Almansor, célebre califa árabe, que
viveu há longo tempo, estava uma vez em seu palácio, quando lhe apareceu um
mercador vendendo objetos raros e curiosos.
Entre eles havia rica e preciosa
caixinha contendo pós negros, acompanhados de um papel escrito em língua
latina.
Almansor perguntou para que serviam
os pós e o que queria dizer o escrito, mas o vendedor nada soube explicar.
Mesmo assim, o califa comprou a
caixa, e mandou vir à sua presença os sábios, a fim de lerem os caracteres do
pergaminho.
Um deles, mais ilustrado,
conhecendo bem o latim, leu sem dificuldade o seguinte:
Mortal, que encontrares esta caixa agradece a Deus tua boa sorte! Aquele
que tomar uma pitada destes pós, pronunciando a palavra "Mutabor",
poderá transformar-se na ave ou animal que quiser, e entender a linguagem deles.
Para retomar a forma humana, bastará inclinar-se três vezes do lado do Oriente,
pronunciando a mesma palavras. É preciso, porém, evitar rir-se, durante a
metamorfose, porque, se assim suceder, a palavra mágica apagar-se-á
completamente de sua memória, e ele permanecerá animal toda a vida.
Almansor ficou doido de alegria, a
chamando o vizir, seu amigo, narrou-lhe o sucedido.
Combinaram ambos cada um deles
tomar uma pitada do pó negro, depois de decorarem bem a palavra, e
transformarem-se em cegonhas, a fim de se distraírem e correrem aventuras.
Assim se realizou; e, Almansor e o
vizir viram-se mudados em duas belas e grandes cegonhas.
Voaram para longe; e chegando a um
campo encontraram duas aves da mesma espécie que conversavam:
— "Bons dias, menina
Bico-comprido, como tens passado?" dizia umas delas.
— "Muito bem, obrigado, d.
Perna-longa", respondeu a outra.
"Aceita um pouco do meu almoço?
Tenho aqui uma excelente coxinha de rã".
— "Agradecida, mas já almocei
alguns grilos. Depois, não me convém comer muito hoje, pois logo mais à noite
tenho que ir a um baile, e receio ficar afrontada. Vim justamente aqui exercitar-me,
porque não quero fazer figura triste".
— "Então, sem cerimônia. Valse
um bocadinho, que quero apreciá-la".
A jovem cegonha bico-comprido
começou a pular e a saltar, ora num pé só, ora nos dois, e fez mil trejeitos.
O califa e o vizir, apesar de transformados
em cegonhas, não perdiam o raciocínio. Acharam tanta graça naquilo, que
desataram numa gargalhada colossal.
Acabando de rir, lembraram-se que o
não de viam ter feito; e, receosos, quiseram voltar à forma humana.
Debalde tentaram recordar-se da
palavra.
— "Mu... Mu... Mu...
Mu..."
Horrorizados, tristes, abriram vôo,
e foram pai rar longe, muito longe, indo pousar sobre umas ruínas.
Aí procuraram um lugar para se
aninharem, quando viram uma horrível coruja, da mais repugnante espécie.
Tiveram nojo e modo, mas a ave
noturna sossegou-os:
— "Noto pelo vosso andar que
não sois cegonhas de nascimento, e antes criaturas humanas, assim mudadas por
algum feiticeiro diabólico. Contai-vos vossa história, que talvez eu vos possa
ser útil".
O vizir satisfez o pedido da
coruja, e tendo concluído, disse ela:
— "Vejo que me não engana, e
dou graças a Deus. Eu também não sou o que pareço. Chamo-me Silvana, e sou
filha do rei das Índias. Fui transformada em coruja, por um horrível bruxo, que
quis casar comigo. Poderei ensinar-vos a maneira de volverdes à forma
primitiva; mas, para isso, é preciso que um de vós jure que me desposará".
Almansor chamou o vizir de parte, e
falou-lhe:
— "Amigo vizir, você tenha
paciência; há de casar com esta coruja. Ela não é tão feia como parece, e
depois depende disso a nossa salvação".
— "Não, meu senhor, vossa
majestade sabe bem que sou casado, e que as leis do reino proíbem a gente se
casar mais de uma vez. Isso compete-lhe, como mais moço e solteiro, justamente
agora que está no tempo de escolher noiva. Quanto a mim, garanto-lhe que
prefiro ficar cegonha toda a minha vida".
Almansur, em vista daquela
declaração, não teve remédio senão aceitar a coruja como noiva, e isso mesmo
lhe comunicou.
— "Bem", disse ela,
"exigi essa promessa, por uma razão. O meu encanto só cessará no dia em
que um homem me aceitar por noiva. O senhor, jurou, não é verdade?"
— "Sim", disse o califa.
— “Bem. Agora vou contar-lhe o que
sei. Todas as noites reúnem-se nestas ruínas vários feiticeiros que vêm narrar
uns aos outros as bruxarias feitas. Como é provável que vossa majestade fosse
encantado por um deles, escute o que disseram. É possível que eles pronunciem
tal palavra".
Almansor ficou mais animado.
A meia noite chegaram efetivamente
vários bruxos, e principiaram a conversar.
— "Qual foi a tua última
proeza, Barrangão?" interrogou um deles.
— "Mandei um dos meus,
disfarçados em mercador, vender uns pós ao califa Almansor, acompanhados de um
papel que ensinava o meio de se transformar em ave ou animal quem deles
sorvesse uma pitada. Deve a pessoa pronunciar uma palavra. Mas quem se rir, enquanto
estiver transformado, esquecerá a palavra. Ora, estou certo que Almansor se há
de rir, e assim ficará para sempre transformado".
— "Já sei" disse outro.
"Eles não aparecendo, farás proclamar teu filho como califa".
— "É verdade".
—"E que palavra é essa?"
— "Mutabor!" disse
Barrangão.
As duas cegonhas e a coruja
prestaram toda a atenção e repetiram mentalmente a palavra.
Ao romper do dia, os feiticeiros
separaram-se.
Almansor e o vizir apressaram-se em
sair das ruínas; e, mal pronunciaram três vezes a palavra, voltados para o
Oriente, adquiriram a figura humana.
Ao mesmo tempo viram sair das
ruínas a princesa Silvana, que lhe falou:
— "Eu sou a coruja. Já vêem
que disse a verdade..."
— "Saiba vossa
majestade", declarou o vizir, "que me desligo. Estou pronto a receber
a coruja por esposa".
— "Agora, é tarde, meu
velho!" retorquiu Almansor. "Já que Silvana é tão linda, e de mais
princesa, cumpro gostosamente a palavra".
Dirigiram-se todos três para o
palácio, onde pouco depois se efetuou o casamento.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)
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