UM
CORVO E UM PAPAGAIO
(CONTO PARA CREANÇAS, OFFERECIDO AOS MEUS FILHOS)
Isto passou-se no tempo dos animais falantes:
Um
velho corvo, tendo de idade perto de um século, num dia de muita chuva e vento,
veio, já sem forças, pousar na beira de um telhado. Este valente da amplidão
dos ares, tinha perdido toda a arrogância do seu porte; encolhido e a tremer
não se podia já ter nas pernas. A extremidade amarelada das suas penas, outrora
tão negras, mostrava que padecia de velhice e de fome. Ao habitante eterno dos
penhascos sombrios, ao motejador das tempestades que assustam os homens,
coube-lhe o vir dar o último suspiro da sua longa vida, perto do comedouro
farto e luxuoso de um vulgarismo papagaio real. Este, de papo cheio, e aquecido
pelo ar tépido da cozinha, ao sentir a queda do corpo enfraquecido do
corvo, perguntou de um modo gracejador:
— Que é lá!? Quem passa?
Uma
voz quase soluçante, conservando a meiguice dum peito corajoso, e o vigor do
suspiro de um general moribundo nos campos de batalha, respondeu:
— Gente de paz, amigo. Descanso um momento.
— Olha um corvo! — gritou o papagaio cheio de
medo. Aqui del-rei que me come! Antônio, acode!
Mas
o corvo, com uma voz tranquila e cheia de bondade, serenou-o:
— Não te assustes... Não tenhas a meu respeito
a opinião do povo, que é errada. Sou meigo e infeliz. Tive filhos, casa, uma
companheira de muitos anos e tudo isto me roubaram os homens. Durante a minha
vida de um século, tenho visto mais barbaridades praticadas pelos corações
piedosos, do que todas as que atribuem à minha raça maldita.
O
papagaio, ainda receoso, mas cheio de curiosidade perguntou:
— Então não és feroz e cruel como dizem?
— Não. Tenho afetos; no alto dos meus queridos
rochedos, muita vez escutei com prazer o canto dos pássaros nossos irmãos e a
alguns quis imitar. Amigos meus e meus irmãos viveram entre homens, tornaram-se familiares,
chegando a compreender a linguagem que se fala. Eu sempre gostei do ar forte e
da liberdade das montanhas. Hoje enfraquecido e cheio de fome fui arrumado para
este telhado, pelo vento que toda a vida escarneci. Há muitos dias que não
como, dás-me alguma coisa d’isso que aí tens?
— Não posso — respondeu o egoísta. — O meu
arroz mal chega para mim... Tu também o não comias. Do que mais gostas, segundo
dizem, é de carne podre.
— Que remédio tenho eu, à falta de melhor? É o
único alimento dos infelizes que vivem nas solidões. Comemos tudo... a fome é
negra. O teu arroz cheira tão bem... Dá-me um bocadinho? Poucos minutos me
restam de vida. Deixa-me ao menos aproveitar da tua comida, isso que tu deitas forra
e desprezas.
***
Fez
um esforço para voar; mas não podia. No entretanto esse mesmo movimento de asas
atemorizou o papagaio que bradou:
—
Não te chegues, não te chegues! Tu o que desejas é comer o meu arroz e talvez
engolir-me a mim mesmo. Nada de brincadeiras. Essa tua fraqueza pode muito bem
ser fingida, para me enganares. Não te chegues, senão chamo o Antônio, o meu
amigo cozinheiro, que arranja coisinhas boas para o meu papinho, e se ele vem,
olha que dá cabo de ti.
O
corvo, quase agonizante, soluçava tremendo de frio e de fome:
— Não me odeies, lá por eu ter má opinião em
toda a gente. No tempo em que era forte, quantas vezes não cobri com o meu
corpo, muitos passarinhos que não podiam resistir à tempestade?! Fiz o bem que
pude. Socorre-me hoje, que estou para morrer.
O
papagaio, desconfiado e vaidoso, temendo que o rústico habitante dos píncaros
lhe sujasse a plumagem vistosa, ordenou:
— Então deixa-te estar aí. Vou pedir ao Antônio
que te deite um pedaço de carne, da que não presta. Talvez a não mereças; mas
devemos ser caridosos — concluiu espanejando-se.
O
velho corvo, já sem altivez, agradeceu com ternura na voz:
— Obrigado. Nosso Senhor to pague.
No
telhado porém, não podia resistir aos impulsos do vento. Confiado, ou
talvez contra vontade, deu um voo, do beiral onde estava, para o poleiro,
desculpando-se:
— Tem paciência. Não posso estar ali. Comerei neste
cantinho a esmola que me fazes.
Mas
a proximidade daquele corpo sujo, volumoso, de aspecto selvagem, assustou o tímido
papagaio real, que logo gritou forra de si:
— Ó Antônio. Traz o pau!...
E
esvoaçava sem querer pousar. Agarrava-se à corrente que o prendia ao comedouro.
Tremia de verdadeiro medo, ele saudável e nédio, diante deste habitante dos
rochedos, que estava a dar o último suspiro.
O
cozinheiro, ao ver o corpo imundo e repelente, perto do seu estimado papagaio,
exclamou irado:
— Olha o ladrão de um corvo!...
E
dando uma pancada no animal desfalecido, atirou-o sobre o lajedo da rua, onde o
desgraçado morreu logo. Em seguida, o Antônio com o fim de sossegar o seu
querido, passava-lhe com brandura a mão na cabeça dizendo:
— Cala-te louro, não tenhas medo. Queria-te
fazer mal? Levou a sua conta. Coitadinho do louro, coitadinho do louro.
Assim
se cumpre, muitas vezes, a justiça na terra. Meus filhos, não se deve acreditar
facilmente nas culpas daqueles que são infelizes, principalmente quando
precisam de que se lhes faça bem.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.
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