8/06/2023

A vista do salgueiro (Conto), de Teixeira de Queiroz


A VISTA DO SALGUEIRO
(CONTO PARA CREANÇAS)
 

Ambrósio era velho e vivia numa casa muito pobre, toda esburacada e de telha vã. Lá dentro, os ratos eram tantos como as formigas num carreiro; e ele, sentado ao lume, via-os ir e vir, sem mesmo ter medo deles. Por traz da casa havia um pequeno quintal, ao fundo corria o rio, e pegado estava o moinho, habitado pelo moleiro, homem que ele odiava mais do que a morte.

Na tarde serena de um dia de agosto, Ambrósio, foi visto na margem, sentado numa pedra, o queixo pousado nos joelhos, a olhar fixamente e pasmado para uma árvore do outro lado. O céu era dum azul pálido; as águas passavam silenciosamente, até entrarem na goela de azenha, onde produziam um sussurro; a roda movia-se de vagar; porque a força do rio era pouca... O pensamento de Ambrósio voava, num mundo de independência e maldade, planeando vinganças contra o moleiro seu inimigo. Era um ódio velho, nascido de conflitos diários, agravado por muitos nadas de que, o do moinho, nem tinha consciência. No corpo de Ambrósio, magro como de feiticeira, passava-se no momento em que o viram a olhar para o triste salgueiro, uma luta violenta e feroz.

Nesse dia, aparecera-lhe em casa, um bácoro de perna quebrada. Sem mais refletir atribuiu logo o malefício ao danado vizinho e foi para ali ruminar uma vingança, que o deixasse consolado. Tinha um coração de pedra este demônio de velho! Se não fora assim, como poderia gozar, inventando martírios, numa tarde serena de verão, toda silêncio e bondade!

Mas não se desprendia do terrível desejo de matar o moleiro, com os maiores sofrimentos e castigos, que no mundo tivesse havido! Seria capaz de se vender ao diabo, só para conseguir o seu fim.

***

Veio-lhe esta ideia audaciosa e encarou-a resolutamente. Tão firme foi o seu pensar, que logo o diabo em pessoa ali lhe apareceu diante dos olhos, oferecendo-se-lhe para tudo, em troca da alma se ele realmente lha queria vender. Era figura bem conhecida, a que estava diante de Ambrósio: — meio homem, meio cabra; um comprido pelo cobrindo-lhe o corpo; um rabo a dar para um lado e para o outro, como o de um lobo; os cornos arrebitados na cabeça; e os olhos a coriscarem como dois carvões acesos. O velho não se atemorizou, e como desejava vingar-se do moleiro, sentiu o peito cheio de gozo, quando o diabo lhe disse:

 — Ouvi a tua voz. Aqui me tens. Aceito o teu contrato. Pede o que quiseres.

 — Então tu é que és o diabo? — perguntou.

 — Eu mesmo. Sou o que tudo posso depois lá do Outro (apontou desdenhosamente para o céu). No meu reino posso mesmo mais do que Ele.

 — Fazes-me tudo quanto eu quiser para matar o moleiro?

 — Tudo, com tanto que me entregues a tua alma.

 — E para que queres tu a minha alma?

 — Para a guardar junta com outras.

Ambrósio observou escarnecendo:

 — Não acredito que faças bom negocio. Pelo que dizem os padres, a minha alma não presta. Dou-ta, mas hás de trazer-me aqui o moleiro pelo cachaço, e depois de bem amarrado e preso, deixares-me fazer o que eu quiser. Mas quero-o bem amarrado e preso, porque tenho medo, entendes?

 — Se entendo!... E só queres isso?

 — Se perguntas é porque estás em maré de fraqueza. Então vá lá: Quero ser rei; ter muito dinheiro, muitos palácios, muitas cidades, muitos cavalos, coisas ricas para comer.

 — Só isso?

 — Com a breca! Muito boa deve ser a minha alma para ti. Olha, já que ofereces, quero uma sanfona, para tocar aos ouvidos de minha mulher, quando ela estiver a resmungar... Tu sabes; às vezes leva noites inteiras ... ron-ron-ron... ron-ron-ron...

