A POSTURA DOS OVOS
— Oh! filha! Sempre te ando com uma gosma!...
Logo
que entraram na sala, todos vieram cumprimentá-las. As da Torre Velha
conduziram as primas junto do candeeiro, para lhes mostrarem o retrato do
irmão, que era militar e estudava em Lisboa. Tinham recebido pelo último
correio, essa bela fotografia de um rapagão em pé, apoiado negligentemente na
espada e a barretina sobre uma console. Assentara praça em cavalaria
por inclinação: todos os presentes se lembravam, de como era um demônio em
pequeno, percorrendo o quinteiro em todos os sentidos, montado numa cana! A
carta escrita às irmãs, era-o num luxuoso papel cor de tremoço cosido e
perfumada de almíscar. Dizia maravilhas das opulências da capital, dos seus palácios,
dos teatros e das formosas mulheres que passeavam em carruagens descobertas,
para serem admiradas.
— Isso já por lá tem uma dúzia de namoros — disse
frei Inácio, espreitando por entre as cabeças das meninas.
Mas
uma das da Torre Velha, confidente do militar nos seus primeiros amores,
defendeu-o:
— Quem, o Zezinho?! Não é desses!
E
encarou Clotilde de Refuinho, que baixou timidamente os olhos, conservando-se
muito tempo triste, encostada à mesa.
Os
parceiros do rancoroso voltarete, enremissados da semana precedente, estavam sôfregos
sobre o jogo. O desembargador João Xavier, para os desculpar por se não
levantarem, disse de longe, com a autoridade de um marido, que esteve para ser
de D. Maria, quarenta anos antes:
— Ó minha prima. Deus lhas dê muito boas.
Dispenso cumprimentos. Esta remissa de quinze entradas tenho-a atravessada
aqui.
***
Mas
quem se aproveitou do reboliço foi o Dr. Leandro, que a esse tempo levava uma
reverendíssima tunda, às damas, do seu amigo frei Antônio, que as jogava na
perfeição. O advogado aproveitou o ensejo de atirar com o tabuleiro para o
inferno, e fez na sala tal barulho, que parecia a derrocada de uma torre. Até
ia trilhando o médico Pestana, homem de grande saber e azedume, que lá estava
com o seu esqueleto arrumado a um canto, a chupar cigarros, todo concentrado no
ódio ao recebedor da comarca, por causa da morgada, D. Micaela — mulher
soberba, que os dois ambicionavam furiosamente. O recebedor, o famoso Silveira,
nessa noite em maré de fortuna amorosa, parecia um redemoinho pela sala, sempre
com o xalemanta cinzento pendurado dos ombros. Foi ele que ao ver muita
gente, propôs logo um quino, falando com o seu ar estarola. Era quem costumava
tirar as bolas e salpicava o jogo de larachas muito apreciadas, que por vezes
lhe deram assinaladas vitórias, quando a morgada ria até ao engasgamento
nervoso. Porém, nessa noite, D. Micaela preferiu antes ouvir a música “Ao Luar”,
tocada no piano, com muito coração e esmero pela Clotildinha. Ela que era romântica
e sentimental, adorava esse famoso trecho, que já uma vez a fizera suspirar em
Barcelos. Era um idílio cheio de meiguices dolentes e das suaves fragrâncias
das campinas. Rumorejavam brandamente arvoredos, um regato serpeava pela
encosta e o poético rouxinol queixava-se no interior de um loureiro. Frei Inácio
é quem fazia de rouxinol, munido de uma gaitinha; mas o famoso Silveira, que também
conhecia a música, aproveitou cruelmente mais esta ocasião de triunfar sobre o médico.
Propôs-se a tomar para si a parte do rouxinol, sem nenhum auxilio de gaita. Os
aplausos à magnífica lembrança foram calorosos. Todos sabiam, quanto o
recebedor da comarca era exímio imitador de vozes de animais e especialmente
das aves. Em certos casos o engano era completo. Um dia mugiu tão
admiravelmente de vaca no quinteiro de Refuinho, que a velha fidalga veio
à janela toda aflita, ralhar com o moço, julgando que andava o gado solto. Ao
dar com os olhos no Silveira, que nesse instante estava mugindo com desolação
para o céu, supondo uma cria distante, repreendeu-o:
— Fazer de vaca! Isso é pecado. Não teme um
castigo do céu? As vacas não tem alma — concluiu agastada.
