5/04/2025

Branca Como a Neve (Conto), de Figueiredo Pimentel


BRANCA COMO A NEVE

A rainha Laurinda era a soberana mais estimada do mundo, por sua bondade, virtude e bom coração. Para ser completamente feliz, só uma coisa desejava — ter filhos.

Numa noite de inverno trabalhava no bastidor de bordar, cuja madeira era de ébano. De tempos a tempos, olhava pela janela aberta, vendo cair lá fora os flocos de neve.

Distraindo-se, espetou o dedo, em cuja extremidade apareceu uma pequenina gota de sangue.

— Ah! — disse ela. — Como desejaria ter uma filha, cujos lábios fossem vermelhos como este sangue, as faces brancas como a neve, e os cabelos negros como o ébano!

Algum tempo depois seus desejos foram satisfeitos. Nasceu-lhe uma linda criancinha, que tinha lábios rubros, faces níveas e cabelos pretos.

Mas a feliz mãe não gozou durante muito tempo da sua alegria. Morreu; e o rei logo depois casou-se com uma mulher de rara beleza e de orgulho não menos extraordinário.

Essa mulher era tão orgulhosa, que se julgava a pessoa mais formosa de todo o mundo. Algumas vezes encerrava-se no seu quarto, e, pondo-se em frente a um espelho mágico, perguntava:

— Oh! fiel espelho meu.
Dizer-me depressa, vem:
Há mulher mais bela que eu?...

E o espelho respondia:

Ninguém! Ninguém!

Entretanto, Branca como a Neve crescia, e ornava-se cada dia mais graciosa e encantadora.

Não tinha ainda sete anos e ninguém podia vê-la sem ficar admirado.

Uma ocasião, a orgulhosa rainha, sentando-se de novo diante do espelho, perguntou:

— Oh! fiel espelho meu.
Dizer-me depressa, vem:
Há mulher mais bela que eu?...

O espelho respondeu desta vez:

— Sim, agora existe alguém.
Pois Branca te sucedeu!

A altiva rainha sentiu uma dor profunda no coração, como se lhe houvessem enterrado um punhal.

Concebeu ódio mortal à inocente Branca, e no ardor desse ódio não podia encontrar repouso.

Um dia, não podendo mais, chamou um dos seus criados:

— É preciso que Branca pereça. Leve-a para a floresta e mata-a. Para prova de que minhas ordens foram cumpridas pontualmente, quero que me tragas seu fígado e seus pulmões.

O criado levou Branca ao interior da mata, e tirou a faca para executar o crime que lhe tinham ordenado. A boa criança chorava e suplicava que tivesse piedade dela, que desejava viver!...

As suas súplicas, os seus olhares, comoveram tanto o lacaio encarregado de ser o seu carrasco, que murmurou consigo mesmo:

— Não, não posso derramar o sangue desta inocente criatura. Abandoná-la-ei, aqui no mato. Se os animais selvagens a devorarem, o crime será da rainha e não meu.

Assim o fez. Em seguida matou um cabrito, tirou-lhe o fígado e os pulmões, e levou-os à rainha, que exclamou com feroz orgulho:

— Enfim! Minha rival morreu, e nenhuma outra mulher do mundo é mais bela do que eu!

A pobre Branca como a Neve, abandonada na floresta, não tinha morrido, mas sentia-se inquieta.

Pela primeira vez na vida caminhava, com os seus delicados pezinhos sobre duras pedras e espinhos, que lhe despedaçavam os vestidos. Encontrou vários animais ferozes mas que lhe não fizeram mal algum. À sua vista afastavam-se e ela caminhou durante todo o dia, atravessando montanhas.

À noite avistou uma casinha, onde tudo se achava em ordem, com asseio e cuidado. Aí encontrou uma mesa posta, e sobre esta mesinha, coberta com uma toalha, viu sete pequeninos pratos, sete pequeninos talheres, sete pequeninos copos e no outro aposento sete pequeninos leitos.

Branca comeu um pouco de cada um dos pratinhos, bebeu uma gota de cada copo, depois deitou-se numa das sete caminhas, fez a sua oração e adormeceu, serena e profundamente.

Alguns momentos depois os donos da casinha entraram. Eram sete pequeninos mineiros, os anõezinhos da montanha, trazendo a sua lâmpada à cintura. Conheceram que alguém ali havia entrado.

Um deles falou:

— Quem comeu um pedaço do meu pão?

E os outros, sucessivamente:

— Quem pegou no meu garfo?

— Quem comeu os meus legumes?

— Quem bebeu o meu vinho?

E finalmente um deles:

— Olhem quem está deitada no meu leito!

