3/13/2025

Barba Azul (Charles Perrault), por Monteiro Lobato

 

BARBA AZUL

Era uma vez um homem que possuía belas casas na cidade e no campo, mobília de luxo, prataria e carruagens. Mas por desgraça tinha a barba azul, o que o tornava tão feio e terrível que todas as mulheres fugiam dele.

Uma das suas vizinhas, que era fidalga, tinha duas filhas perfeitamente belas. Barba Azul pediu uma em casamento — uma qualquer, a mãe que escolhesse. Mas as duas moças não queriam saber dele, não só por causa da barba azul como também porque já havia casado várias vezes e ninguém sabia o fim que as mulheres levavam.

Barba Azul, para melhor decidi-las, levou-as com a mamãe e mais três ou quatro dos seus melhores amigos a uma casa de campo, onde passaram oito dias. Eram passeios e mais passeios, caçadas, pescarias, danças e jantares — uma festa contínua; as moças quase que não dormiam, passando as noites em divertimentos e brincadeiras. E o caso foi que a menina mais moça gostou tanto daquela vida que perdeu a cisma com o Barba Azul e começou até a achar que era um homem muito bom. E casou-se com ele, logo que voltaram à cidade.

No fim de um mês Barba Azul disse à sua nova espôsa que tinha de fazer uma viagem longa, dumas seis semanas no mínimo, para um negócio de muita importância, e pediu-lhe que se divertisse quanto quisesse durante a sua ausência. Poderia convidar amigas e levá-las para o campo e festejá-las com toda a largueza.

— Aqui estão, disse ele, as chaves de todas as salas; estas as chaves do quarto onde estão as baixelas de ouro e prata; estas, as dos cofres onde estão todo o meu ouro e pedras preciosas. E esta aqui, pequena, é a chave do gabinete que fica ao fundo da galeria. Ande por onde quiser, abra o que quiser, menos esse gabinete. Se abri-lo terá de contar com a minha cólera.

A jovem esposa prometeu fazer tudo como ele dizia — e Barba Azul entrando na sua carruagem partiu.

Os vizinhos e as amigas não esperaram que a moça os convidasse; foram aparecendo, um atrás do outro, de tão ansiosos que andavam por conhecer as famosas riquezas daquela casa. Não tinham vindo antes porque a presença do homem de barba azul os assustava. Vieram e puseram-se a correr o palácio — porque era um verdadeiro palácio a casa. Correram-no inteirinho e visitaram todas as salas e todos os quartos, cada qual mais rico que o outro. Aquelas mobílias raras, aquelas tapeçarias, aqueles espelhos enormes em que uma pessoa se via da cabeça aos pés, eram as coisas mais ricas que todos ainda haviam visto. E as amigas não paravam de invejar a sorte da moça que se casara com tão opulento senhor; ela porém nem dava tento à conversa; sua preocupação era uma só — ver o que havia dentro do tal gabinete misterioso.

E não podendo por mais tempo dominar a curiosidade, cometeu a grosseria de largar dos visitantes para correr até ao fim da galeria grande onde ficava o gabinete. Tal era a sua pressa que ao descer por uma escadinha de serviço quase quebrou o pescoço. Chegou afinal diante da porta do gabinete e parou, receosa, pensando no que poderia acontecer-lhe caso desobedecesse as ordens do marido. Mas a curiosidade venceu o medo — e ela abriu a porta.

A princípio não viu nada, porque fazia escuro lá dentro. Mas depois que seus olhos se foram acostumando à escuridão, começou a ver coisas esquisitas. Viu manchas de sangue no chão e viu, também pendurados à parede, vários corpos de mulheres: eram todas as esposas que Barba Azul havia tido e que degolara uma por uma. A moça quase morreu de medo e a chave do gabinete, que tinha nas mãos, caiu por terra.

Depois que voltou a si do grande susto apanhou a chave, saiu do gabinete, fechou a porta e foi para o seu quarto a fim de recompor-se antes de aparecer novamente para os hóspedes; mas não o conseguiu. Seu corpo tremia como geléia.

Havendo notado que a chave do gabinete estava manchada de sangue, ela a limpou várias vezes, sem nada conseguir; nem lavando e esfregando com areia aquele horrível sangue desaparecia. Isso porque a chave era uma fada e quando as manchas sumiam de um lado reapareciam de outro.

Barba Azul não demorou na viagem tanto tempo como disse; voltou logo depois, dizendo ter recebido cartas no caminho anunciando que dispensavam a sua presença no tal negócio. Sua mulher ficou embaraçada com a volta repentina, mas fez o que pôde para mostrar contentamento.

