RENDE-TE
CENTURIÃO
— Quando foram os do fidalgo do Outeiro — acrescentou
o abade — houve a guarda romana com o Centurião à frente, levando o seu distintivo
de videira como emblema do direito de punição corpórea, sobre os soldados. Não
sou desse tempo, mas há aí muitos homens que se lembram — concluiu, dando
grande preço às suas palavras.
Era
num domingo, depois da missa conventual. O abade falava na sacristia, diante dalguns
fregueses, que o escutavam respeitosamente. O benemérito senhor Guimarães, que
abrira a subscrição com cinquenta libras, era dos ouvintes. Reconhecendo, como
todos, que a soma já apontada era diminuta para se arranjar uma procissão a
valer, pôs serenamente a luneta, pegou no papel onde estavam lançadas as diferentes
verbas e leu:
— Trezentos e cinco mil e sete centos e cinquenta
réis. É pouco! — disse. Quanto entende o senhor abade, que será preciso para se
fazer coisa de truz?!
O
sacerdote olhou fixamente o teto da sacristia, suspendendo-se do lábio inferior
por dois dedos. Pronunciou, para si algumas palavras de calculo, resumindo em
voz alta:
— Quinhentos mil reis. Com quinhentos mil reis
faz-se tudo.
— Pois feche lá essa conta e trate do negocio,
meu reverendo — concluiu o Guimarães, atirando generosamente com a meia folha de
almaço, sobre o gavetão.
O
abade agarrou-o entre os seus rudes braços de camponês, afirmando-lhe:
— Com isso, temos tudo! Bom sermão; boa música;
bom coro; anjos; igreja rica; um centurião com a sua guarda, que se lhe mandam
aí na vila fazer vestimentas; e andores de espavento, que eu arranjo a virem de
Braga, com imagens e mais pertences. Creia o meu amigo, ponho-lhe aí uns Passos,
que nem na cidade do Porto. Uma riqueza, verá.
— Então é dar ordens, está arrumado — acrescentou
o Guimarães, fazendo um gesto largo com a ponteira da bengala. Dinheiro não
faltará, ainda que seja preciso mais. Na minha vida de trabalho levei muito
chimbalau, e bastas vezes perdi contos e contos. Dê ordens, meu abade, e ponha
a coisa na rua. Percebeu?
Esta
grandeza do Guimarães foi muito gabada em toda a parte, bem como a sua devoção.
Felizmente não era como o traste do Cerqueira, um herege que embirrava com missionários.
Esse era raro verem-no pela igreja, e até quis bater no afamado padre Antônio,
porque lhe fez uma santa da sobrinha, a Rosaria do Thomaz do Monte, pobre
homem, agora maluco, por causa das heresias que lhe metera na cabeça o cunhado.
Ainda bem que o senhor Guimarães não era assim e gastava dinheiro em fazer
coisas boas, como ajudar uns Passos de que todos se
orgulhavam. Por isso Deus o tinha protegido; por isso, sendo filho de um pobre
artista, era hoje um fidalgo, tinha palácio e suas filhas usavam sedas. Não
tardariam em ver-lhe um titulo e era muito bem aplicado, a um cavalheiro de tão
larga generosidade e que tão amigo se mostrava da terra. Podia ser como outros,
desprezar do nascimento obscuro, viver nesse Porto ou Lisboa, e não fazer caso
nem da sua aldeia, nem dos parentes pobres. “Viva o senhor Guimarães, que ainda
há de ser o nosso deputado” — afirmavam com ênfase pessoas de consideração.
***
Desde
aquele momento o abade não pensou noutra coisa. Logo no dia seguinte montou na
sua égua e foi encontrar-se com a diligencia, que o levaria a Braga. Como era
homem de imaginação e muita fé, logo que ali chegou entendeu-se com as pessoas
que melhores conselhos lhe podiam dar. Depois de varias conferencias resolveu
encomendar tudo a um homem da rua do Souto, o que era melhor arranjo. Combinou
a armação da igreja; os fardamentos do centurião, guardas, figuras e vestidos de
anjos; os cantores para o coro, os andores e até as imagens. Quanto a imagens
foi mais difícil; pois que as confrarias entenderam que as não deviam
emprestar, sem o parecer favorável do senhor Arcebispo.
Depois
de trabalho insano só pôde conseguir, um São João e um Senhor
prezo à coluna. Porém não ficou contente; porque as estatuas, antigas e
feias, não eram de causar grande devoção.