Reuniram-se todos, então, em torno do leito onde Branca dormia.

À claridade das lâmpadas, contemplaram com muda surpresa a boa e formosa criança. Em seguida afastaram-se silenciosamente, sem fazer o menor ruído, a fim de lhe não perturbarem o sono.

No dia seguinte, pela manhã, ao despertar, Branca como a Neve ficou um pouco amedrontada quando viu perto dela os sete anõezinhos da montanha.

Eles, porém, disseram-lhe suavemente que nada teria a recear, e perguntaram-lhe donde vinha e como se chamava.

A menina narrou a sua triste história, e os anõezinhos propuseram-lhe:

— Queres ficar conosco, e tomar conta da nossa casinha?  

— Com muito prazer— respondeu Branca, completamente calma e sossegada por tão bons olhares e palavras tão amistosas.

Começou a fazer o serviço, e continuou-o regularmente todos os dias. Limpava a mobília e preparava a comida. Os anões iam trabalhar nas minas de ouro e de diamantes das montanhas, e de regresso encontravam tudo em ordem.

***

Durante esse tempo, a malvada rainha regozijava-se, lembrando-se que não tinha mais a recear rival alguma. Um dia sentou-se em frente ao espelho, e interrogou-o:

— Oh! fiel espelho meu.
Dizer-me depressa, vem:
Há mulher mais bela que eu?...

E o espelho disse:

— Sim, ainda existe alguém,
Porque Branca não morreu!...

Ouvindo essa resposta, a orgulhosa mulher sentiu o coração despedaçado, e novamente resolveu fazer perecer a inocente Branca.

Não encontrava entretanto um meio. Dia e noite pensava na execução do seu projeto.

Uma manhã partiu, disfarçada (a fim de que ninguém a conhecesse), com cabelos postiços e uma máscara de cera, o que lhe dava todas as aparências de uma velha, vestindo uma roupa grosseira e levando como mercadoria ambulante, um cesto onde pusera vários objetos de fantasia.

Transpôs as sete montanhas, e bateu à porta da casinha, apregoando:

— Quem compra objetos bonitos?  

Os anõezinhos haviam recomendado à menina para desconfiar de qualquer pessoa estranha que ali aparecesse, pois receavam os emissários da rainha, e a moça prometera ser prudente.

Quando viu as lindas coisas que a mercadora trazia, esqueceu as suas promessas.

— Veja esta cadeia de ouro e este bracelete — disse a pérfida mercadora. — Veja este formoso colar. Quer experimentá-lo? Eu mesmo vou colocar-lho.

Branca consentiu, e a horrível megera estrangulou-a.

— Eis aí — disse ela quando a viu estendida no chão, — para castigar a tua beleza.

Depois foi-se embora.

Quando os anõezinhos chegaram, viram a desgraçada Branca caída por terra, completamente inanimada.

Apressaram-se em quebrar o tal colar, depois fizeram-na beber algumas gotas de um licor de ouro. Branca começou a respirar, voltou pouco a pouco à vida, e contou aos seus generosos protetores o que lhe havia sucedido.

— Fica certa que essa malvada mulher — disseram eles, — não é outra senão a tua inimiga, a rainha, toma cuidado, e não abras a porta a ninguém, durante a nossa ausência.

Tornando a entrar no palácio, alegre pelo bom êxito da sua medonha expedição, a rainha sentou-se em frente ao espelho, e perguntou:

— Oh! fiel espelho meu.
Dizer-me depressa, vem:
Há mulher mais bela que eu?...

E o espelho disse:

— Sim, ainda existe alguém,
Porque Branca não morreu!...

A rainha ficou outra vez desesperada, e outra vez, resolveu fazer tentativas a fim de aniquilar Branca.

Disfarçou-se ainda, mas como uma mercadora estrangeira, e levando uma cesta cheia de objetos de luxo. Transpôs as sete montanhas, e bateu à porta da casinha:

— Quem compra joias riquíssimas?  

— Retire-se. Não devo deixar entrar aqui pessoa alguma.

— Tanto pior para a senhora — replicou a malvada. — Veja este pente de ouro. Não há outro igual no mundo.

Branca não pode resistir à tentação de possuir aquele objeto. Abriu a porta.

— Deixe, minha bela menina — disse a mercadora, — penteá-la como deve ficar.

Enterrou o pente envenenado na cabeleira da mocinha que subitamente caiu morta.

— Eis ai — disse ela, quando a viu estendida no chão, — para castigar a tua beleza!

Depois foi-se embora.

À noite, entrando em casa, os anõezinhos viram-na desmaiada e fria sobre o chão. Arrancaram-lhe o pente e reanimaram-na com o seu elixir.

