3/14/2025

O Gato de Botas (Charles Perrault), por Monteiro Lobato



O GATO DE BOTAS

Um dono de moinho ao morrer deixou para os seus três filhos três coisas para o primeiro o moinho, para o segundo um asno e para o terceiro um gato, Este ficou triste, porque receber de lembrança um gato é o mesmo que receber nada.

― Meus irmãos podem ganhar a vida honestamente, se se associarem, queixava-se ele; mas eu só poderei comer o gato e fazer umas luvas da sua pele; depois disso terei de morrer de fome.

O gato ouviu a lamúria e disse:

  Não se aflija, meu amo; basta que me dê um par de botas e um saco, e mostrarei que não foi tão infeliz na partilha da herança como está imaginando.

O moço já tinha visto aquele gato fazer tantas proezas na caça aos ratos, e dar tantos pulos, e esconder-se tão bem na farinha, fingindo-se de morto, que não achou fora de propósito o que ele dizia  ― e deu-lhe o saco pedido e mais o par de botas.

O gato calçou as botas, pôs o saco ao ombro e dirigiu-se a um ervaçal onde havia muitos coelhos. Lá deitou-se, fingindo-se de morto, depois de haver colocado no saco umas iscas. E ficou à espera de que algum coelhinho inexperiente das astúcias do mundo viesse lambiscar naquele petisco.

Não tardou que isso acontecesse. Um coelhinho tonto farejou a isca e, vendo que o gato estava morto, meteu-se no saco. O morto ressuscitou e nhoque! matou o coitadinho.

Glorioso da sua façanha, o gato dirigiu-se ao palácio do rei, onde declarou que queria falar com Sua Majestade. Os guardas levaram-no para os aposentos reais. O gato fez uma grande reverência e disse ao rei:

― Aqui tem Vossa Majestade um belo coelho que o Senhor Marquês de Carabas (foi o nome que ele inventou para o seu amo) me encarregou de oferecer a Vossa Majestade.

― Diga ao marquês, vosso amo, respondeu o rei, que eu muito lhe agradeço o belo presente.

Depois de retirar-se do palácio o gato foi esconder-se num trigal, tendo sempre o saco aberto diante de si com a isca dentro, logo que duas perdizes entraram, matou-as e foi ao palácio para oferecer ao rei mais aquele presente do Marquês de Carabas. O rei recebeu-o com agrado, ordenando que lhe dessem uma recompensa.

E assim continuou o gato durante dois ou três meses, levando sempre ao rei preciosas peças de caça da parte de seu amo marquês. Um dia em que soube que o rei iria fazer um passeio pelas margens do rio, acompanhado da sua filha que era a mais linda princesa do mundo, o gato de botas disse ao seu amo:

  Se o senhor seguir meu conselho estará com a fortuna feita. Basta que vá banhar-se no rio no lugar por mim indicado. O resto fica por minha conta.

O Marquês de Carabas fez o que o gato disse, sem indagar quais eram os seus planos, e estava no banho quando aconteceu passar o rei acompanhado da princesa sua filha. O gato pôs-se imediatamente a gritar com toda a força: Acudam! Acudam! O senhor Marquês de Carabas está-se afogando!

Ao ouvir esses gritos o rei botou a cabeça fora da carruagem e logo reconheceu o animalzinho que lhe havia levado tantos presentes. Ordenou então aos guardas que fossem acudir o Marquês de Carabas.

Enquanto os guardas retiravam o marquês do rio, o gato chegou-se à carruagem e explicou ao rei que enquanto o seu amo se banhava tinham vindo ladrões, que lhe roubaram todas as roupas. O rei acreditou e deu ordem para que os oficiais do seu guarda-roupa fornecessem o marquês com os mais belos vestuários, e ainda lhe fez outras amabilidades. Os vestuários trazidos assentaram muito bem ao rapaz, que era bonito de cara e bem feito de corpo, de modo que a filha do rei começou imediatamente a gostar dele.

O rei convidou-o para subir à sua carruagem a fim de tomar parte no passeio. Radiante de alegria por ver que seus planos começavam a dar resultado, o gato de botas saiu a correr na frente da carruagem. Encontrou uns camponeses que ceifavam trigo e ameaçou-os:

― Se vocês não disserem ao rei que estes campos pertencem ao Marquês de Carabas, serão todos picados bem miudinho, ouviram?

Quando o rei passou por ali e indagou a quem pertenciam aqueles campos, os camponeses aterrorizados responderam em coro:

― Pertencem ao Marquês de Carabas!

  Oh, o senhor possui uma bela propriedade! disse o rei ao moço.

― É um campinho regular, comentou ele com modéstia. Sempre me dá alguma coisa cada ano.

Mais adiante o gato encontrou mais camponeses que amontoavam feixes de trigo e repetiu a mesma ameaça ― ou diziam ao rei que o trigo pertencia ao Marquês de Carabas ou seriam picados bem miudinho. Minutos depois, quando o rei passou e indagou de quem era o trigo, todos responderam incontinenti: "Do Marquês de Carabas, senhor!" O rei de novo deu parabéns ao moço. E assim por diante.

O gato chegou depois a um castelo que pertencia a um papão riquíssimo, porque todas as terras que ficavam à margem do caminho eram de sua propriedade. Informou-se logo de tudo e pediu licença para falar com o papão, alegando que não queria passar por ali sem lhe render as suas homenagens.

O papão recebeu-o com a gentileza possível num papão e mandou-o sentar-se.

― Ouvi dizer, começou o gato, que o senhor tem o dom de transformar-se em qualquer animal que queira, num elefante, por exemplo. Será verdade?

― É sim, para dar uma prova vou transformar-me em leão.

E transformou-se num leão, com imenso pavor do gato, que de um pulo foi parar no telhado, com botas e tudo. E lá ficou até que o monstro retomasse a sua forma primitiva. Desceu então e disse-lhe:

— Muito bem, senhor papão! Mas igualmente ouvi dizer que o senhor se transforma também em animais pequeninhos, num camundongo, por exemplo, e achei demais ― não pude acreditar. Parece-me coisa impossível.

― Impossível? roncou o papão. Pois vou mostrar que é possibilíssimo e imediatamente transformou-se num ratinho. O gato de botas — nhoque! agarrou-o dum bote e comeu-o.

Nisto aproximou-se a carruagem do rei, o qual viu o lindo castelo e mostrou desejos de descansar ali. O gato correu ao portão para recebê-lo.

― Entre, Majestade, e seja bem-vindo neste castelo do Senhor Marquês de Carabas.

― Como, Senhor Marquês? exclamou o rei admirado. Então este castelo também é seu? Oh, é uma vivenda principesca!

 O moço concordou modestamente que sim, que não

era má a vivenda e dando a mão à jovem princesa ajudou-a a descer da carruagem. Depois acompanhou o rei até o salão das festas, onde encontrou a mesa posta para um suntuoso banquete que o papão havia preparado para os seus amigos.

O rei ficou encantado com as boas qualidades e a riqueza do marquês, e no meio do banquete lhe disse:

― Pois, meu caro marquês, creio que depende unicamente de si tornar-se meu genro...

O moço fez uma grande reverência para agradecer a distinção que o rei lhe conferia ― e nessa mesma semana casou-se com a princesa. O gato de botas ficou sendo o mais importante fidalgo da corte e até o fim da vida nunca mais perseguiu os ratos senão por divertimento.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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