— Paciência — disse resignado. Levam-se os
seis andores. Tenho lá Cruz às costas e Senhora do
encontro. Levo daqui Preso à coluna e São
João. Cana verde e Pretório arranjo de
Valença. Quem tem amigos...
Procurou,
depois, saber onde morava atualmente o padre Silvestre, capelão de infantaria 8
e seu antigo condiscípulo. Era um dos pregadores mais afamados do alto Minho e
o abade, pela terceira vez, o escolhia para lhe abrilhantar uma festa da sua igreja.
***
Tendo
conhecimento de que mudara para a Cônega, caiu-lhe em casa de um pulo. Havia anos
que se não encontravam. Por isso houve efusão de alegria, muitos abraços e
expansões neste momento.
O
pregador, escarranchado numa cadeira, disse para o seu amigo que se lhe sentara
na cama:
— Tu, magnífico, gordo, sempre abade! Que
diabo te trouxe neste tempo de trabalhos quaresmais cá por Braga?
— O diabo não, criatura, foi Deus! Deus, o
Senhor dos Passos é que me trouxe hoje por cá. Mas deixa-me perguntar-te, antes
que me esqueça. Estás de mal com as...
— Estou sim — atalhou — não as podia aturar.
Eram umas porcas. Nem roupa, nem comida... uma imundície. Depois
tinha por companheiro o Antunes da Cuspinheira, lembras-te? Um cevado com quem
se não pode estar à mesa. Deixei-as...
O
abade conformou-se, acrescentando:
— Pois custou-me a dar com esta casa. Perguntei
ao Sampaio, o fâmulo. E venho cá por um motivo muito grave.
— Oh! com seis centos! — exclamou o capelão.
Talvez algum caso de consciência. O homem é fraco, bem sei. Eu absolvo-te, diz
da tua vida, bezerro.
— Não, não é isso. Tenho uma festa de Passos,
coisa rica. Paga lá um meu paroquiano, um brasileiro. Quero que tu pregues.
— Quando é? Na quarta dominga? Tenho que
fazer, vou aos de Bouro.
— Não principies já com lonas. É na terceira
dominga, homem.
— Então posso.
— Mas Souseca! eu quero um sermão novo em
folha. Posso-te dar quinze moedas.
O
padre Silvestre refletiu e disse:
— Valeu. Escrevo hoje mesmo ao Germano, o
Germano das bochechas grandes. Conhecê-lo? Quero que ele me empreste um que lhe
enviaram do Porto e que fez grande barulho em Guimarães quando lá o
pregou, há dois anos.
— Mas, porque é que tu não o escreves? Com o
teu talento...
— Escrevo sim; mas é para me inspirar. Tu bem
sabes que estas coisas são sempre as mesmas. Está tudo sabido, já se não pode
inventar. A questão é de modo. Percebes abade?
***
No
sábado, véspera da terceira dominga chegou a Refuinho o pregador. Foi-se
hospedar na Residência. A sua entrada na aldeia foi celebrada com
alegria pelo ajuntamento de povo, que estava no adro da igreja e até haveria
repiques e foguetório, se não fora tempo santo de quaresma.
O
Agrela, que ajudava o armador de Braga, veio dar ao padre Silvestre, um aperto
de mão, afetuoso e familiar.
— Cá andas tu como o peixe n’água — disse-lhe
o pregador.
— Não há remédio senão dar um gáudio à raparigada
— respondeu o alfaiate. Muito estimei vê-lo por cá, meu senhor. Há que
tempos!... Temos aí uns Passos de arromba. Não haverá outros,
cinco léguas em redor.
O
padre Silvestre saudava a todos de cima da burra. Os semblantes dos camponeses
eram risonhos, como se tratassem de um noivado. Este rumor atraiu o abade que
se chegou à janela. Ao avistar o seu antigo condiscípulo, gritou-lhe:
— Eh! Souseca! Sobe para cá diabo.
Mas
foi ele que veio abaixo, de tamancos e meias de lã, envolvido no amplo capote.
Tomou o hospede entre os braços, apertou-o com amizade.
— Já me tardavas, maroto! — disse. Vou-te
mandar por a ceia. Ó rapariga! — gritou para cima — Ele cá está.
No
alto da escada, apareceu a Joana, de lenço vermelho cruzado sobre os seios magníficos,
e expondo, à vista de todos, a ótima carne dos seus braços.
— Então uma fornada, ein? — perguntou o
pregador.
— Não há remédio senhor reverendo capelão. A
gente há de comer. Estou a metê-la no forno. Desculpe recebê-lo assim.
