12/29/2023

Carnaval 1910 (Crônica), por Graciliano Ramos

 


CARNAVAL 1910

Em três dias bem desagradáveis. Sujeitos precavidos fechavam-se, olhavam suspeitosos a rua, mas isto não os livraria de pesares: se se distraíam, inundavam-nos jatos d’água suja. Iam mudar a roupa, furiosos. Avizinhavam-se depois das janelas, atentos aos moleques armados de bisnagas enormes de bambu. Além desses inimigos, havia os indivíduos que traziam, em mochilas, pacotes de alvaiade, zarcão, ocre, tintas de todas as cores, com que se pintavam os transeuntes.

Um doutor verboso declamava discursos irados nas esquinas, referia-se aos selvagens, aos tupinambás. Ninguém lhe dava importância — e a zanga esfriava. Bem, agora, molhado, não valia a pena recolher-se. O jeito que tinha era entrar na função, tornar-se também selvagem, vingar-se, provocar outras indignações e arrastar para a folia os amigos cautelosos.

Animavam-se todos e perdiam a compostura, acabavam achando aquilo interessante. Alguns viam perfeitamente que estavam fazendo maluqueira, e desregravam-se com moderação, quase a pedir desculpas encabuladas à cidadezinha pacata. Homens graves, pais de família, tisnados, bebendo, aos gritos. Mau exemplo, doidice. Na quarta-feira retomariam a sisudez necessária.

Cadeiras nas calçadas. Meninas sérias e bicudas reprovando os excessos, sacudindo com espanto e enjoo as cabeças, onde se arrumavam papelotes. Não se contaminavam, estavam livres da pintura, dos banhos, de atracações perigosas: comportavam-se direito, como se aguardassem a passagem da procissão. Rapazes ousados atiravam nelas esguichos d’água-de-cheiro e eram mal recebidos. Muxoxos. Que assanhamento! Nada de confiança. Brincadeira com moça findava na igreja ou rendia pancada. Os desejos não se escondiam sob nuvens de confete, não se amarravam com serpentinas, não se excitavam com éter.

Ainda se desconhecia o automóvel. A gente escassa pezunhava nas barrocas do calçamento ruim, equilibrava-se nas pedras pontudas.

As negras se haviam tingido com papel vermelho molhado. E andavam tesas para não desmanchar os enfeites do pixaim, branco de fiapos.

De longe em longe desfilavam parafusos, tipos envoltos em numerosas anáguas que se iam encurtando. As de cima, perto do pescoço, eram camisas de crianças. Esses espantalhos andavam inchados por dentro e por fora, pacholas, cobertos de renda engomada.

Papangus vagabundos enrolavam-se em sacos de estopa, sujos, as caras escondidas em fronhas, as mãos calçadas em meias. 

Bobos de máscaras horríveis se esforçavam por aterrorizar os meninos. Gingavam, falavam rouco e fanhoso:

— Você me conhece?

Se não conseguiam disfarçar-se, recebiam vaia e ficavam arreliados.

O índio, de penacho e tanga, era personagem obrigatória e silenciosa.

Passava o cordão, levantando poeira, causando entusiasmo. Um frevo decente em redor da porta-bandeira. Repetiam-se cantigas de dez anos sem nenhuma alteração, muito bem ensaiadas. As figuras marchavam na disciplina; o homem da maromba conduzia o bando, importante; papai velho exibia vaidoso a cabeleira de algodão e as longas barbas de espanador; o morcego, na frente, fazia piruetas, agitando as asas de guarda-chuva.

Mascarados solitários produziam hilaridade com pilhérias antigas e ditos grosseiros, inconvenientes. Outros, reunidos, formavam as críticas, motivo de receios e alarmas. Alusões a notáveis acontecimentos do lugar, comentários a fatos melindrosos e particulares, mexericos tolos, sem graça nenhuma. Criavam-se inimigos. E às vezes se liquidavam contas velhas.

Um cidadão espiava o morcego e o parafuso, de longe. Dois ou três embuçados musculosos entravam-lhe em casa, batiam-no a cacete. Berros, súplicas, sangue, apitos, sumiam-se na festa. Ninguém sabia donde vinham as pauladas — e era bom evitar opiniões. No ano seguinte as críticas seriam menos ofensivas.

Rio de Janeiro, março de 1941.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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