CANNES,
3 DE JUNHO DE 1952
Pela manhã, depois do café, um rapaz amável veio convidar- me para um passeio nos arredores. Tencionava mostrar
castelos, várias preciosidades checas que certamente não me seria possível rever. Entrei no automóvel, ignorando quem fazia o convite. Ainda hoje ignoro. Possivelmente foi a Voks, entidade forte, polimorfa, visível ao mesmo tempo em diversos lugares. Deixamos a cidade, atravessamos aldeias, campos de lavoura onde se ensaia a coletivização. As terras dos proprietários ricos foram confiscadas. Perguntei se tinha havido indenização, e a resposta negativa me surpreendeu: haviam-me dito que o governo pagara os latifúndios pertencentes a indivíduos não hostis à revolução. A pequena propriedade e a média pouco a pouco aderiam às cooperativas agrícolas: uma intensa campanha mostrava aos camponeses as vantagens da associação. Entre essas culturas novas o caminho se estendia em rampas suaves, compridas retas, permitindo ao carro de boas molas cem quilômetros por hora. Junto à linha estreita de asfalto a primavera em começo enfeitava de branco extensos renques de árvores miúdas. Que plantas seriam aquelas? O rapaz amável informou: boire. Vendo-me a espantada ignorância, puxou a carteira, desenhou uma cabacinha:
— É uma espécie de maçã.
Bem. Pera. Os vegetais que se vestiam de flores alvas eram pereiras. Numa povoação letras enormes expostas no frontispício de uma casa larga foram traduzidas: estava ali uma escola onde se preparavam dirigentes revolucionários para o trabalho no campo.
Cerca de meio-dia, descanso de uma hora, almoço em Písek, cidadezinha antiga, onde se descobriram há tempo, na areia, pepitas de ouro. Písek, segundo me disseram, significa areia. Na sala do restaurante fervilhavam tipos exóticos de várias cores, delegados do Paquistão e da Índia na conferência econômica. Um, idoso, falou-me à saída, quis saber a minha terra e a minha profissão. Satisfiz-lhe a curiosidade e informei-me:
— Jornalista?
— Não. Homem de negócios.
Um sujeito moço, vigoroso, de rosto franco e simpático, apresentou-se: armênio, comerciante em Bombaim. Havia duas ou três mulheres azeitonadas, e uma figura estranha, de lividez fusca, expunha na máscara zombeteira, de olhar frio, de rugas duras, um sorriso permanente. A esquisita fisionomia lembrava um sátiro ou um diabo.
Esses entes dedicados à economia desapareceram. Outra vez o automóvel de boas molas, que amorteciam solavancos, rolou no asfalto, e no princípio da tarde chegamos ao primeiro castelo, do século XII. Realmente era mais velho, explicou a guardiã: já no século XII existia, e ignorava-se quando fora construído. Não há vestígio do fosso, da ponte levadiça, as muralhas derrocaram-se. Achando aberta uma porta baixa, penetrei nas masmorras, lôbregas, medonhas, o pavimento de lajes toscas em áspero declive. São três, e a comunicação entre elas é agora livre: vamos facilmente de uma a outra metendo-nos, como ratos, em buracos abertos nas paredes quase invisíveis na escuridão. A luz escassa vem de seteiras altas, exíguas: não passaria por elas a cabeça de um homem, a fuga seria impossível. Busquei as correntes, as grelhas, o torniquete, o potro, a roda. Em vão. Sondei os muros, na esperança de ver os sulcos que a roda lá deixara. Nenhum vestígio dos instrumentos de suplício.