 — E por quanto tempo desejas tudo isso?

 — Essa agora é que nem parece sua, seu diabo! Isso por muito tempo.

 — Não posso dar-te tudo por mais de cinco minutos.

 — Cá me parece sovinice. Cinco minutos não é nada.

 — É tempo bastante de gozares todas as coisas que pedes e de te aborreceres de todas elas.

Ambrósio deu uma estrondosa gargalhada, que encheu todo o vale, repercutindo-se nos recôncavos vizinhos. O diabo acrescentou:

 — É como te digo. Nesse ponto te mostrarei o meu grande poder. Um minuto basta para eu fazer passar na tua vida, todas as grandezas da terra. Outro minuto para percorreres todas as grandes cidades do mundo. O terceiro minuto para tocares sanfona a tua mulher e ela morrerá de desespero. O quarto para matares com toda a pachorra o moleiro.

 — E o quinto? — perguntou Ambrósio.

 — Esse é para te aborreceres.

 — Como tu és grande, diabo! — disse o velho entusiasmado. Aceito.

 — Deixa tirar uma gota de sangue das tuas veias. Com esta pena de mocho, molhada no teu sangue, hás de por o teu nome neste livro.

O inimigo do moleiro sentiu uma picada no sangradouro e logo o seu nome apareceu brilhante como o fogo, na pagina onde o escrevera, obrigado por uma força irresistível.

***

Depois um vento infernal levou-o pelo espaço. Tudo quanto via e gozava eram deslumbramentos e delicias. Corria-lhe o corpo um calor de mocidade. Ricos manjares eram servidos em pratos de ouro; as festas mais divertidas e luxuosas, passavam-se em palácios de marfim e cristal. Camas formadas de fofas nuvens, apareciam dispostas para um momento de cansaço. Levado milagrosamente, passou sobre os mares onde ruem tempestades, viu a seus pés cidades cheias de bulício e riqueza, os reis da terra ofereciam-lhe homenagem! Os montes de perolas, ouro e diamantes já eram para Ambrósio coisas sem valor. Por causa de um mosquito que lhe passou no nariz, teve uma rajada de cólera, que fez tremer toda a terra!

Logo em seguida viu humilde e suplicante o moleiro, que já estava preparado para o sacrifício.

 — Quero matá-lo cá à minha moda — disse para o diabo. Há de ser num banco, escochinado, como um porco.

No momento seguinte estava junto de sua mulher tocando-lhe sanfona aos ouvidos. A pobre velha, entrevada na cama, havia muitos anos, suplicava com olhares, que lhe não atormentassem as últimas horas de vida. Porém o marido, homem de coração duro, foi implacável até ao fim e viu-a morrer no meio de sofrimentos horríveis. Depois é que deu começo à tarefa mais importante, que era dar morte aflitiva ao moleiro.

***

Espatifá-lo como um porco fora sempre a sua ideia fixa. Ia realizá-la. A cena passa-se no quintalito junto do rio. A vítima, com a sua grande estatura sai do moinho. Vem manietado e humilde, ao pé do algoz, apresentar-se para o sacrifício. Ainda que não ousava levantar os olhos, o seu porte era digno.

 — Ah! — disse Ambrósio com grande satisfação. Vamos lá a isto?

O próprio carrasco, é que foi buscar um banco. Apontando para ele, mostrou-o à vítima, com riso de mau:

 — Há de ser aqui.

O pobre moleiro conservava-se calado e triste. Não ousava ter olhares coléricos, talvez, para o suplicio lhe ser menos bárbaro. Não pedia; pois era um homem valente, digno, bondoso e reconhecia a crueldade do inimigo.

Ambrósio continuou:

 — Só para chegar a isto dei a minha alma ao diabo. Se mil almas tivera, todas daria, só para te cravar mil vezes uma faca no coração e tirar-te mil vidas que tu possuísses. Quem foi que me quebrou a perna do bácoro? quem me fez secar a laranjeira? quem me roubou a panela velha, com que eu tirava água do rio? quem me estragou o manjericão?

