3/16/2025

O Califa Cegonha ("Histórias da Baratinha"), por Figueiredo Pimentel


O CALIFA CEGONHA

Almansor, célebre califa árabe, que viveu há longo tempo, estava uma vez em seu palácio, quando lhe apareceu um mercador vendendo objetos raros e curiosos.

Entre eles havia rica e preciosa caixinha contendo pós negros, acompanhados de um papel escrito em língua latina.

Almansor perguntou para que serviam os pós e o que queria dizer o escrito, mas o vendedor nada soube explicar.

Mesmo assim, o califa comprou a caixa, e mandou vir à sua presença os sábios, a fim de lerem os caracteres do pergaminho.

Um deles, mais ilustrado, conhecendo bem o latim, leu sem dificuldade o seguinte:

Mortal, que encontrares esta caixa agradece a Deus tua boa sorte! Aquele que tomar uma pitada destes pós, pronunciando a palavra "Mutabor", poderá transformar-se na ave ou animal que quiser, e entender a linguagem deles. Para retomar a forma humana, bastará inclinar-se três vezes do lado do Oriente, pronunciando a mesma palavras. É preciso, porém, evitar rir-se, durante a metamorfose, porque, se assim suceder, a palavra mágica apagar-se-á completamente de sua memória, e ele permanecerá animal toda a vida.

Almansor ficou doido de alegria, a chamando o vizir, seu amigo, narrou-lhe o sucedido.

Combinaram ambos cada um deles tomar uma pitada do pó negro, depois de decorarem bem a palavra, e transformarem-se em cegonhas, a fim de se distraírem e correrem aventuras.

Assim se realizou; e, Almansor e o vizir viram-se mudados em duas belas e grandes cegonhas.

Voaram para longe; e chegando a um campo encontraram duas aves da mesma espécie que conversavam:

— "Bons dias, menina Bico-comprido, como tens passado?" dizia umas delas.

— "Muito bem, obrigado, d. Perna-longa", respondeu a outra.

"Aceita um pouco do meu almoço? Tenho aqui uma excelente coxinha de rã".

— "Agradecida, mas já almocei alguns grilos. Depois, não me convém comer muito hoje, pois logo mais à noite tenho que ir a um baile, e receio ficar afrontada. Vim justamente aqui exercitar-me, porque não quero fazer figura triste".

— "Então, sem cerimônia. Valse um bocadinho, que quero apreciá-la".

A jovem cegonha bico-comprido começou a pular e a saltar, ora num pé só, ora nos dois, e fez mil trejeitos.

O califa e o vizir, apesar de transformados em cegonhas, não perdiam o raciocínio. Acharam tanta graça naquilo, que desataram numa gargalhada colossal.

Acabando de rir, lembraram-se que o não de viam ter feito; e, receosos, quiseram voltar à forma humana.

Debalde tentaram recordar-se da palavra.

— "Mu... Mu... Mu... Mu..."

Horrorizados, tristes, abriram vôo, e foram pai rar longe, muito longe, indo pousar sobre umas ruínas.

Aí procuraram um lugar para se aninharem, quando viram uma horrível coruja, da mais repugnante espécie.

Tiveram nojo e modo, mas a ave noturna sossegou-os:

— "Noto pelo vosso andar que não sois cegonhas de nascimento, e antes criaturas humanas, assim mudadas por algum feiticeiro diabólico. Contai-vos vossa história, que talvez eu vos possa ser útil".

O vizir satisfez o pedido da coruja, e tendo concluído, disse ela:

— "Vejo que me não engana, e dou graças a Deus. Eu também não sou o que pareço. Chamo-me Silvana, e sou filha do rei das Índias. Fui transformada em coruja, por um horrível bruxo, que quis casar comigo. Poderei ensinar-vos a maneira de volverdes à forma primitiva; mas, para isso, é preciso que um de vós jure que me desposará".

Almansor chamou o vizir de parte, e falou-lhe:

— "Amigo vizir, você tenha paciência; há de casar com esta coruja. Ela não é tão feia como parece, e depois depende disso a nossa salvação".

— "Não, meu senhor, vossa majestade sabe bem que sou casado, e que as leis do reino proíbem a gente se casar mais de uma vez. Isso compete-lhe, como mais moço e solteiro, justamente agora que está no tempo de escolher noiva. Quanto a mim, garanto-lhe que prefiro ficar cegonha toda a minha vida".

Almansur, em vista daquela declaração, não teve remédio senão aceitar a coruja como noiva, e isso mesmo lhe comunicou.

— "Bem", disse ela, "exigi essa promessa, por uma razão. O meu encanto só cessará no dia em que um homem me aceitar por noiva. O senhor, jurou, não é verdade?"

— "Sim", disse o califa.

— “Bem. Agora vou contar-lhe o que sei. Todas as noites reúnem-se nestas ruínas vários feiticeiros que vêm narrar uns aos outros as bruxarias feitas. Como é provável que vossa majestade fosse encantado por um deles, escute o que disseram. É possível que eles pronunciem tal palavra".

Almansor ficou mais animado.

A meia noite chegaram efetivamente vários bruxos, e principiaram a conversar.

— "Qual foi a tua última proeza, Barrangão?" interrogou um deles.

— "Mandei um dos meus, disfarçados em mercador, vender uns pós ao califa Almansor, acompanhados de um papel que ensinava o meio de se transformar em ave ou animal quem deles sorvesse uma pitada. Deve a pessoa pronunciar uma palavra. Mas quem se rir, enquanto estiver transformado, esquecerá a palavra. Ora, estou certo que Almansor se há de rir, e assim ficará para sempre transformado".

— "Já sei" disse outro. "Eles não aparecendo, farás proclamar teu filho como califa".

— "É verdade".

—"E que palavra é essa?"

— "Mutabor!" disse Barrangão.

As duas cegonhas e a coruja prestaram toda a atenção e repetiram mentalmente a palavra.

Ao romper do dia, os feiticeiros separaram-se.

Almansor e o vizir apressaram-se em sair das ruínas; e, mal pronunciaram três vezes a palavra, voltados para o Oriente, adquiriram a figura humana.

Ao mesmo tempo viram sair das ruínas a princesa Silvana, que lhe falou:

— "Eu sou a coruja. Já vêem que disse a verdade..."

— "Saiba vossa majestade", declarou o vizir, "que me desligo. Estou pronto a receber a coruja por esposa".

— "Agora, é tarde, meu velho!" retorquiu Almansor. "Já que Silvana é tão linda, e de mais princesa, cumpro gostosamente a palavra".

Dirigiram-se todos três para o palácio, onde pouco depois se efetuou o casamento.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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