3/16/2025

Os gatos do reverendo ("Histórias da Baratinha"), por Figueiredo Pimentel

 

OS GATOS DO REVERENDO

Demétrio Ramos, o vigário de Santa Mônica, homem de grandes virtudes, um santo, não tinha preocupações senão de piedade e de brandura. Trazia os olhos sempre erguidos, ou para o céu, nas horas de oração, ou para a vinha, que fazia uma sombra aprazível à frente da varanda do presbitério.

Mas era homem e tinha uma mania: os gatos. Andavam às dúzias pela casa, de todos os tamanhos, de todas as cores. Bichanos macróbios dormiam enroscados sobre as cadeiras, e a petizada, em correrias trêfegas, punha a casa em alvoroço.

Essa mania não podia comprometer o venerando pastor aos olhos de Deus, mas comprometia-o aos olhos dos criados.

Os cozinheiros não iam ao primeiro dia ao presbitério; e, como o vigário preferia aos homens os seus bichos, andava sempre em luta com a criadagem, sendo muitas vezes obrigado a bater o seu bife e a coar o seu caldo. Alguns mesmo, antes de tomarem as caçarolas, despediam-se, vendo surgir o patrão com os bichanos, que miavam, esfregando-se-lhes pelas pernas.

***

Um dia, porém, apresentou-se no presbitério um rapazola do campo, e o vigário, mal o viu, simpatizou com ele.

— "Gostas de gatos, rapaz?"

— "De gatos"? como dos anjos do céu! Nem há bicho no mundo que se compare ao gato".

O manganão cantou-a bem conquistando o vigário, que logo, com um pchi!... pchi!... afável, reuniu na sala a sua bicharia. O criado, enternecido, babando-se de gozo, afagou-os, tomou-os ao colo e foi uma lida para que os deixasse.

Além do amor pelos gatos o rapazola entendia de temperos como ninguém. As cabidelas que fazia!! Os famosos de vinha d'alhos, as suculentas sopas! Foi um achado, decididamente. 

E uma vida nova começou.

Na cozinha, porém, junto ao fogão, o rapazola encostara uma boa vara de marmeleiro.

Os gatos, senhores da casa, invadiram os domínios do cozinheiro. O próprio rapazola costumava atraí-los, engodando-os com pedaços de carne, e quando os via juntos, prenunciava bem alto: "Em nome de Deus!" e assistia-lhes de marmeleiro que era um gosto. Os bichos, habituados aos carinhos do vigário, à primeira vergastada saíam pelo pomar fora, a bom correr.

E todos os dias, duas, três vezes, a mesma cena. "Pchii!... pchii... pchii..." um pedaço de carne e marmeleiro de rijo.

Por fim, já o rapazola não fazia uso da vara. Bastava que dissesse: "Em nome de Deus!" para que os gatos tomassem rumo.

Quando os viu assim amestrado, o rapazola, compondo uma fisionomia trágica dirigiu-se ao vigário, que lia à sombra aprazível da sua vinha:

— "Senhor vigário!"

O reverendo levantou os olhos, e vendo as feições demudadas do rapaz, estremeceu:

— "Que tens, homem? Que tens?

— "Ah! "seu" vigário... acabo de descobrir uma coisa horrível...

— "Hein?! Uma coisa horrível! Então que é? dize!"

— "Vossa reverendíssima tem em casa uma legião de diabos!"

— "Credo, rapaz! Como?! uma legião de diabos! Em nome do Padre..." e o vigário persignou-se.

— "Seus gatos são diabos, reverendo; diabos e dos mais danados".

"Diabos! meus gatos?!"

— "Juro-lhe, senhor vigário. E se vossa reverendíssima quer a prova, chame-os aqui... chame-os todos".

— "Mas..."

— "Chame-os, senhor, vigário. Eu me escondo, e vossa reverendíssima verá".

O vigário não se fez rogar, e a tremer orando mentalmente, pôs-se a chamar a bicharia "Pchii!... pchii!... pchii!..."

Foram chegando, com miados tristes todos os bichanos, macróbios e petizes, e reuniram-se em torno do padre, que mastigava esconjuros.

— "Estão todos, senhor vigário?"

— “Todos..."

Mesmo de onde estava, o rapazola pronunciou:

— "Em nome de Deus!"

Foi uma debandada horrível. Em menos de um segundo, toda a bicharia, galgando o muro da porta, passara ao campo, fugindo como lebres corridas?"

O vigário, boquiaberto, tremia.

— "Então, senhor vigário? que lhe disse eu?" Desse dia em diante, o rapazola não teve mais receio de que desaparecesse o assado; e o vigário, que tinha a verdadeira mania dos gatos, tornou-se pior que um cão. Em vendo um bichano, enfurece-se, e vai-lhe assistindo de pedra ou de bengala, e sempre com as mesmas palavras:

— "Já me iludiste uma vez; mas agora fia mais fino!..."

E os gatos fogem do reverendo como o diabo da cruz.


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2025)

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