No dia seguinte Barba Azul pediu-lhe as chaves e a moça entregou-as com mão trêmula. Isso o fez adivinhar o que se havia passado.

— Por que a chave do gabinete não está com as outras? perguntou ele.

— Oh, esqueci-me dela em cima da mesa, respondeu a moça.

— Pois não esqueça de trazer-ma quanto antes, disse ele.

A coitada demorou o mais que pôde; por fim teve de entregar a chave.

— Sangue na chave? perguntou ele. Por que isto?

— Não sei! disse a mulher mais pálida que a morte.

— Não sabe, hein? disse Barba Azul. Pois eu sei. A senhora entrou no gabinete contra as minhas ordens e já que fez isso terá de ficar lá em companhia das outras.

A pobre moça lançou-se aos pés do marido desfeita em lágrimas e pediu-lhe mil perdões da falta cometida, prometendo nunca mais desobedecê-lo dali por diante. Suas lágrimas teriam enternecido uma pedra; mas o coração de Barba Azul era mais duro que pedra.

— Tem de morrer, senhora, disse ele, e imediatamente.

— Já que tenho de morrer, suplicou a mísera, dê-me um pouco de tempo para rogar a Deus.

— Tem meio quarto de hora para isso, nem mais um minuto! foi a resposta do monstro.

Quando se viu só, a moça chamou a irmã e disse-lhe: Minha cara irmã Ana, peço que suba ao alto da torre para ver se meus irmãos vêm vindo. Eles prometeram vir visitar-me hoje. Se por acaso os avistar peça-lhes que corram a toda!

A irmã Ana subiu ao alto da tôrre e a pobre condenada volta e meia lhe gritava muito aflita:

— Ana, minha irmã Ana, diga-me se eles já vêm vindo!

E a irmã Ana respondia:

— Nada mais vejo, senão o sol a iluminar os campos.

Logo depois Barba Azul, com uma grande faca na mão, pôs-se a gritar para a esposa:

— Desça, se não subirei até aí.

— Espere um pouco mais, senhor, um momentinho só, respondeu ela — e voltando-se para a irmã Ana perguntou em voz baixa: Não apontaram ainda?

— Nada vejo, senão o sol a iluminar os campos, foi a resposta.

— Desça depressa! insistia Barba Azul, já terminou o prazo.

— Já vou descendo — e para a irmã Ana, baixinho: E agora, irmã Ana?

— Vejo uma poeirada lá longe...

— Serão eles?

— Infelizmente não. Apenas um rebanho de carneiros.

— Então não desce? gritou Barba Azul.

— Um momentinho só ainda! respondeu a moça e para a irmã: Ana, e agora, que vê?

Vejo dois cavaleiros na disparada, mas estão muito longe ainda. Deus seja louvado! São eles! exclamou logo depois. Estou fazendo sinais para que corram o mais que possam.

Mas Barba Azul estava impaciente e pôs-se a gritar com tal fúria que toda a casa tremeu. A pobre moça teve de descer e foi arrojar-se aos seus pés, toda desgrenhada e em lágrimas, implorando misericórdia.

— Não adianta chorar, disse Barba Azul. Tem de morrer como as outras, e agarrando-a pelos cabelos com uma das mãos, com a outra ergueu no ar a terrível faca. A infeliz moça pediu-lhe ainda uns segundos mais para recolher-se e encomendar a alma a Deus.

— Não, não, respondeu o monstro erguendo a faca. Vai morrer já!

Mas nesse momento a porta da sala abriu-se com violência e dois cavaleiros entraram de espada em punho. Barba Azul viu logo que eram dois mosqueteiros irmãos da sua mulher, de modo que só poderia esperar a salvação na fuga. E fugiu, mas os cavaleiros o perseguiram valentemente e o alcançaram antes que ele pusesse o pé na estrada. E o vararam com as espadas e o mataram bem matado. A pobre moça ergueu-se mais morta que viva e mal teve força para abraçar os seus irmãos.

A justiça verificou que Barba Azul não tinha herdeiros, de modo que toda a sua fortuna cabia à última esposa. A viúva de Barba Azul ficou pois riquíssima, e empregou parte do dinheiro para casar a irmã Ana e parte para fazer seus irmãos subirem de posto na milícia em que estavam. O resto ficou para ela mesma, e serviu para o seu casamento com um moço muito bonito e bom, que a fez esquecer dos maus pedaços que passara com Barba Azul.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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