3/17/2025

Espertezas de Bertoldo ("Histórias da Baratinha"), por Figueiredo Pimentel


ESPERTEZAS DE BERTOLDO

Bertoldo era o homem mais feio que existia no mundo.

Muito baixo, quase anão, gordo, excessivamente gordo, com as perninhas curtas, tão curtas que mal se viam, quando andava parecia uma abóbora rolando.

Além disso, era corcunda, tinha os olhos tortos, cada um para um lado, o nariz achatado e a cara toda picada de bexigas.

Era um monstro de fealdade, causando riso e pena ao mesmo tempo a quem o via.

Em compensação a natureza dotou-o de finíssimo, espírito, sempre pronto para respostas, aliado à inteligência clara e cultivada.

Um dia Bertoldo resolveu-se a ir à corte do rei.

Saiu de sua aldeia e tomou a estrada que conduzia à capital do reino.

Aí chegando, quis ver o palácio, e entrou pela porta principal, com a maior sem cerimônia do mundo, corno se estivesse em sua casa, sem fazer caso dos soldados da guarda e sentinelas.

Vendo aquele homem tão feio, soldados e criados deixaram-no passar livremente. Bertoldo de resto, não lhes pediu licença, e ia entrando, atravessando salas e salões, antecâmaras e gabinetes, corredores e aposentos.

Chegou finalmente à sala do trono, onde o rei dava audiência, rodeado de ministros e conselheiros.

Ao passo que toda gente se conservava em atitude respeitosa, de cabeça descoberta, Bertoldo entrou arrogantemente, e sem tirar o chapéu, foi sentar-se ao lado do soberano.

O rei, que era um bom homem, e tinha predileção pelas figuras exóticas, longe de se zangar, dirigiu-lhe a palavra:

— "Quem és? Que idade tens? Donde vens?"

— "Eu sou um homem", respondeu Bertoldo. "Nasci no dia em que minha mãe me pôs no mundo. Venho da minha terra".

O monarca viu logo que tratava com um homem espirituoso e desembaraçado, e aproveitou o ensejo para se divertir, fazendo-lhe perguntas:

— "Qual é a coisa mais rápida que há no mundo?"

— "É o pensamento".

— "Qual é o melhor vinho?"

— "É o que se bebe em casa dos outros".

— "Qual é o mar que sobe sempre?"

— "É o mar da avareza no coração do avarento".

— "Que farias tu para trazer água dentro de uni cesto?"

— "Esperaria que a água ficasse gelada".

— "Na verdade, tens espírito", disse o rei. "Simpatizo contigo, e como, naturalmente vieste cá para pedir alguma coisa, dize o que queres, e eu to darei".

— "Qual", retorquiu Bertoldo. "Ninguém pode dar aquilo que não tem!"

— "Como!" exclamou sua majestade.

— "Que é que não tenho? que é que te não posso dar?"

— "O que eu quero é a felicidade, e tu não a tens".

— "Julgas, então, que não possui a felicidade um homem que se senta sobre um trono?"

— "Quanto maior é a altura, maior é o tombo", falou Bertoldo.

— "Mas, estes ministros, estes gentis-homens, toda essa gente que me rodeia, e que só espera as minhas ordens, que dizes tu deles?"

— "Digo que as formigas também rodeiam a árvore, para viverem dela".

O soberano, que não estava muito satisfeito Por ouvir aquelas verdades nuas e cruas, disse pondo termo à conversa:

— "Acabemos com isso. Queres ou não ficar na corte?"

— "Aquele que goza da liberdade não deve Procurar a escravidão", replicou Bertoldo.

— "Então, que fim tiveste vindo aqui".

— "Supus que o rei era diferente dos outros homens, e agora vejo que é gente como qualquer. A única diferença é que é rei".

— "É verdade", disse sua majestade, "que sou uni homem como qualquer outro. Mas se não difiro do resto, se não sou maior nem menor, tenho o poder que me torna superior a todos. E o meu poder ordena que te vás embora".

— "Irei", respondeu Bertoldo, "mas fica sabendo que as mascas tornam ao mesmo ponto de onde foram enxotadas".

Dizendo isto, retirou-se.

* * *

Tempos depois, também num dia de audiência Pública, o rei se achava com a corte reunida. A sua presença, haviam comparecido duas mulheres, uma das quais acusava a outra de lhe ter roubado um espelho.

Bertoldo entrou nessa ocasião e misturou-se com espectadores.

— "Que infâmia!" exclama a queixosa: "Ela ousa dizer que este espelho é seu! Como é que a terra não se abre para tragá-la? Ah! Deus do céu, fazei com que seja descoberta a sua mentira!"

Levaram assim as duas a se acusar mútua-mente, quando o rei, mandando-as calar, pronunciou a sentença:

— "Já que não se pode descobrir a verdade, nenhuma das duas terá o espelho, e ordeno que o quebrem em pedacinhos".

— "Não não! exclamou a queixosa. "Renuncio ao meu espelho, antes que o ver quebrado!"

Reconheceu-se, então, que ela dizia a verdade, e o soberano mandou que a outra lho restituísse.

Todo o mundo aplaudiu a sabedoria e a retidão do rei.

Bertoldo foi o único que não aprovou a justiça real, dizendo que jamais pessoa alguma, desde o princípio do mundo, havia ainda conseguido descobrir a verdade, e apaziguar totalmente brigas, quando se tratava de mulheres.

