OS GATOS DO REVERENDO
Demétrio Ramos, o vigário de Santa
Mônica, homem de grandes virtudes, um santo, não tinha preocupações senão de
piedade e de brandura. Trazia os olhos sempre erguidos, ou para o céu, nas
horas de oração, ou para a vinha, que fazia uma sombra aprazível à frente da varanda
do presbitério.
Mas era homem e tinha uma mania: os
gatos. Andavam às dúzias pela casa, de todos os tamanhos, de todas as cores.
Bichanos macróbios dormiam enroscados sobre as cadeiras, e a petizada, em
correrias trêfegas, punha a casa em alvoroço.
Essa mania não podia comprometer o
venerando pastor aos olhos de Deus, mas comprometia-o aos olhos dos criados.
Os cozinheiros não iam ao primeiro
dia ao presbitério; e, como o vigário preferia aos homens os seus bichos,
andava sempre em luta com a criadagem, sendo muitas vezes obrigado a bater o
seu bife e a coar o seu caldo. Alguns mesmo, antes de tomarem as caçarolas,
despediam-se, vendo surgir o patrão com os bichanos, que miavam, esfregando-se-lhes
pelas pernas.
***
Um dia, porém, apresentou-se no
presbitério um rapazola do campo, e o vigário, mal o viu, simpatizou com ele.
— "Gostas de gatos,
rapaz?"
— "De gatos"? como dos
anjos do céu! Nem há bicho no mundo que se compare ao gato".
O manganão cantou-a bem
conquistando o vigário, que logo, com um pchi!... pchi!... afável, reuniu na
sala a sua bicharia. O criado, enternecido, babando-se de gozo, afagou-os,
tomou-os ao colo e foi uma lida para que os deixasse.
Além do amor pelos gatos o rapazola entendia de temperos como ninguém. As cabidelas que fazia!! Os famosos de vinha d'alhos, as suculentas sopas! Foi um achado, decididamente.
E uma vida nova começou.
Na cozinha, porém, junto ao fogão,
o rapazola encostara uma boa vara de marmeleiro.
Os gatos, senhores da casa,
invadiram os domínios do cozinheiro. O próprio rapazola costumava atraí-los,
engodando-os com pedaços de carne, e quando os via juntos, prenunciava bem
alto: "Em nome de Deus!" e assistia-lhes de marmeleiro que era um
gosto. Os bichos, habituados aos carinhos do vigário, à primeira vergastada
saíam pelo pomar fora, a bom correr.
E todos os dias, duas, três vezes,
a mesma cena. "Pchii!... pchii... pchii..." um pedaço de carne e
marmeleiro de rijo.
Por fim, já o rapazola não fazia
uso da vara. Bastava que dissesse: "Em nome de Deus!" para que os
gatos tomassem rumo.
Quando os viu assim amestrado, o
rapazola, compondo uma fisionomia trágica dirigiu-se ao vigário, que lia à
sombra aprazível da sua vinha:
— "Senhor vigário!"
O reverendo levantou os olhos, e
vendo as feições demudadas do rapaz, estremeceu:
— "Que tens, homem? Que tens?
— "Ah! "seu"
vigário... acabo de descobrir uma coisa horrível...
— "Hein?! Uma coisa horrível!
Então que é? dize!"
— "Vossa reverendíssima tem em
casa uma legião de diabos!"
— "Credo, rapaz! Como?! uma
legião de diabos! Em nome do Padre..." e o vigário persignou-se.
— "Seus gatos são diabos,
reverendo; diabos e dos mais danados".
— "Diabos! meus
gatos?!"
— "Juro-lhe, senhor vigário. E
se vossa reverendíssima quer a prova, chame-os aqui... chame-os todos".
— "Mas..."
— "Chame-os, senhor, vigário.
Eu me escondo, e vossa reverendíssima verá".
O vigário não se fez rogar, e a
tremer orando mentalmente, pôs-se a chamar a bicharia "Pchii!... pchii!...
pchii!..."
Foram chegando, com miados tristes
todos os bichanos, macróbios e petizes, e reuniram-se em torno do padre, que
mastigava esconjuros.
— "Estão todos, senhor
vigário?"
— “Todos..."
Mesmo de onde estava, o rapazola
pronunciou:
— "Em nome de Deus!"
Foi uma debandada horrível. Em menos
de um segundo, toda a bicharia, galgando o muro da porta, passara ao campo,
fugindo como lebres corridas?"
O vigário, boquiaberto, tremia.
— "Então, senhor vigário? que
lhe disse eu?" Desse dia em diante, o rapazola não teve mais receio de que
desaparecesse o assado; e o vigário, que tinha a verdadeira mania dos gatos,
tornou-se pior que um cão. Em vendo um bichano, enfurece-se, e vai-lhe
assistindo de pedra ou de bengala, e sempre com as mesmas palavras:
— "Já me iludiste uma vez; mas
agora fia mais fino!..."
E os gatos fogem do reverendo como
o diabo da cruz.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)
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