Mas
o padre Silvestre não era de cerimônias. Estava acostumado. Em casa de sua mãe,
nos tempos felizes em que vivera na aldeia, era a mesma coisa. O trabalho
primeiro que tudo. Faz a gente forte. Deu-lhe um abraço de satisfação, fazendo
muito gosto em sujar o capote, sobre o lenço enfarinhado e os braços roliços,
cheios de massa. A rapariga riu estrondosamente, entregando-se-lhe com
facilidade. O abade, fingindo-se suspeitoso, observou:
—
Cautelinha, cautelinha, sor Souseca!...
Tudo
era levado à boa parte e sem malicia. O padre Silvestre pediu tamancos e meias
de lã, que tinha os pés gelados. Oito horas de diligencia e a cavalo era de
morrer. Se viesse alguma chuva não faria mal nenhum, pois amaciava.
— Não imaginas abade, como ele corta lá em
cima, ao dobrar o monte.
— Imagino, imagino. Bastas vezes o tenho
levado pela focinheira. Mas toma lá uns socos e as meias e vem para o lume. Ceia-se ali mesmo.
***
Pouco
depois, puseram diante do pregador a sua galinha, salpicão e a tigela de bom
caldo, fumegante e apetitoso. Nos tempos em que há muito serviço divino, não se
usam jejuns para quem prega ou canta. Tem dispensa, bem merecida; pois que
alguns, como o padre Silvestre, andam de terra em terra, levando a palavra
santa, para converter pecadores. É uma lida de seis centos demônios. Ganha-se
dinheiro; mas não vale muito a pena. Se os obrigassem a comer sardinhas,
morriam no fim da quaresma. Era Cristo a subir ao céu e eles a descerem à cova.
Jejuns são para os brutos, para os fortes, que não tem de puxar pela cachimônia.
— Cá na minha — afirmou Joana atiçando o lume
— se nós somos tão tapados é por causa da broa e do bacalhau.
O
abade, que estava estorcegando a sua posta sobre o prato, levantou a cabeça
para dizer:
— Olá, precisa. Vou-te mandar vir carne da vila,
para tu comeres.
— E olhe que me havia de fazer bem, ao meu
rico peitinho — confessou pondo a mão sobre os proeminentes seios. Ao trabalho
que lhe tenho.
O
abade continuou troçando:
— Ora sempre a gente vê coisas! Não te me
faças lesma. Dá pra cá a infusa e deixemo-nos de contos.
Mas
o padre capelão falou sério, explicando. O seu trabalho nessa quaresma era extraordinário.
Em seguida a esse sermão, tinha outros. Passos em Bouro e toda
a semana santa em Amares, onde tinha de pregar o do lava-pés, o
do enterro, o de lágrimas e o da ressurreição,
que é sempre uma predica demorada e cheia de conceitos.
— Pois sim — considerou o abade — mas este de amanhã
é que mais te custa.
— Pudera! Também é o de mais pucho. Levou-me oito
dias a compor e oito a decorar. É todo novo, acredita.
Tinham-no
prevenido que, para o ouvir, viria gente de longe. Só em casa do Guimarães, uns
trinta hospedes — pessoas do Porto, de Braga... o diabo. Mostrava-se preocupado
com o êxito. Tinha medo que lhe esquecesse algum desses trechos flamejantes, em
que firmava orgulho literário. Peça meditada, feita com reflexão e calculo.
Havia a bem conhecida passagem do centurião, convertido por um toque de divina
graça. O padre Silvestre não julgava isto muito moderno; mas foi o abade que lha
exigiu, por saber que era do gosto dos ouvintes e principalmente do benfeitor.
No entanto, entendia o pregador, que essa passagem produziria bom efeito, se
fosse convenientemente ensaiada.
— Quem tens tu aí para centurião? — perguntou
ao abade.
— Um rapazote da freguesia. Boa figura,
alto!...
— Pois hei de lhe querer falar. Que venha cá
amanhã de manha. Bem sabes que isto tem o seu bocado de teatro.
***
No
dia seguinte o pregador estava a repetir o sermão na horta da Residência,
passeando num carreiro, por cima do muro. O sol aquecia-o agradavelmente por um
lado, a sombra do seu corpo estendia-se na relva, sobre a qual os gestos se lhe
reproduziam mais amplos e majestosos! Uma pobre cerdeira, despida de folhas, é
que lhe servia de referencia. Daquele lado era o Calvário, com a dolorosa
imagem de Cristo, vergado sob a cruz. O povo estava em baixo, opresso e contrito.