E como a vítima dos seus ódios, continuava a olhar para a terra, sem responder, escarneceu:

 — Ah! não foi ninguém!... Estas coisas fazem-se por si. Alem de seres o grande ladrão, que me roubou os feijões, és mentiroso. Pois vais pagá-las todas juntas, meu rico amiguinho. Ora deite-se nesta cama.

E com uma força que não era a do seu braço enfezado e velho, pegou no moleiro que era um gigante, e estendeu-o como uma arveola sobre o banco, atando-o fortemente com cordas.

 — Agora espere que vou aqui buscar uma coisa.

Logo apareceu com um alguidar e uma comprida faca de matador. Mostrando estes objetos, acrescentou:

— Isto é um alguidar para receber o teu sangue vermelho e quente. Isto, uma coisa a que se chama faca para te fazer cócegas no coração. Talvez ainda tenha tempo para arranjar um serrabulho desse sangue e coração. Vamos à obra que se faz tarde.

Com placidez, gozando à vontade o martírio do paciente, principiou a arregaçar os punhos da camisa de estopa. Mostrou a faca reluzente à vítima que estava deitada. E voltando-se para o diabo disse:

 — Você muito pode, seu amigo. Como eu tenho aqui este fanfarrão, sem se mexer? Tenho pena que meu pai me não tivesse feito duas almas, para lhe dar a você!

O demônio austero e grave não respondeu à lisonja. Ambrósio entrou de novo no seu pardieiro e trouxe um púcaro d’água quente. Tinha de molhar a pele da vítima, para a ponta da faca entrar mais firmemente. E chapinhando na garganta com a mão molhada, tinha uma respiração de homem feroz.

Apontou a faca ao lugar apropriado, principiou a enterrá-la lentamente, para a dor ser mais prolongada, o sangue já saía em borbotões do peito arquejante do moleiro.

 — Não berra como os porcos, este maldito! — considerou Ambrósio.

Ia-lhe remexendo cruelmente com o ferro nas entranhas! Gozava a sua vitória, fazendo sofrer a vítima.

Foi prolongando este gozo até aos últimos momentos do moleiro. E quando reconheceu que ali estava definitivamente um morto respirou:

 — Ahhh!... Isto valia bem uma dúzia de almas! Quanto falta senhor diabo?

 — Vai acabar o tempo. Já lá te esperam. Olha!

Apontou para a boca de um enorme forno, onde entre as labaredas infernais estavam homens e mulheres dando gritos. Todas as velhas ideias de Ambrósio sobre penas eternas, se condensaram naquela realidade. Afrontou heroicamente um tal espetáculo, diante do qual o seu coração desumano, ainda teve coragem para beber do sangue do inimigo! Porém o mundo infernal das chamas e gritos, crescia rápida e formidavelmente. O diabo sereno e majestoso estendia-lhe a mão para o agarrar, com as suas unhas de macaco! O aspecto do demônio era tão medonho e terrível, que o velho Ambrósio teve subitamente um grande medo, todo o seu corpo estremeceu como se oscilasse o mundo, amedrontado e covarde ia a dar um passo para fugir...

Nesse instante escorregou e caiu ao rio. Começou a berrar por socorro como um possesso. O seu choro era mais infeliz do que o de uma criança sem mãe.

A água escaldava-o e sentia-se atrasado como no meio de labaredas infernais! Quem lhe havia de acudir naquele instante de aflição? Foi o vizinho, o moleiro, a sua vítima que saindo forra do seu moinho o viu debater-se covardemente, como se estivesse assoberbado, por ondas de um mar tormentoso!

 — Eh!... diabo de gato! — disse o colosso metendo-se ao rio e agarrando-o pela gola da vestia. Como diabo te aconteceu isto?

Levou-o para sua própria casa, meteu-o na cama agasalhado, deu-lhe um caldo quente para o revigorar. O velho Ambrósio, olhando-o receoso, batia o queixo de medo e dizia com a cabeça debaixo da roupa:

 — Nada, não quero; ele pode deitar ressalgar no caldo!

 

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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