Bertoldo era o homem mais feio que
existia no mundo.
Muito baixo, quase anão, gordo,
excessivamente gordo, com as perninhas curtas, tão curtas que mal se viam,
quando andava parecia uma abóbora rolando.
Além disso, era corcunda, tinha os
olhos tortos, cada um para um lado, o nariz achatado e a cara toda picada de
bexigas.
Era um monstro de fealdade,
causando riso e pena ao mesmo tempo a quem o via.
Em compensação a natureza dotou-o
de finíssimo, espírito, sempre pronto para respostas, aliado à inteligência
clara e cultivada.
Um dia Bertoldo resolveu-se a ir à
corte do rei.
Saiu de sua aldeia e tomou a
estrada que conduzia à capital do reino.
Aí chegando, quis ver o palácio, e
entrou pela porta principal, com a maior sem cerimônia do mundo, corno se estivesse
em sua casa, sem fazer caso dos soldados da guarda e sentinelas.
Vendo aquele homem tão feio,
soldados e criados deixaram-no passar livremente. Bertoldo de resto, não lhes
pediu licença, e ia entrando, atravessando salas e salões, antecâmaras e
gabinetes, corredores e aposentos.
Chegou finalmente à sala do trono,
onde o rei dava audiência, rodeado de ministros e conselheiros.
Ao passo que toda gente se
conservava em atitude respeitosa, de cabeça descoberta, Bertoldo entrou
arrogantemente, e sem tirar o chapéu, foi sentar-se ao lado do soberano.
O rei, que era um bom homem, e
tinha predileção pelas figuras exóticas, longe de se zangar, dirigiu-lhe a
palavra:
— "Quem és? Que idade tens?
Donde vens?"
— "Eu sou um homem",
respondeu Bertoldo. "Nasci no dia em que minha mãe me pôs no mundo. Venho
da minha terra".
O monarca viu logo que tratava com
um homem espirituoso e desembaraçado, e aproveitou o ensejo para se divertir,
fazendo-lhe perguntas:
— "Qual é a coisa mais rápida
que há no mundo?"
— "É o pensamento".
— "Qual é o melhor
vinho?"
— "É o que se bebe em casa dos
outros".
— "Qual é o mar que sobe
sempre?"
— "É o mar da avareza no
coração do avarento".
— "Que farias tu para trazer
água dentro de uni cesto?"
— "Esperaria que a água ficasse
gelada".
— "Na verdade, tens
espírito", disse o rei. "Simpatizo contigo, e como, naturalmente
vieste cá para pedir alguma coisa, dize o que queres, e eu to darei".
— "Qual", retorquiu
Bertoldo. "Ninguém pode dar aquilo que não tem!"
— "Como!" exclamou sua
majestade.
— "Que é que não tenho? que é
que te não posso dar?"
— "O que eu quero é a
felicidade, e tu não a tens".
— "Julgas, então, que não
possui a felicidade um homem que se senta sobre um trono?"
— "Quanto maior é a altura,
maior é o tombo", falou Bertoldo.
— "Mas, estes ministros, estes
gentis-homens, toda essa gente que me rodeia, e que só espera as minhas ordens,
que dizes tu deles?"
— "Digo que as formigas também
rodeiam a árvore, para viverem dela".
O soberano, que não estava muito
satisfeito Por ouvir aquelas verdades nuas e cruas, disse pondo termo à
conversa:
— "Acabemos com isso. Queres
ou não ficar na corte?"
— "Aquele que goza da
liberdade não deve Procurar a escravidão", replicou Bertoldo.
— "Então, que fim tiveste
vindo aqui".
— "Supus que o rei era
diferente dos outros homens, e agora vejo que é gente como qualquer. A única
diferença é que é rei".
— "É verdade", disse sua
majestade, "que sou uni homem como qualquer outro. Mas se não difiro do
resto, se não sou maior nem menor, tenho o poder que me torna superior a todos.
E o meu poder ordena que te vás embora".
— "Irei", respondeu
Bertoldo, "mas fica sabendo que as mascas tornam ao mesmo ponto de onde
foram enxotadas".
Dizendo isto, retirou-se.
* * *
Tempos depois, também num dia de
audiência Pública, o rei se achava com a corte reunida. A sua presença, haviam
comparecido duas mulheres, uma das quais acusava a outra de lhe ter roubado um
espelho.
Bertoldo entrou nessa ocasião e
misturou-se com espectadores.
— "Que infâmia!" exclama
a queixosa: "Ela ousa dizer que este espelho é seu! Como é que a terra não
se abre para tragá-la? Ah! Deus do céu, fazei com que seja descoberta a sua
mentira!"
Levaram assim as duas a se acusar
mútua-mente, quando o rei, mandando-as calar, pronunciou a sentença:
— "Já que não se pode
descobrir a verdade, nenhuma das duas terá o espelho, e ordeno que o quebrem em
pedacinhos".
— "Não não! exclamou a
queixosa. "Renuncio ao meu espelho, antes que o ver quebrado!"
Reconheceu-se, então, que ela dizia
a verdade, e o soberano mandou que a outra lho restituísse.
Todo o mundo aplaudiu a sabedoria e
a retidão do rei.
Bertoldo foi o único que não
aprovou a justiça real, dizendo que jamais pessoa alguma, desde o princípio do
mundo, havia ainda conseguido descobrir a verdade, e apaziguar totalmente
brigas, quando se tratava de mulheres.
