8/06/2023

Um corvo e um papagaio (Conto), de Teixeira de Queiroz


UM CORVO E UM PAPAGAIO
(CONTO PARA CREANÇAS, OFFERECIDO AOS MEUS FILHOS)

 

Isto passou-se no tempo dos animais falantes:

Um velho corvo, tendo de idade perto de um século, num dia de muita chuva e vento, veio, já sem forças, pousar na beira de um telhado. Este valente da amplidão dos ares, tinha perdido toda a arrogância do seu porte; encolhido e a tremer não se podia já ter nas pernas. A extremidade amarelada das suas penas, outrora tão negras, mostrava que padecia de velhice e de fome. Ao habitante eterno dos penhascos sombrios, ao motejador das tempestades que assustam os homens, coube-lhe o vir dar o último suspiro da sua longa vida, perto do comedouro farto e luxuoso de um vulgarismo papagaio real. Este, de papo cheio, e aquecido pelo ar tépido da cozinha, ao sentir a queda do corpo enfraquecido do corvo, perguntou de um modo gracejador:

 — Que é lá!? Quem passa?

Uma voz quase soluçante, conservando a meiguice dum peito corajoso, e o vigor do suspiro de um general moribundo nos campos de batalha, respondeu:

 — Gente de paz, amigo. Descanso um momento.

 — Olha um corvo! — gritou o papagaio cheio de medo. Aqui del-rei que me come! Antônio, acode!

Mas o corvo, com uma voz tranquila e cheia de bondade, serenou-o:

 — Não te assustes... Não tenhas a meu respeito a opinião do povo, que é errada. Sou meigo e infeliz. Tive filhos, casa, uma companheira de muitos anos e tudo isto me roubaram os homens. Durante a minha vida de um século, tenho visto mais barbaridades praticadas pelos corações piedosos, do que todas as que atribuem à minha raça maldita.

O papagaio, ainda receoso, mas cheio de curiosidade perguntou:

 — Então não és feroz e cruel como dizem?

 — Não. Tenho afetos; no alto dos meus queridos rochedos, muita vez escutei com prazer o canto dos pássaros nossos irmãos e a alguns quis imitar. Amigos meus e meus irmãos viveram entre homens, tornaram-se familiares, chegando a compreender a linguagem que se fala. Eu sempre gostei do ar forte e da liberdade das montanhas. Hoje enfraquecido e cheio de fome fui arrumado para este telhado, pelo vento que toda a vida escarneci. Há muitos dias que não como, dás-me alguma coisa d’isso que aí tens?

 — Não posso — respondeu o egoísta. — O meu arroz mal chega para mim... Tu também o não comias. Do que mais gostas, segundo dizem, é de carne podre.

 — Que remédio tenho eu, à falta de melhor? É o único alimento dos infelizes que vivem nas solidões. Comemos tudo... a fome é negra. O teu arroz cheira tão bem... Dá-me um bocadinho? Poucos minutos me restam de vida. Deixa-me ao menos aproveitar da tua comida, isso que tu deitas forra e desprezas.

***

Fez um esforço para voar; mas não podia. No entretanto esse mesmo movimento de asas atemorizou o papagaio que bradou:

— Não te chegues, não te chegues! Tu o que desejas é comer o meu arroz e talvez engolir-me a mim mesmo. Nada de brincadeiras. Essa tua fraqueza pode muito bem ser fingida, para me enganares. Não te chegues, senão chamo o Antônio, o meu amigo cozinheiro, que arranja coisinhas boas para o meu papinho, e se ele vem, olha que dá cabo de ti.

O corvo, quase agonizante, soluçava tremendo de frio e de fome:

 — Não me odeies, lá por eu ter má opinião em toda a gente. No tempo em que era forte, quantas vezes não cobri com o meu corpo, muitos passarinhos que não podiam resistir à tempestade?! Fiz o bem que pude. Socorre-me hoje, que estou para morrer.

O papagaio, desconfiado e vaidoso, temendo que o rústico habitante dos píncaros lhe sujasse a plumagem vistosa, ordenou:

 — Então deixa-te estar aí. Vou pedir ao Antônio que te deite um pedaço de carne, da que não presta. Talvez a não mereças; mas devemos ser caridosos — concluiu espanejando-se.

O velho corvo, já sem altivez, agradeceu com ternura na voz:

 — Obrigado. Nosso Senhor to pague.

No telhado porém, não podia resistir aos impulsos do vento. Confiado, ou talvez contra vontade, deu um voo, do beiral onde estava, para o poleiro, desculpando-se:

 — Tem paciência. Não posso estar ali. Comerei neste cantinho a esmola que me fazes.

Mas a proximidade daquele corpo sujo, volumoso, de aspecto selvagem, assustou o tímido papagaio real, que logo gritou forra de si:

 — Ó Antônio. Traz o pau!...

E esvoaçava sem querer pousar. Agarrava-se à corrente que o prendia ao comedouro. Tremia de verdadeiro medo, ele saudável e nédio, diante deste habitante dos rochedos, que estava a dar o último suspiro.

O cozinheiro, ao ver o corpo imundo e repelente, perto do seu estimado papagaio, exclamou irado:

 — Olha o ladrão de um corvo!...

E dando uma pancada no animal desfalecido, atirou-o sobre o lajedo da rua, onde o desgraçado morreu logo. Em seguida, o Antônio com o fim de sossegar o seu querido, passava-lhe com brandura a mão na cabeça dizendo:

 — Cala-te louro, não tenhas medo. Queria-te fazer mal? Levou a sua conta. Coitadinho do louro, coitadinho do louro.

Assim se cumpre, muitas vezes, a justiça na terra. Meus filhos, não se deve acreditar facilmente nas culpas daqueles que são infelizes, principalmente quando precisam de que se lhes faça bem.

 

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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2023.

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