O rei, tendo noticias daqueles comentários mandou chamá-lo à sua presença.

Bertoldo sustentou o que dissera, e tendo o monarca feito maiores elogios ao sexo feminino, disse-lhe o outro:

— "Pois apostemos em como eu te farei pensar de outra forma".

Aceitou o rei a aposta.

Saindo dali, Bertoldo dirigiu-se à casa da proprietária do espelho, e comunicou-lhe que vinha buscá-lo, para parti-lo em pedaços, por ordem do rei.

***

A mulher, recebendo a intimação, correu para a vizinhança, chorando, arrepelando-se, foi de casa em casa contar a resolução do soberano.

Todas as outras saíram à rua e pouco depois comparecia em palácio numerosíssimo grupo de mulheres, fazendo barulho, em horrível confusão.

O rei ficou indignado, desdisse todos os louvores que fizera ao sexo feminino, e perdeu a aposta.

Passados dias, estava Bertoldo em palácio, quando um criado, aproximando-se do rei, disse alguma coisa em voz baixa.

— "Bertoldo!" falou o rei, "a rainha manda-me pedir que te envie à presença dela".

— "Há mensageiros agradáveis e mensageiros da desgraça", respondeu ele.

— "E então? Os homens são desconfiados, e temem, quando a consciência os acusa".

— "E os homens da corte mostram-se alegres, sem que a sua alegria seja verdadeira e sincera".

— "O inocente nada receia", disse o soberano.

— "Uma mulher com raiva, uma estopa inflamada, um ferro em brasa, são coisas que sempre me fazem receio".

Bertoldo, embora sem vontade, foi ter com a rainha, que contra ele concebera ódio mortal, sabendo como falava mal das mulheres.

Já estava tudo combinado.

Enquanto Bertoldo falasse com a rainha, uma das criadas, armadas de um grosso cacete, devia dar-lhe uma grande pancada na cabeça e matá-lo.

Ele, porém, pressentiu a trama, vendo o que se passava, pelo espelho colocado na parede.

— "Quem és tu?" indagou a rainha.

— "Sou um homem que tem o dom de saber o futuro, e adivinhar os pensamentos dos outros".

— "Que pensamento serás capaz de adivinhar?"

— "Que aqui neste aposento existe uma criada escondida armada de um pau, para matar o rei".

A criada, espantada com aquilo, fugiu sem realizar o seu intento.

* * *

Mas a rainha estava resolvida positivamente a acabar com a vida do inimigo do seu sexo.

Ordenou que alguns lacaios o acompanhassem até o corpo da guarda, e ordenassem aos soldados que dessem uma sova terrível.

— "Já que vossa majestade manda-me espancar, peço uma coisa. Recomende aos lacaios que digam somente estas palavras: "Batam, mas não batam no chefe".

A rainha satisfez àquele pedido simples.

Bertoldo pôs-se à frente dos lacaios, e chegando à guarda, gritou:

— "A rainha manda dizer que batam mas não batam no chefe".

— "Batam mas não batam no chefe!" exclamaram os lacaios.

Atarantada, a soldadesca não sabia que fazer, e Bertoldo aproveitou-se para fugir.

Ficaram apenas os criados, a quem moeram de pancadas.

As mulheres, estando revoltadas com o juízo que sobre elas fazia o rei, depois da peça pregada por Bertoldo, dirigiram um memorial, pedindo que lhes fosse concedido o direito de votar, intervir nas deliberações públicas, e tomar parte nos conselhos da coroa.

A frente delas estava a rainha.

O rei, não sabendo como resolver o caso, pediu conselho a Bertoldo.

Bertoldo foi ao mercado, comprou um passarinho, encerrou-o dentro de uma caixa pequena e disse ao rei:

— "Mande-a à rainha, recomendando que a não abra, e que a traga amanhã à audiência. Então será concedido o que as mulheres pedem".

A rainha e as outras requerentes não puderam resistir a curiosidade.

Abriram caixinha, de onde o pássaro voou, fugindo pela janela aberta.

Quando no outro dia apresentaram a caixa vazia, disse-lhes o rei:

— "Pois se as mulheres não podem sofrer a curiosidade de ver o que encerra uma caixa, como pretendem se associar aos segredos do Estado?"

Não podendo mais suportar Bertoldo, a rainha ordenou que pusessem uma matilha de cães de caça no pátio, e quando passasse, os iscassem sobre ele. Avisaram-no, porém, em tempo.

Quando passou, e soltaram a cachorrada, ele abriu o paletó, e deixou fugir uma lebre que trazia. Os cães, vendo a caça, saíram-lhe ao encalço, deixando Bertoldo em paz.

* * *

Então, instigado pela rainha, o rei mandou enforcá-lo.

— "Só quero que me seja concedido um favor".

— "Qual é?" perguntou o rei.

— "É que me deixem escolher a árvore em que deverei ser pendurado".

O rei concedeu, e assim ordenou ao carrasco. O carrasco saiu com Bertoldo.

Todas as árvores que via, o paciente não aceitava, escolhendo sempre.

Andaram por toda a floresta, passaram a outras, e assim correram o mundo inteiro sem Bertoldo jamais encontrar uma árvore, que lhe agradasse.

O carrasco, desanimado, voltou ao reino, e Bertoldo mudou de terra.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025) 

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