A Virgem mãe, à direita, banhada no pranto redentor. Os verdugos, os da guarda
romana, os discípulos e todos os amigos de Jesus, lá os significava na vertente
do monte ignominioso, que no caso presente era um alcouve de cor alegre.
No
meio de uma apostrofe clamorosa, quando de braços abertos e solene chamava o
divino socorro, foi interrompido por uma voz:
— Senhor reverendo pregador? — chamaram.
O
sacerdote, voltou a cabeça, conservando suspenso o gesto e perguntou
impaciente:
— Que diabo queres?
— Vossa Senhoria não me mandou chamar?
— Eu!
— Cá o nosso abade é que disse.
— Ah! — exclamou, deixando cair os braços. És
o centurião?
— Entendo que sim — confessou o filho do Cancela.
***
Disse-lhe
que se aproximasse. Explicou-lhe o caso. Em certa altura do sermão, tinha de
quebrar a lança, e prostrar-se de bruços, soluçando, como pecador arrependido.
Jesus Cristo ali estava, coberto de opróbrio. Todos o tinham insultado no
caminho do Calvário; porque estava nas escrituras que assim devia ser. Ele,
centurião, também maltratara o sublime prisioneiro, dando-lhe com a lança e
chasqueando-o. Depois é que lhe veio um toque de luz divina e arrependeu-se.
— Tu entendes — explicava. Toque de luz divina
é assim como uma pontuada sobre o coração. Entendes? Diz lá.
— Entendo muito belamente, senhor reverendo
pregador. Eu já figurei noutros Passos, lá para Monção — acrescentou
com sorriso experimentado. Mas senhor reverendo pregador, Vossa Senhoria, quer
que eu me arrependa, logo à primeira que mandar?
— Porque?
— Eu à primeira... à primeira... não queria — explicou,
coçando a nuca. É cá por causa da rapaziada, que depois chama podrico à gente.
— Ah! isso não tem nada. Lembra-te que estás diante
do rei dos reis e do senhor dos senhores. Mas não te rendas logo... logo...
Olha bem para mim — detalhou com bondade. Ao primeiro rende-te eu
pego no lenço que está do lado da porta, levo-o à boca, e torno a colocá-lo no
mesmo sitio. Tu reparas em mim, dás uma sacudidela aos ombros, assim, e
continuas lá no teu posto. Eu falo muito ainda. Ao segundo rende-te,
repito o caso do lenço mudando-o então — sublinhou — para o meio do
púlpito, desta maneira (Pegou no seu lenço de paninho vermelho, conservou-o
segundos pendente da mão e depois colocou-o sobre um triste ramo de vide).
Tornas a atinar comigo, um pouco mais sério do que da primeira vez; nova
sacudidela de ombros, e continuas lá na tua vida. Sim, porque tu és um grande
pecador e a divina graça não te pode tocar assim do pé para mão. Entendes isto?
—
Muito bem, senhor reverendo pregador — afirmou o filho do Cancela, com o queixo
agarrado na mão direita.
— Mas ao terceiro rende-te — acentuou
significativamente o padre Silvestre, espaçando as silabas — quando eu mudar o
lenço para o lado do altar mor, tu reparas em mim, com olhos muito arregalados,
como quem sentiu que lhe entrou alguma coisa no corpo; se quiseres dás um
grande berro, quebras a lança no joelho, atiras-te ao chão de bruços, finges
que choras (se te der para isso, choras realmente) e dizes alto: “Perdão
Senhor! Perdão! Perdão! Perdão!”
O
rapaz pronunciou:
— Perdão Senhor! Perdão! Perdão! Perdão!
— Isso mesmo. É para o povo repetir: “Perdão
senhor, perdão, perdão” e chorar muito, como é costume.
— Entendi muito belamente. O pior é se depois
me chamam, cagarola e podrico, que me levo de mil demônios.
— E que chamem? — observou o pregador. Então
queriam que tu te não arrependesses, depois de tocado pela divina graça? São
uns brutos.
***
Logo
de manhã principiara a afluir gente que vinha de longe. A igreja, os andores e
o que se dizia dos anjos era um pasmo! A música, logo que chegou, foi tocar um
hino e duas polcas à porta do senhor Guimarães, que veio à janela, com toda a
sua respeitável família e hospedes, palitando-se soberbamente. Zé Máximo, o
homem das ocasiões, levantou um viva ao seu compadre e amigo, que foi
correspondido atirando-se chapéus ao ar. De tarde, antes de sair a procissão, a
música voltou para o beberete, que lhe foi servido no quinteiro. Houve vinho do
Porto em cálices, quatro broas de pão-de-ló partidas à mão. Para os figurantes,
que estavam todos vestidos na vasta sala da tulha, à espera do momento, foram
enviados dois cabaços de vinho, meia dúzia de broas de pão-de-ló, outra de
garrafas de Porto e um cesto de cavacas. Houve por este motivo grande barulho e
algazarra dentro do casarão da tulha.