A cruel rainha, durante esse tempo, voltou alegre para o palácio. Assim que chegou, sentou-se em frente ao espelho, e interrogou:

— Oh! fiel espelho meu.
Dizer-me depressa, vem:
Há mulher mais bela que eu?...

E  o espelho disse:

— Sim, ainda existe alguém.
Porque Branca não morreu!

— Ah! — exclamou a rainha, num acesso de desespero e raiva. — É preciso que ela morra, ainda que eu tenha de sacrificar a minha vida.

Vestiu-se como uma camponesa, encheu um cabaz de frutas saborosas, entre as quais colocou uma linda maça, meio envenenada, e partiu.

Foi bater à porta da casinha:

— Quem compra boas frutas?  

— Retire-se — disse Branca, chegando à janela. — Não posso deixar entrar aqui pessoa alguma e também nada posso comprar.

— Pois sim — disse a falsa camponesa. — Não me custará vender tão excelentes frutas. Mas, como a menina é tão formosa, ofereço-lhe esta maçã.

— Muito obrigada, não posso aceitar.

— Pensa que ela está envenenada?! Olhe, a prova está aqui.

E comeu um pedaço do lado bom.

Branca deixou-se tentar, e comeu o outro pedaço. Caiu morta.

— Eis aí para castigar a beleza mais extraordinária do mundo — disse a rainha.

Chegando ao palácio, dirigiu-se ao seu espelho:

— Oh! fiel espelho meu.
Dizer-me depressa, vem:
Há mulher mais bela que eu?...

E o espelho respondeu:

Ninguém! Ninguém!

— Enfim — exclamou ela, com feroz satisfação. — Eis-me sem rival no mundo.

Entretanto os anõezinhos estavam desolados. Em vão haviam tentado reanimar Branca, fazendo-a beber o seu licor de ouro, e outros, ainda mais poderosos. Branca conservava-se fria e inanimada.

Choraram em companhia dos passarinhos da floresta, durante três dias e três noites.

Contudo não a julgaram morta, porque, o rosto conservava a mesma frescura que tivera em vida.

Em vista disso, não quiseram enterrá-la, e mandaram fazer um esquife de cristal onde a colocaram e no qual fizeram inscrever as seguintes palavras:

Aqui repousa uma princesa real.

Puseram esse esquife em uma das sete montanhas, devendo um deles vigiá-lo constantemente.

Branca permaneceu aí durante anos sem que se notasse a menor alteração no seu rosto. Os seus longos e belos cabelos eram sempre negros, as faces brancas, lábios vermelhos.

Um dia, o filho de um rei, tendo-se perdido na caça, atravessou as sete montanhas, e viu o esquife.

Pediu aos anõezinhos, que lho cedesse, por qualquer preço que fosse, mas eles disseram:

— Possuímos imensa quantidade de metais, mas nem por todo o ouro do mundo seríamos capazes de nos separar desse esquife, que é nosso tesouro.

— Pois bem — disse o príncipe. — Então, peço-lhes que me deem. Eu, de hoje em diante, não poderei mais viver sem esta fisionomia encantadora. Colocarei o esquife no mais luxuoso dos aposentos do meu palácio, e venerá-lo-ei dia e noite. Cedam-no, por favor.

Os anõezinhos, comovidos por esse pedido sincero, acederam.

Quatro homens da comitiva do príncipe tiveram ordem de transportar o esquife para o palácio. Caminhando, um deles tropeçou em uma raiz, dando tal impulso no esquife, que o pedaço da maça envenenada, ainda na boca de Branca, caiu.

Imediatamente a mocinha abriu os olhos. Estava salva! Ressuscitara!

O príncipe levou-a para o castelo, e resolveu desposá-la.

As festas do casamento celebram-se com grande pompa, luxo e solenidade, tendo sido convidados para elas os soberanos de várias nações.

Nesse número estava a malvada rainha.

Quando acabou de se vestir esplendidamente, desejosa de maravilhar todo o mundo, dirigiu-se ao espelho:

— Oh! fiel espelho meu.
Dizer-me depressa, vem:
Há mulher mais bela que eu?...

E o espelho falou:

— Sim, ainda existe alguém,
Porque Branca não morreu!...

A rainha cruel estremeceu e descorou. Os seus crimes deviam ser conhecidos. Recordando-se da ordem que havia dado ao seu lacaio, e das tentativas que fizera nas sete montanhas, foi possuída de tal pânico, que caiu fulminada.

Branca sobreviveu ainda durante muito tempo amada e respeitada, e no seu rico palácio de rainha, não esqueceu os anõezinhos, seus benfeitores.


---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...