TEATRO II
Na cidadezinha
do interior, ingênua e presunçosa, há uma sociedade beneficente, um grêmio
literário e uma banda de música. A sociedade beneficente distribui esmolas com
moderação e enterra os mortos; o grêmio literário funciona, emperra, fica às
vezes um ano inteiro sem dar sinal de vida, torna a animar-se na posse da
diretoria, encrenca de novo; a filarmônica ensaia dobrados à noite e é
indispensável nas festas grandes e nas recepções dos políticos notáveis da
capital.
Havia uma
escola dramática. Extinguiu-se depois do cinema: os amadores, vendo a tela,
perceberam que não faziam nada com jeito e largaram o palco, envergonhados.
Provavelmente
o rádio matará a filarmônica, os hospitais suprimirão a sociedade beneficente,
os livros, que se multiplicam, inutilizarão o grêmio literário. Há alguns anos,
porém, sem livros e sem rádio, sem hospitais e sem cinema, cada um tinha o
direito de fundar qualquer coisa. No grêmio recomendava-se a linguagem sublime;
na música, muito barulho; na caridade, alguns xaropes e enterro.
Isso vai-se
modificando pouco a pouco. Mas o teatro desapareceu de chofre, receoso das
fitas.
Possuímos um
teatro na roça, vagabundo, mas enfim teatro. Vale a pena mencioná-lo, pelo
menos para evidenciar a nossa modéstia e a nossa carência de imaginação.
O drama
começava às sete horas, acabava às duas da madrugada, e se havia comédia, a
função prolongava-se até perto das quatro, pois a caracterização das
personagens, com muitas tintas, e a mudança dos cenários, com muitos pregos,
eram difíceis. Gritos nos camarins, pancadas de martelo na caixa, atenazavam a
plateia que lia o jornal, sob candeeiros de querosene, discutia política,
fuxicava ou dormia nos intervalos. O palco se armava em cima de barricas, num
armazém; o pano de boca exibia um índio com arco e flechas ou uma figura
mitológica feminina, Vênus ou Diana; as cadeiras eram remetidas pelos
espectadores, na cabeça dum moleque. Apresentavam-se móveis decentes: sofás,
poltronas e marquesões. Aí se acomodavam como se estivessem em família, aguardavam
com paciência o desenrolar da peça, que tinha cinco atos e às vezes um prólogo.
Neste víamos
uma floresta, onde vários ladrões, em noite de trovoada, conversavam, jogavam,
entravam, saíam e no fim de meia hora apunhalavam à traição um viajante portador
de considerável riqueza, suficiente para a felicidade completa da companhia
toda. O chefe, porém, homem tenebroso, de longas barbas negras, guardava o
produto do roubo, desfazia-se dos sequazes e ia viver muito longe, honesto e
considerado. Em geral essa parte não se representava: subentendia-se,
explicava-se nos diálogos. E, tendo visto em outras execuções as barbas
compridas, os punhais e os bastidores pintados de verde, imaginávamos sem
esforço o início do Brado da consciência ou da Regeneração dum bandido.
No primeiro
ato o maioral da quadrilha achava-se transformado em comendador ou barão,
comerciante, industrial, banqueiro, viúvo, proprietário duma filha inocente
demais, ou solteiro, noivo da filha dum indivíduo semelhante a ele, barão ou
comendador. O futuro sogro estava ligado ao futuro genro: dívidas, crimes
antigos, trapalhadas inconfessáveis. Chantagem. A pobre Irene seria
sacrificada. Era penoso, e o público soluçava, limpava os óculos, achando
natural que a sociedade se constituísse de barões em cima e salteadores
embaixo. Facilmente os salteadores entravam na classe dos barões. No meio havia
um moço de boa índole, guarda-livros ou poeta, que possuía enorme seriedade e
quebrava as forças de Irene. Não bebia, não jogava, não fumava, não conhecia
mulheres, e o único defeito que tinha era falar bonito. “Plebeu, sim, senhor
barão. Filho da plebe que derrocou a Bastilha, que levantou para o céu da
glória a luz redentora de 89 e 93.” Isto se declamava no quinto ato e produzia
grande efeito. O rapaz havia descoberto as safadezas do barão e do outro,
aplicava a chantagem. O primeiro dava um tiro nos miolos, ouvindo o grito da
consciência, ou regenerava-se de repente, o segundo fugia, Irene entregava-se
ao poeta, chorosa e rica, toda a gente se manifestava num imenso aplauso,
achando excessiva a luz redentora de 89 e 93, desconhecida e, portanto,
valiosa. Números diferentes seriam recebidos com o mesmo entusiasmo. Tudo
acabava de maneira edificante: premiava-se a virtude, castigava-se o vício, o guarda-livros
tornava-se comendador ou barão.
Na comédia
moviam-se figuras análogas, um pouco mais ridículas. A protagonista, mocinha
espevitada e frenética, dizia inconveniências ao pai ou tio, velho e bobo. Um
proprietário idoso, contrafação do homem das barbas, atirava-se a ela, e
mudavam-se em demasiada toleima as qualidades ruins, os crimes e as patifarias
que no drama o caracterizavam. O galã tomava a forma de um estudante cheio de
lábias. A frase retumbante sobre a luz redentora de 89 convertia-se, com
ligeiras modificações, no diagnóstico estapafúrdio que, há duzentos anos, o
Semicúpio, de Antônio José, fazia da moléstia de D. Tibúrcio.
Essa comédia,
não obstante as inevitáveis corruptelas, seguia a tradição. Não lhe faltava o
alcoviteiro manhoso, também existente no drama, Fígaro naturalmente reduzido,
incapaz de usar os trocadilhos que o sertão não compreenderia. De cópia em
cópia deturpava-se o espírito. E utilizavam-se as pilhérias tolas e grosseiras,
convenientes ao indivíduo comum do interior.
Rio de Janeiro, outubro de
1941.
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2024.
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