Foi
a própria esposa do senhor Guimarães, que teve a delicadeza de lhes ir
encher os primeiros copos, como sinal de apreço e um rasgo democrático na sua
vida faustosa. Os rapazes de aldeia sentiam-se engrandecidos dentro dos seus
fatos galileus e romanos. As três Marias e a Verônica, apenas levaram aos
beiços os copos de vinho, com medo de se descomporem nos vestuários. Os anjos,
sentados em duas bancadas, comiam gulosamente rebuçados, babando-se pelos
cantos da boca. Os irmãos do Santíssimo, encarregados de os acompanhar, vieram
buscá-los para os conduzir à presença do senhor Guimarães e dos seus hospedes,
antes da procissão. O destroço nas cavacas, no pão-de-ló e no vinho era feito,
pelo Velho Simeão, por José de Arimateia, por Caifás e Pilatos, que se
mostravam altivos; pelo Evangelista e especialmente pelo Centurião e os seus doze
romanos, que prometiam não sair dali, em quanto houvesse uma gota nos cântaros
e nas garrafas. O filho do Cancela, estava arrogante, animando os seus com
manifesto prejuízo dos superiores, Caifás e Pilatos, não obedecendo às palavras
judiciosas do piedoso Simeão, que bebia menos por causa da barba, e recomendava
aos outros compostura:
— Olhem que tomam por aí alguma carraspana! É
melhor voltarmos cá, outra vez, no fim de tudo.
—
Isso é o que tu querias — retorquiu o Centurião. É dar-lhe, rapazes, até lhe
chegar com o dedo.
E
de tal modo compreenderam estas palavras, que ao saírem da tulha, Cancela e os
seus homens, levavam todo o seu animo e arrogância natural, fortalecida pelo
vinho.
— Grandíssimo odre — disse-lhe com inveja o
Simeão da barba, perdendo a suavidade, que era da índole do seu papel.
***
Os Passos começaram
pelas duas horas. O itinerário foi combinado de modo que primeiro que tudo
passassem à porta do senhor Guimarães, que seguia o andor principal, como
festeiro. A todas as senhoras que estavam à janela da sua casa de azulejo, em
especial a sua esposa, fez uma larga reverencia, passando ao mesmo tempo a mão
na barba. Uma das coisas que mais impressionou a gente postada nos valados, foi
o terem os anjos azas! Isso que concordava perfeitamente com o painel do altar
mor, que representava a Anunciação, nunca eles tinham visto! E iam todos muito
ricos, de cetim branco e lentejoulas. Os melhores eram evidentemente os
vestidos em casa de D. Maria de Refuinho, apesar de que os da mulher do sacristão
e os da Lindória, também não havia que lhes dizer: — ambas tinham sido criadas
de conventos em Viana. Cada anjo distinguia-se pela sua especialidade nas insígnias
de martírio, em recordações da celebre paixão; era a coroa de
espinhos, o martelo, as tenazes e os pregos para crucificarem o Cristo.
Havia
dois que conduziam simulacros das escadas pelas quais os verdugos tinham subido
aos braços da cruz. Um rapazote, com altivez para que todos reparassem,
sustentava na ponta de uma cana a esponja que servira ao fel e ao vinagre;
outro era portador da lança com que se abrira o sacratíssimo lado. As chagas,
em lacre vermelho, iam em salva de prata. A Verônica, rapariga esbelta,
mostrava com ar piedoso, no santo sudário, a face penitente e ensanguentada do
divino mestre. Quase no fim iam as três Marias, todas a par, cobertas de gaze
preto e logo a segui-las, São João, o discípulo amado, com o queixo apoiado na
mão esquerda. A Madalena, uma rapariga casadoira, de longas madeixas encaracoladas
caindo-lhe nas espáduas nuas, caminhava em passo teatral, adiante do apostolo,
e significava limpar abundantes lágrimas, deitando de vez em quando um riso de
soslaio, às pessoas conhecidas.
Entre
os dois andores, o de Jesus vergando ao peso do madeiro, e o da Virgem
lacrimosa que implorava do céu piedade, ia o Cireneu resignado e humilde logo
em frente do Centurião, que comandava com arrogância os seus doze
companheiros. Eram rapazes escolhidos entre os mais espadaúdos da vizinhança.
