12/29/2023

Teatro II (Crônica), por Graciliano Ramos


TEATRO II

Na cidadezinha do interior, ingênua e presunçosa, há uma sociedade beneficente, um grêmio literário e uma banda de música. A sociedade beneficente distribui esmolas com moderação e enterra os mortos; o grêmio literário funciona, emperra, fica às vezes um ano inteiro sem dar sinal de vida, torna a animar-se na posse da diretoria, encrenca de novo; a filarmônica ensaia dobrados à noite e é indispensável nas festas grandes e nas recepções dos políticos notáveis da capital.

Havia uma escola dramática. Extinguiu-se depois do cinema: os amadores, vendo a tela, perceberam que não faziam nada com jeito e largaram o palco, envergonhados.

Provavelmente o rádio matará a filarmônica, os hospitais suprimirão a sociedade beneficente, os livros, que se multiplicam, inutilizarão o grêmio literário. Há alguns anos, porém, sem livros e sem rádio, sem hospitais e sem cinema, cada um tinha o direito de fundar qualquer coisa. No grêmio recomendava-se a linguagem sublime; na música, muito barulho; na caridade, alguns xaropes e enterro.

Isso vai-se modificando pouco a pouco. Mas o teatro desapareceu de chofre, receoso das fitas.

Possuímos um teatro na roça, vagabundo, mas enfim teatro. Vale a pena mencioná-lo, pelo menos para evidenciar a nossa modéstia e a nossa carência de imaginação.

O drama começava às sete horas, acabava às duas da madrugada, e se havia comédia, a função prolongava-se até perto das quatro, pois a caracterização das personagens, com muitas tintas, e a mudança dos cenários, com muitos pregos, eram difíceis. Gritos nos camarins, pancadas de martelo na caixa, atenazavam a plateia que lia o jornal, sob candeeiros de querosene, discutia política, fuxicava ou dormia nos intervalos. O palco se armava em cima de barricas, num armazém; o pano de boca exibia um índio com arco e flechas ou uma figura mitológica feminina, Vênus ou Diana; as cadeiras eram remetidas pelos espectadores, na cabeça dum moleque. Apresentavam-se móveis decentes: sofás, poltronas e marquesões. Aí se acomodavam como se estivessem em família, aguardavam com paciência o desenrolar da peça, que tinha cinco atos e às vezes um prólogo.

Neste víamos uma floresta, onde vários ladrões, em noite de trovoada, conversavam, jogavam, entravam, saíam e no fim de meia hora apunhalavam à traição um viajante portador de considerável riqueza, suficiente para a felicidade completa da companhia toda. O chefe, porém, homem tenebroso, de longas barbas negras, guardava o produto do roubo, desfazia-se dos sequazes e ia viver muito longe, honesto e considerado. Em geral essa parte não se representava: subentendia-se, explicava-se nos diálogos. E, tendo visto em outras execuções as barbas compridas, os punhais e os bastidores pintados de verde, imaginávamos sem esforço o início do Brado da consciência ou da Regeneração dum bandido.

No primeiro ato o maioral da quadrilha achava-se transformado em comendador ou barão, comerciante, industrial, banqueiro, viúvo, proprietário duma filha inocente demais, ou solteiro, noivo da filha dum indivíduo semelhante a ele, barão ou comendador. O futuro sogro estava ligado ao futuro genro: dívidas, crimes antigos, trapalhadas inconfessáveis. Chantagem. A pobre Irene seria sacrificada. Era penoso, e o público soluçava, limpava os óculos, achando natural que a sociedade se constituísse de barões em cima e salteadores embaixo. Facilmente os salteadores entravam na classe dos barões. No meio havia um moço de boa índole, guarda-livros ou poeta, que possuía enorme seriedade e quebrava as forças de Irene. Não bebia, não jogava, não fumava, não conhecia mulheres, e o único defeito que tinha era falar bonito. “Plebeu, sim, senhor barão. Filho da plebe que derrocou a Bastilha, que levantou para o céu da glória a luz redentora de 89 e 93.” Isto se declamava no quinto ato e produzia grande efeito. O rapaz havia descoberto as safadezas do barão e do outro, aplicava a chantagem. O primeiro dava um tiro nos miolos, ouvindo o grito da consciência, ou regenerava-se de repente, o segundo fugia, Irene entregava-se ao poeta, chorosa e rica, toda a gente se manifestava num imenso aplauso, achando excessiva a luz redentora de 89 e 93, desconhecida e, portanto, valiosa. Números diferentes seriam recebidos com o mesmo entusiasmo. Tudo acabava de maneira edificante: premiava-se a virtude, castigava-se o vício, o guarda-livros tornava-se comendador ou barão.

Na comédia moviam-se figuras análogas, um pouco mais ridículas. A protagonista, mocinha espevitada e frenética, dizia inconveniências ao pai ou tio, velho e bobo. Um proprietário idoso, contrafação do homem das barbas, atirava-se a ela, e mudavam-se em demasiada toleima as qualidades ruins, os crimes e as patifarias que no drama o caracterizavam. O galã tomava a forma de um estudante cheio de lábias. A frase retumbante sobre a luz redentora de 89 convertia-se, com ligeiras modificações, no diagnóstico estapafúrdio que, há duzentos anos, o Semicúpio, de Antônio José, fazia da moléstia de D. Tibúrcio.

Essa comédia, não obstante as inevitáveis corruptelas, seguia a tradição. Não lhe faltava o alcoviteiro manhoso, também existente no drama, Fígaro naturalmente reduzido, incapaz de usar os trocadilhos que o sertão não compreenderia. De cópia em cópia deturpava-se o espírito. E utilizavam-se as pilhérias tolas e grosseiras, convenientes ao indivíduo comum do interior.

 

Rio de Janeiro, outubro de 1941.


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Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.

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