lhe das mãos o invólucro que se desfez em mil
pedaços derramando-se o líquido ainda morno, que entornado, sujou o assoalho.
Tomar a filhinha nos braços, cobri-la
de beijos, foi obra de um minuto. Todos, até mesmo as cunhadas rebeldes, beijaram
a inocente; o Henrique, deveras emocionado, mostrou nos olhos negros uma nuvem
de pranto, êmulo do prazer; a avó, mãe da Ismênia, cerrou ao peito o frágil
entezinho que era sua filha duas vezes, e a quem aquela palavra mãe, fez
estremecer recordando o passado que apresentavase-lhe encarnado na netinha, a
filha, que agora também mãe, sentia igualmente o que sentira ela, na época da
sua primeira mocidade.
A D. Lauriana, mãe do dono da casa,
foi a única que conservou uma nota de tédio à comum alegria da família. O filho
pressentiu-o, e, a uma censura fora de tempo sobre o assunto, ele cortês, disse-lhe
que vexava-se de ver o quase abandono que ela fazia da criança, sua afilhada.
Sem poder então conter-se, a mãe do empregado público discorreu largamente
sobre a questão, resultando haver entre o pai da moça e a mãe do genro, uma
meia dúzia de frases explicativas assim com modo de decidida arenga, dando como
fim a tudo o retirar-se Maria para o lar paterno naquela mesma hora, rompendo-se
portanto relações, mas, comprometendo-se o pai da inocente, culpada de todo o
aranzel, em dar parte do ordenado à família que deixava.
A sogra de Maria respirou. Como
verdadeira sogra, no dia em que viu partir para sempre os moveis do quarto da jovem
senhora e a bagagem da mesma, fazendo sacrifício, foi com as filhas à noite ao espetáculo.
***
Voltando a morar com seus pais, nem
por isso ela mudou. Passados alguns meses, sendo pelo Henrique pedido uma
remoção por precisar mudar de clima, os dois esposos longe da família e da
terra natal, na modéstia da sua posição, souberam captar simpatias, souberam
angariar amigos, souberam tornar-se queridos, 1 ^ ao passo que a D. Lauriana, cada
vez mais insuportável, rabugenta, com dois genros, geniosos também, desses que
não admitem conselhos nem pareceres, só por um dever a aturavam. Ela, arrependida,
procurou então reconciliar-se com o filho que, de braços abertos, a receberia
se não fosse o seu mau estado de saúde. O clima úmido e irregular do Rio, obrigava-o
a voltar à Província quase sem recursos, fiado agora na vontade de ferro da
Maria que, decidida a ajudá-lo, trabalhava lecionando.
Na harmonia de espírito em que
vivia com o marido, era natural o interesse que agora ele lhe despertava, e
como a filha, já com os seus oito anos, estivesse adiantada, ela, sem contudo
abandonar todos os cuidados que a pequenina requeria, saía a lecionar, comprando
com o dinheiro adquirido, já uma especialidade para o doente, já uma roupinha
nova para a criança, nessa intima satisfação de quem ama e é amado, e de quem
procura prolongar a existência dos que lhe são caros, por intermédio de seus próprios
esforços.
Um mal porém nunca vem só.
Resignado, mas atormentado por uma consumpção pulmonar, ele, fraco, dava lições
à menina, quando de repente expirou sem ter Maria a seu lado.
A dor da viúva foi enorme, intraduzível,
porém calma, sem prolongados ais, nem aflitivos gritos. O ataúde partiu, mas a
miséria ficou, e após o espanto que produz a morte, após o torpor em que
condensava-se a alma, Maria olhou em roda... Uma órfã, pedia a ela, mãe, mais
sacrifícios, mais trabalho, mais insônias, mais atividade, e a conservação da
vida no estimulo preciso à saúde, que, com a doença, a querer tomar cada qual o
quinhão que lhe pertencia, lutaram, vindo o esfalfar das forças fazer com que a
pobre senhora se resolvesse a tomar discípulas externas na sua própria casa.
Metodizando a economia vital, Maria,
já bem doente e cansada, uns bons três anos depois, ainda no seu papel de
professora, mal sustinha-se em pé.
A menina tomara a seu cargo as
discípulas pequenas para ensinar-lhes os primeiros rudimentos. Sim, com que
paciência, com que graça a pobrezinha corrigia aquelas da sua idade, aprendendo,
ao passo que ensinava?