Orgulhosos dos capacetes prateados, das botas de montar, dos mantos vermelhos e
das terríveis barbas, sustentavam intemeratamente as suas lanças, olhando em
redor com provocação. O José Cancela levando a insígnia da videira, atiçava-os
com olhares tremebundos e modos arrogantes de capitão. O povo manifestava-lhes
a sua antipatia, principalmente ao José. Chamava-lhe ladrão, carrasco,
ameaçava-o com o inferno. A Lindória, não se teve que lhe não dissesse, quando
ele passou:
— Barbas de chibo! Um tição por esses olhos é
que tu querias!
Porém
o Cancela, apesar de carrancudo, não respondia. Pelos modos, parecia ter cabelos
no coração, aquele diabo — diziam todos. Os seus olhares furibundos sobre o Cristo,
não podiam constituir um pecado? Era realmente de mais. O Centurião do tempo
dos judeus tinha a sua desculpa, porque não conhecia Jesus; mas este já ouvira
muitas vezes os missionários. Era fingido, bem se sabia, mas escusava de estar
a fazer arremessos de lança, sobre a imagem que ia no andor; porque a isso é
que ninguém o obrigava.
O
atrevimento provocou da parte de um vizinho, um sarcasmo repreensivo:
—
Vais-te aí a fazer de chibante e logo rendes-te como um sendeiro!
— Não me puxes — retorquiu o Cancela — porque
se vamos a isso, arraso tudo a pau.
Neste
momento o trombeteiro deu sinal para continuarem. Ao longe
ouvia-se o alarido dos rapazes, que admiravam os prodígios de força, tanto do
que levava o guião como do que sustentava o estandarte, pois eram bandeiras que
pesavam muitas arrobas. A procissão seguia por uma encosta, no cimo da qual
haveria o sermão do encontro.
***
Um límpido céu de março cobria os campos, que principiavam a reviver para a
alegria primaveral das cores e da luz. O sol glorioso batia de frente nos
anjos, obrigando-os a piscar os olhos. As lentejoulas, os galões e os adereços
faiscavam com ostentação. Todas essas inocentes crianças iam pomposamente
levadas para o Calvário, pelos seus parentes, que lhes forneciam rebuçados em abundância.
A multidão comentava com amor a riqueza dos vestidos e as lembranças do martírio.
O som plangente e dolorido da música, alastrava-se pelas campinas. O
sermão do encontro, só comoveu algumas antigas beatas, que lagrimejaram
encostadas aos carvalhos do largo. O pregador era um velho de voz pigarrada e
bochecha caída. Todos o conheciam e não lhe davam valor. Nesse dia memorável,
quem absorvia as atenções, era o padre Silvestre, que viera de Braga. Para o
ouvir corriam os mais ágeis pelo monte abaixo e atulharam a igreja com entusiasmo.
Para os andores entrarem pediram auxilio ao Cancela e aos da guarda romana. À força
de muito encontrão é que puderam abrir caminho. Houve gritos, exclamações
injuriosas; mas as confrarias, os anjos e mais figuras, tiveram os seus lugares.
Também, o Centurião e os seus, foram logo, ali mesmo, pagos desse esforço,
bebendo um cântaro de vinho que veio para a sacristia. Depois que tudo se acomodou
como pôde, a igreja ficou silenciosa. A imagem do Redentor e da Virgem
destacavam-se com energia, no horizonte do calvário, formado de nuvens
caliginosas. Havia ansiedade pelo aparecimento do pregador.
***
A
figura grave do padre Silvestre mostrou-se no púlpito. Circunvagou a vista,
desde o guarda-vento até a repousar na imagem do Cristo, ajoelhado debaixo da
cruz. O exórdio foi longo, mas habilmente preparado num crescendo de dor.
Seguiu a vida simples do filho do carpinteiro de Nazaré, levando-o desde a
malvadez de Herodes até ao batismo no Jordão. Mostrou-o predestinado pelas profecias,
para a sua divina missão de sofrer o martírio degradante que sofreu, por amor
dos homens. Anteriormente à vinda de Jesus, a humanidade vivia numa escura
masmorra, com porta, só para o inferno! As palavras da escritura haviam de
cumprir-se e era preciso o sacrifício de um Deus, para salvar o mundo. Ele encarnou,
sofreu, demorou-se trinta anos distante da pátria celestial, para nos remir e
dar exemplo. Nem que todos os homens vivessem eternamente em penas afetivas,
poderiam pagar tão infinita bondade! Por isso, na apaixonada peroração, o
pregador, começou por considerar que estando dentro daquela igreja, só míseros
pecadores condenados aos rigores do inferno, convidava-os a que se prostrassem
de bruços, para pedirem perdão a Deus dos enormes pecados, que todos haviam de
ter, no lugar mais íntimo da alma.