O
médico Pestana, concordando em que o recebedor não tinha alma, chasqueou o caso
dizendo que o homem, fazendo de vaca ou de boi que era o mesmo,
mostrava grande jeito para marido.
***
Porém
a novidade de imitar um rouxinol, foi muito celebrada; porque ninguém lhe
conhecia a prenda. O médico emagrecia a olhos vistos, quando a morgada dava
palmas ao Silveira. Este para melhor o aguilhoar exibiu outras habilidades já
conhecidas: fingiu o trote de um cavalo que se aproxima e relinchou com as
ventas altas no momento da chegada; o canto do galo ao amanhecer, batendo
fortemente as azas, foi produzido com rara perfeição; o coaxar das rãs em
noites primaverais a chegada do cuco em maio, os patos arrebanhados, o pardal,
o melro, o peru... tudo foi representado. Já não havia, nem voltarete, nem
bisca, nem ideias de quino. Tinham para duas horas. O médico passeava ao fundo
da sala, sorumbático e abatido. Frei Inácio, sempre brincalhão, disse-lhe de
longe:
— Deixe-se disso, doutor. Quê-lo ver fazer de
porco?
Todos
o desejaram e ele não se fez rogado.
Saiu
da sala, para logo voltar silencioso e embrutecido. Vinha sorumbático e sorna,
como um porco ao recolher. Uma criada chamou para a comida: “coxi,
coxi, coxi” e logo o Silveira principiou a correr, como cevado cheio de
fome, dando fortes grunhidos, gritos atroadores, até que foi para um canto
sugar a sua lavagem, com um xou-xou embrulhado e característico.
Por fim supondo-se um porco perseguido por um cão, correu veloz, ladrando e
grunhindo ao mesmo tempo, e saiu precipitadamente pela porta, dando um
encontrão no médico.
Todos
riram com bocas escancaradas. Frei Inácio agachado a um canto, já não podia
mais, e por fim encostou a barriga à parede, com medo de uma cólica. As meninas
de Refuinho e da Torre Velha gargalhavam no regaço umas das outras. O
desembargador Xavier sorria de longe com dignidade, olhando firme, com os seus óculos
de ouro.
Um
jovem poeta, estudante em Coimbra, foi da opinião e disse-o claramente, que se
aquele fenômeno se exibisse no Palácio de Cristal, haveria grande concorrência,
porque era, em verdade, admirável! D. Micaela, que aplaudira até as lágrimas,
perguntou ao acadêmico:
— O senhor Penaguião nunca o viu fazer de galinha
e por ovos?!...
— Nunca vi, senhora morgada...
—
Então!... — concluiu com um entono que significava preço — nunca viu nada!
Todos
se levantaram a pedir ao Silveira que exibisse esta habilidade; porém ele
sentado numa cadeira, a limpar o suor do cachaço, não estava para isso.
Sentia-se cansado, ficaria para outro dia, não podia ser tudo de uma vez. A
morgada, conhecendo o empenho dos seus convivas, disse mesmo sem se levantar:
— Ande, vá por. Quero que o Sr. Penaguião
veja.
Não
hesitou um momento. Um raio de vingança triunfante despediu-se do seu fulvo
olhar contra o médico, que ao vê-lo prestar-se, saiu da sala. Porém isto, que todos
julgaram um sinal de covardia não o era de certo; porque momentos depois o
doutor tornou a entrar, com semblante conformado.
Como
era uma exibição mais complexa, tomou cada pessoa o seu lugar. As senhoras em
cadeiras, em volta da sala, deixaram o canto livre para a postura, que devia
ser junto do piano. Os homens que se não puderam sentar, encostaram-se às entradas
e nos vãos das janelas. O médico, talvez para se mostrar generoso e sofrer diante
de todos a própria humilhação, ocupou a cadeira mais perto do lugar da postura.