Já sem poder erguer-se do leito, com
uma substituta, a professora levantou-se uma tarde dizendo sentir-se melhor.
Como o marido, ela morreria da mesma moléstia, teria o mesmo fim, porque o contágio
fora inevitável, previsto quase.
Passeou com passos firmes pelo
aposento, comeu melhor, conversou, e riu-se muito; depois, já pela noite, mostrou
desejos de deitar-se, pedindo para darem-lhe qualquer alimento, o qual só
obrigada tomava sempre.
Bebê, transformada em enfermeira, foi
buscar-lhe um caldo que foi bebido avidamente.
— Vou ver se durmo um pouco, meu
anjo. A noite resfria; preciso já deitar-me.
Convenientemente agasalhada, deu
como de costume o beijo na criança que deitou-se ao lado da enferma, acordando
apenas no dia imediato. Seriam nove horas da manhã, e de um pulo ela pôs-se de
pé.
— Como dorme bem!.. murmurou ao ver
que a desditosa tísica, calma, nem se movia; como depois ao apalpar-lhe a testa
sentisse que estava fria, conchegou-lhe mais os cobertores, receando
despertar-lhe o sono. Já vestida, pé ante pé, saiu do aposento indo em seguida
ao almoço tomar conta das suas companheirazinhas que a aguardavam.
E a faina do dia começou. As vozes
infantis reunidas em coro davam as lições marcadas.
— Agora vou ver a mamã, disse a
professorinha à criançada. Com efeito, dirigindo-se ao quarto, viu que Maria
ainda dormia.
— Vou despertá-la com um beijo, murmurou.
Sem querer, porém, ao acordá-la recuou, vendo que não acudia ao seu chamado.
Beijando-a então mais demoradamente foi tal a impressão do frio que sentiu, que
estremeceu contra a vontade.
Osculou ainda assim os lábios, que agora lívidos, não lhe corresponderam ao
amoroso tato.... porém... para certificar-se se dormiria ou não, ergueu-lhe as pálpebras,
onde, em vez daquele olhar casto, enternecido, cheio de bondade e de doçura, viu
sobre a pupila azul um véu esbranquiçado. Pressou-lhe as mãos; estas, rígidas, não
lhe apertaram os dedos; chamou-a aflita, já em alta voz, mas ninguém respondeu
ao seu apelo; a chorar, com os olhos meio espantados, sacudiu o corpo com força,
nervosamente, porém ele, duro na imobilidade de cadáver, conservou-se firme;
então ela, a menina, que sabia existir a morte porque tinha visto a seu pai assim,
frio, rijo, marmóreo, e imóvel, . viu que alguma coisa de anormal passava-se
com sua mãe. Com a estupefação desenhada no semblante, com os olhos prestes a saírem-lhe
das órbitas, recuou sem querer; os lábios tremeram; gotas de suor banharam-lhe
a fronte; um arrepio de medo agitou-lhe o corpo; muda, inconsciente, sem mais
fitar o cadáver, precipitou-se em uma carreira vertiginosa, indo desmaiar no colo
da adjunta da falecida que, adivinhando o que se dera, correu ao quarto, onde, de
Maria Carneiro, restava apenas a matéria que iria em poucas horas ser o pasto, de
milhões de vermes roedores, sedentos da carne dos seus iguais, verdadeiros antropófagos,
filhos de uma tribo medonha e lúgubre, que por infiltar-nos seu peçonhento vírus, torna-se mister cerrar sobre eles
a álgida pedra dos sepulcros!
**
Mr. Bwxley, tornando à Inglaterra
com sua mulher, deu-lhe na mania de viajar; tanto que só de longe em longe a falecida Maria
recebia carta do spleenético cunhado.
Agora porém, na febre das viagens em que se absorvia o gentleman, sem mais
noticias da irmã de sua mulher cuja morte ignorava, voltou ao Brasil.
A órfã, tomada sob a proteção da
amiga que substituiu a mãe nas lides escolares, vivia pobremente, tencionando
frequentar mais tarde a Escola Normal afim de obter por essa forma um meio
certo de vida.
Entretanto, chegavam em um vapor da
Austrália Mr. e Mrs. Wiliam Bwxley que anunciaram, procurando por esta forma a
menina que lhes foi entregue pela boa senhora.
— Ali riglit! exclamou fleumaticamente o inglês; ela será minha filha,
herdará a minha fortuna, e me acompanhará nas minhas viagens.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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