Os
gritos e soluços do povo somavam-se, como elementos de uma calamitosa
tempestade. A gritaria das mulheres, que davam bofetadas nos seus filhos para
os obrigar a carpir e conservarem memória deste sermão, esfuziavam no ar como
uivos de vento. O pregador, para tomar mais patético o discurso, qui-lo
ornamentar com a conversão de um infiel. O infiel era o Centurião,
o filho do Cancela, no qual ia experimentar o poder extraordinário da divina
palavra.
***
Desde
o princípio se reconhecera, que o José estava casmurro; pois que, a despeito de
todo o povo chorar, ele sempre se mostrara atrevido, olhando o pregador com
altivez. Os seus soldados também o acompanhavam no ar insolente. Algumas
pessoas que estavam no segredo do que se passava, atribuíam aquela chibância ao
último cântaro de vinho. O pregador, ignorante do fato, antes o julgou muito
bem compenetrado do papel. Por isso começou por pedir aos fieis, que o
acompanhassem na exportação que ia fazer. Como as toupeiras que não tem olhos
para a luz do sol, aquele desgraçado não tinha meio de presenciar o encanto da
luz da divina graça. Vivia em trevas infinitas, de onde só podia sair pelo
enorme poder do Senhor. E estendendo-lhe os braços paternais pediu suavemente:
— Rende-te Centurião!
— Rende-te Centurião! — acompanharam os circunstantes,
numa voz chorosa e precatória.
O
filho do Cancela, que passeava soberbamente no calvário, parou cofiando a barba
com majestade e afirmou resoluto:
— Não me rendo!
O
Agrela, que estava ali perto, disse-lhe de modo que ele ouvisse:
— Não te rendes! Isso logo se verá meu pedaço de
asno.
Evidentemente,
esta ameaça do alfaiate perturbou a vista do esforçado Centurião. Por entre a
longa barba, saiu-lhe um bafo enfurecido de cólera, e se não fora a
especial situação, era capaz de lhe quebrar a cabeça com a lança.
O
pregador, tendo limpo os beiços ao lenço, segundo a convenção, continuou exortando
o infiel e pediu-lhe com mais instancia. Pintou, diante do povo absorvido na
sua palavra santa, o triste estado daquela alma obcecada, recusando receber em
si a divina luz! Empregou maior energia de frase, foi mais caloroso e
persuasivo. O povo seguia-o, suplicando com ele, levantando clamor cheio de lágrimas.
Ao segundo rende-te, quando o pregador mudou o lenço para o meio do
púlpito, o Centurião respondeu categórico:
— Não quero, não rendo!
— À terceira nós veremos — afirmou de novo o
Agrela, que estava certo do que se passara entre o José Cancela e o pregador.
***
O
padre Silvestre investiu no último pedido, dando-lhe a forma de objurgatória.
Para ser mais solene, começou em tom simples, subindo gradualmente
até ao intimativo.
Já
via na fronte do Centurião um princípio de arrependimento. O grande Deus ia feri-lo
com um desses raios de divina onipotência, como ferira Paulo na estrada de Damasco,
como ferira o ímpio Agostinho, e o próprio Moisés na montanha. Não podia
consentir-se que vivesse entre cristãos, uma alma pecadora e impenitente. A
conversão havia de dar-se a preço da própria morte, porque o Senhor usa de
todos os meios, para chamar a si as almas!
O
filho do Cancela, perseguido de ameaças, não se comoveu. Porém, quando o
pregador o equiparou aos grandes santos, já parecia amolecido no seu espírito
de resistência. O povo chorava e clamava em altos gritos, o peito enchia-se-lhe
de ternura e arrependimento. Talvez fosse melhor acabar com aquilo, prostrar-se
por terra, como tinha prometido. O pregador mudou o lenço para a direita e
concluiu com voz enérgica e grave:
— Abre esses olhos pecador! Rende-te
Centurião!
— Agora! — intimou o Agrela.
O
chefe da guarda romana fixou no púlpito um olhar atrevido. Julgou-se indigno da
fama que tinha de valente se obedecesse à voz do Agrela. O vinho dava-lhe coragem
e audácia. Tomando a lança às duas mãos, bateu uma forte pancada no pavimento e
respondeu ao pregador:
— Tenho-os bem abertos. Não me rendo! Não e
não! Obrigue-me!