Abandonando a furna tenebrosa, subimos, descemos escadas meio podres, invadimos a residência bárbara de um senhor feudal. Lá estão os móveis rudes, incômodos, as argolas onde se prendiam archotes fumarentos. Em vitrinas exibe-se uma ferragem que a umidade secular oxidou e decompôs: armas, ferraduras, pontas de lanças, esporas, um lixo amarelento, indicação de fortaleza para nós absurda. Os cofres onde se aferrolhava o tesouro arrancado lá embaixo, com tortura sábia, parecem-nos bem frágeis. Num armário, pratos de metal reles, pequenos, amassados, fazem-nos pensar nos banquetes em que a nobreza anterior aos talheres comia com as mãos, lambendo os dedos, sujando os mantos com a gordura do javali. Nesta sala o homem poderoso recebia poderes subalternos. Dez ou doze cadeiras toscas, diversas na altura, colocam-se de maneira esquisita, os espaldares voltados para a mesa de tamanho bem mesquinho. Essa disposição era necessária: de outro modo os cavaleiros se enganchariam nas espadas. Assim, cavalgando os móveis, cruzando os braços nos encostos, ficavam com os movimentos livres. A diferença na altura das cadeiras relacionava-se com o tamanho das pessoas que nelas se sentavam. Não se referia ao tamanho físico, provavelmente, mas ao tamanho social.
Manchando a roupa na caliça, galgamos a custo numerosos degraus carunchosos, chegamos ao terraço da torre principal, vimos na planície dois rios próximos, quase a juntar-se. Entre eles se erguia a fortaleza caduca, e isto noutras épocas lhe constituíra defesa. Ali pela vizinhança espalhavam-se há mil anos miseráveis cabanas de servos que, em horas de aperto, se comprimiam como rebanho no pátio exíguo, mendigando uma proteção horrivelmente cara. Se escapassem dali, morreriam na labuta escrava.
Descemos. Algum tempo depois estávamos no castelo de Orlik, do século XVIII, confortável, cheio de preciosidades que dariam sem dúvida um catálogo erudito. Duas livrarias, uma sala onde se exibem troféus, enormes dentes de bichos, panóplia extensa e complicada, larga coleção numismática onde se veem moedas do tempo de Augusto. O conde Svarcenberk, possuidor dessas maravilhas, gostava da guerra, da caça e da leitura. Nas salas de estudo numerosas estantes se abarrotam de livros certamente preciosos, com admiráveis encadernações. Os troféus, expostos em comprida galeria, nas paredes, no teto, dizem-nos que o excelente fidalgo, em vez de cortar sarracenos e demolir cristãos, dever de seus avós, apenas se contentava com a destruição de bichos desprovidos de almas. A panóplia exibe armas cortantes, perfurantes, contundentes, de arremesso e de percussão, mas podemos supor que nunca tenham servido para matar alguém. Linhas de fuzis magníficos, verdadeiras joias, os canos recobertos de ouro. Não suprimimos os nossos irmãos com instrumentos caros assim. Um tiro arruinaria o objeto valioso, construído para museu. O conde Svarcenberk, diz-me o condutor amável, utilizou a fome do povo, arranjou trigo no exterior e vendeu farinha arrancando a pele da gente exausta. Enorme retrato oferece-nos à vista a nobre figura do fidalgo. Dignidade e inteligência. Telas secundárias nos mostram seus filhos, menos inteligentes e menos dignos, é claro. Os pintores não se esqueceram de guardar as proporções.
O terceiro castelo, que vimos ao cair da noite, é uma casa moderna, e nem sei como lhe deram o nome pomposo de castelo. Foi tomado pelo governo, possivelmente a algum nobre arranjado à pressa, um desses burgueses que arrumam antepassados e glória com dinheiro. Certo não esperamos achar lá prisões horríveis, degraus perigosos, armas corroídas pela ferrugem; mas poderíamos ver coleções de moedas, biblioteca, panóplia inocente. Nada disso. É um prédio atual, prosaicamente insulso e atual, onde se hospedam hoje pessoas ilustres, segundo me afirmaram no aeródromo. Ofereceram-nos aí um chá. Nas mesas próximas à nossa, homens graves, encanecidos, diziam em silêncio que aquilo era um recanto de meditação.
Voltamos à
cidade. Um dia gasto a pensar em ver coisas que virão, coisas que se foram. O
futuro e o passado. E o presente? O presente é um horrível hiato: nele se
acumulam dificuldades medonhas.
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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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