Pareceu
um ato público de conformidade. O próprio Silveira assim o entendeu. No meio de
um silêncio valioso, depois de apenados dois banquinhos para servirem de
poleiros casuais o recebedor da comarca com o xalemanta pendente dos ombros,
colocou-se no meio da sala, olhando solenemente em redor.
Mostrava-se
grave, simples e ao mesmo tempo imponente!
***
A
princípio houve um cacarejar avulso e sem grande significação. Andava em volta
dando pulinhos, erguendo a cabeça para ouvir facilmente, e espanejava-se ao
sol. Depois continuou em passo solene, entoando um cá... cá... cá... refletido
e de concentração. Passados momentos, a voz levantou-se gradualmente mais
sonora, tinha gritos estridentes e estendia o pescoço. Andava com vivacidade,
os pulinhos eram sacudidos e o corpo avolumava-se-lhe debaixo do xale, quando
afastava os cotovelos. Subiu a um dos poleiros e lá do alto produziu um ca-ca-ra-có,
rápido e vibrante, como se fora uma sentinela gritando às armas, para afastar
um inimigo possível. Mas logo desceu para continuar num tom manso e natural,
andando em passo grave, seguro de que ninguém o viria perturbar. De repente
deu-lhe uma espécie de fúria, uma raiva e começou a correr e a gritar
desesperadamente, muito arrastado pelo chão, significando a galinha apertada
por uma dor e com a necessidade urgente de expelir de si qualquer coisa.
Os gritos eram fortes e expressivos, as arremetidas para o lado do ninho
insistentes, sempre com as azas de rasto, afastando-se um momento para voltar
depois mais precisado.
A
situação ia-se tornando claramente dramática.
O
interesse dos circunstantes era cada vez maior. Exprimiam o sentimento de
admiração que os possuía, em frouxos de riso apanhados na mão e muitos,
boquiabertos, pronunciavam: “Ora!... Ora!...”
A
morgada, que estava mais à vontade e não temia perturbar a representação
observou:
— É tal e qual a minha amarela. Uma coisa
assim!...
***
Vendo-se
aplaudido pela mulher a quem amava o Silveira foi sublime! Aproximou-se
sornamente do canto da postura. Reconhecia-se-lhe na lentidão dos movimentos de
parturiente, que se aproximava o momento supremo. Já ia arrastando o corpo, de asa
caída, e um có-có... gutural. Foi enfraquecendo a voz e os
movimentos, andando em volta de si mesmo a procurar o jeito. Depois acamou-se
acocorado, todo metido debaixo do xale cinzento, numa atitude de objeto bruto
e informe que para ali estivesse arrumado. Houve um gemer soturno, como o
regougar de um gato.
Foi
neste momento que o médico se abaixou fingindo que apanhava alguma cousa. O
Silveira não o percebeu, tão compenetrado estava das suas altas funções de
maternidade. Os assistentes, interessados no final da comedia, também não
repararam. Durante o minuto que o recebedor se conservou agachado, trocaram-se
apenas algumas observações em voz baixa. Mas por fim, mestre Silveira, saiu do
ninho mostrando-se patentemente e engolindo em seco, como se viesse de um
sonho. Começou a cacarejar com alegria e orgulho em voz sonora e espantada.
Saracoteava-se vistosamente, espanejando-se, refrescando o corpo, na satisfação
de quem cumprira um dever e se livrara de uma dificuldade. Esperto, vivaz,
altivo, tudo era Ca-cá-rá-cá, ca-cá-rá-qui... para um lado e para
outro. E numa reviravolta, quando fazia a última visita saudosa ao ninho, o
soberbo Silveira estacou de repente, empalideceu deixando de cantar, os braços caíram-lhe
num assombro!
— Mas eu não fui! — pronunciou inconsciente.
O
aparecimento imprevisto de dois ovos autênticos no lugar da postura, produziu
uma gargalhada aterradora! Frei Inácio, sempre laraquista, agarrou no recebedor
pelos ombros, perguntando-lhe:
—
Então hoje isto foi a sério, caro amigo?!
Porém
o médico, cheio da sua vingança, dizia ao mesmo tempo a D. Micaela, em voz
alta, de modo que todos ouvissem:
— Compre esta galinha, senhora morgada, que
lhe põe aos dois. Olhe que sempre é melhor que a sua amarela!
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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