***
Depois
disto a situação ficou inteiramente perturbada. O padre Silvestre teve uma
paragem de surpresa. Não sabia o que aquilo queria dizer. Teria havido algum
esquecimento ou engano?! Para que o rapaz percebesse melhor, tornou a pegar no
lenço, suspendeu-o no ar e colocou-o à direita. À voz imprecativa do sacerdote,
juntava-se o clamor plangente e formidável do povo. Pois que! O filho do Cancela
tinha dúvida em reconhecer o enorme poder da Onipotência! em se rojar diante do
Senhor dos Senhores, do Rei dos Reis! em reconhecer que o Imaculado Cordeiro
veio morrer fragilmente na forma humana, só para nos remir e salvar! Estranha e
incompreensível cegueira! Empedernido no pecado, devia estar aquele coração. E
pediu-lhe de novo que se rendesse, que atendesse à comovente voz de todas aquelas
mulheres que o exortavam e no meio das quais estaria sua própria mãe.
As
pessoas gradas pareciam irritadíssimas. O brasileiro Guimarães lembrou-se de o
mandar prender; mas o desembargador João Xavier, achou isso impróprio do lugar.
Enviaram o Zé Máximo, que lhe disse com moderação:
— Rende-te, diabo! Olha que o homem já está
rouco.
— Deixe-o estar! — respondeu sucintamente o
Centurião.
Todos
se mostravam inquietos. Semelhante cabeçudo, merecia boa doze de pau — opinavam.
O
pregador estava esfalfado. A sua voz, já pouco distinta, era coberta pelo
alarido que enchia a igreja! Ouviam-se suplicas, ameaças, palavras soltas,
gritos, crianças a chorar...
O
filho do Cancela, de cada vez se inculcava mais firme, no propósito de se não
render. Foram pedir ao pai que lhe impusesse a obediência; porém o velho, que
sempre tivera prosápias, mostrou má vontade de interferir. Opinou que o rapaz
se renderia quando entendesse, que o deixassem lá, ele sabia bem do seu papel.
Não era a primeira vez.
Tudo
parecia perdido. O padre Silvestre, exausto de forças, furioso contra aquele
maroto, arrancou do peito um grito sublime. Com a cólera estampada no rosto,
dirigiu-se ao povo, e apontou vivamente para o Centurião clamando:
— Aqui del-rei! contra aquele maroto!
Prendam-no que foi ele que matou Nosso Senhor Jesus Cristo! Povo! Faz
justiça por tuas mãos.
Os
das confrarias largaram as tochas e correram em tropel. O chefe dos soldados
romanos preparava-se, junto com os seus homens, para levarem tudo à bordoada.
Só então é que o velho Cancela se adiantou, agarrando o filho pelo tronco:
— Eh! Zé. Que diabo é isso! Rende-te que já
fizestes a tua figura, home!
Ele
então, arrumando a lança para um canto, submeteu-se:
— Como vocemecê pede, vá lá! Se não ia tudo raso!
***
Depois
na sacristia, o Guimarães, furioso, disse-lhe:
— Precisavas que te metessem um pau, entendes?
Culpa tive-a eu em mandar o cântaro de vinho. Não eras tu que falavas, não.
O
abade, esse, mesmo de estola, quis-lhe esmurrar as ventas. O pregador é que lhe
agarrou num braço, sossegando-o:
— Deixa-o. Quem lhe há de por uma farda às costas,
sou eu. Lá é que elas se pagam. Moinante!
O
filho do Cancela, ouviu-os com ar sisudo, sem responder. A vista toldou-se-lhe
quando o ameaçaram. Num ímpeto de cólera, arrancou as barbas postiças e
arrumando com elas ao chão, disse saindo para forra:
— Ainda um raio me parta se eu tornar a fazer
de Centurião! Macacos me mordam, se puser outra vez isto na cabeça!
E
atirou ao meio da erva do adro, o belo capacete prateado, que foi ter a
distancia.
O
abade, ainda se chegou à porta dizendo-lhe diante dos homens que ali estavam:
— Ah! bom marmeleiro! Levem daí esse odre de
vinho, antes que eu lhe ponha os ossos num feixe.
Em
casa do pai, custou muito a sossegá-lo. Foi preciso deitarem-lhe uma
chapoeirada d’água fria para o acalmar. O sono que dormiu, foi de mais de doze
horas!
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...