O rei, tendo noticias daqueles
comentários mandou chamá-lo à sua presença.
Bertoldo sustentou o que dissera, e
tendo o monarca feito maiores elogios ao sexo feminino, disse-lhe o outro:
— "Pois apostemos em como eu
te farei pensar de outra forma".
Aceitou o rei a aposta.
Saindo dali, Bertoldo dirigiu-se à
casa da proprietária do espelho, e comunicou-lhe que vinha buscá-lo, para
parti-lo em pedaços, por ordem do rei.
***
A mulher, recebendo a intimação,
correu para a vizinhança, chorando, arrepelando-se, foi de casa em casa contar
a resolução do soberano.
Todas as outras saíram à rua e
pouco depois comparecia em palácio numerosíssimo grupo de mulheres, fazendo
barulho, em horrível confusão.
O rei ficou indignado, desdisse
todos os louvores que fizera ao sexo feminino, e perdeu a aposta.
Passados dias, estava Bertoldo em
palácio, quando um criado, aproximando-se do rei, disse alguma coisa em voz
baixa.
— "Bertoldo!" falou o rei,
"a rainha manda-me pedir que te envie à presença dela".
— "Há mensageiros agradáveis e
mensageiros da desgraça", respondeu ele.
— "E então? Os homens são
desconfiados, e temem, quando a consciência os acusa".
— "E os homens da corte
mostram-se alegres, sem que a sua alegria seja verdadeira e sincera".
— "O inocente nada
receia", disse o soberano.
— "Uma mulher com raiva, uma
estopa inflamada, um ferro em brasa, são coisas que sempre me fazem
receio".
Bertoldo, embora sem vontade, foi
ter com a rainha, que contra ele concebera ódio mortal, sabendo como falava mal
das mulheres.
Já estava tudo combinado.
Enquanto Bertoldo falasse com a
rainha, uma das criadas, armadas de um grosso cacete, devia dar-lhe uma grande
pancada na cabeça e matá-lo.
Ele, porém, pressentiu a trama,
vendo o que se passava, pelo espelho colocado na parede.
— "Quem és tu?" indagou a
rainha.
— "Sou um homem que tem o dom
de saber o futuro, e adivinhar os pensamentos dos outros".
— "Que pensamento serás capaz
de adivinhar?"
— "Que aqui neste aposento
existe uma criada escondida armada de um pau, para matar o rei".
A criada, espantada com aquilo,
fugiu sem realizar o seu intento.
* * *
Mas a rainha estava resolvida
positivamente a acabar com a vida do inimigo do seu sexo.
Ordenou que alguns lacaios o acompanhassem
até o corpo da guarda, e ordenassem aos soldados que dessem uma sova terrível.
— "Já que vossa majestade
manda-me espancar, peço uma coisa. Recomende aos lacaios que digam somente estas
palavras: "Batam, mas não batam no chefe".
A rainha satisfez àquele pedido
simples.
Bertoldo pôs-se à frente dos
lacaios, e chegando à guarda, gritou:
— "A rainha manda dizer que
batam mas não batam no chefe".
— "Batam mas não batam no
chefe!" exclamaram os lacaios.
Atarantada, a soldadesca não sabia
que fazer, e Bertoldo aproveitou-se para fugir.
Ficaram apenas os criados, a quem
moeram de pancadas.
As mulheres, estando revoltadas com
o juízo que sobre elas fazia o rei, depois da peça pregada por Bertoldo,
dirigiram um memorial, pedindo que lhes fosse concedido o direito de votar,
intervir nas deliberações públicas, e tomar parte nos conselhos da coroa.
A frente delas estava a rainha.
O rei, não sabendo como resolver o
caso, pediu conselho a Bertoldo.
Bertoldo foi ao mercado, comprou um
passarinho, encerrou-o dentro de uma caixa pequena e disse ao rei:
— "Mande-a à rainha,
recomendando que a não abra, e que a traga amanhã à audiência. Então será
concedido o que as mulheres pedem".
A rainha e as outras requerentes
não puderam resistir a curiosidade.
Abriram caixinha, de onde o pássaro
voou, fugindo pela janela aberta.
Quando no outro dia apresentaram a
caixa vazia, disse-lhes o rei:
— "Pois se as mulheres não
podem sofrer a curiosidade de ver o que encerra uma caixa, como pretendem se
associar aos segredos do Estado?"
Não podendo mais suportar Bertoldo,
a rainha ordenou que pusessem uma matilha de cães de caça no pátio, e quando
passasse, os iscassem sobre ele. Avisaram-no, porém, em tempo.
Quando passou, e soltaram a
cachorrada, ele abriu o paletó, e deixou fugir uma lebre que trazia. Os cães,
vendo a caça, saíram-lhe ao encalço, deixando Bertoldo em paz.
* * *
Então, instigado pela rainha, o rei
mandou enforcá-lo.
— "Só quero que me seja
concedido um favor".
— "Qual é?" perguntou o
rei.
— "É que me deixem escolher a
árvore em que deverei ser pendurado".
O rei concedeu, e assim ordenou ao
carrasco. O carrasco saiu com Bertoldo.
Todas as árvores que via, o
paciente não aceitava, escolhendo sempre.
Andaram por toda a floresta,
passaram a outras, e assim correram o mundo inteiro sem Bertoldo jamais
encontrar uma árvore, que lhe agradasse.
O carrasco, desanimado, voltou ao
reino, e Bertoldo mudou de terra.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)
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