JACQUES E OS SEUS COMPANHEIROS
Dona Isabel era uma pobre viúva que
só tinha um filho, por nome Jacques. Durante um inverno muito rigoroso, que
assolou o país onde viviam, viram-se tão pobres que só chegaram a possuir uma
galinha e um pouco de farinha de trigo.
Jacques, em vista disso, resolveu
sair de casa e correr mundo, para tentar fortuna.
D. Isabel fez um pouco de pão com a
farinha que lhe restava, matou a galinha e disse:
— Que preferes, tu? Ter a metade
destas provisões, juntamente com a minha bênção ou tudo com a minha maldição?
— O! minha mãe — respondeu Jacques,
— como é que a senhora pode perguntar isso? Com a sua maldição não desejaria
possuir todos os tesouros da terra.
— Bem, meu filho — replicou
docemente a mãe, — toma tudo isso, e que Deus te abençoe.
Jacques partiu. Tanto tempo quanto
pode avistá-lo, sua mãe, de pé, à porta da casinha, segui-o com a vista,
abençoando-o.
O mocinho seguiu em linha reta,
caminhando sempre em frente.
A sua intenção era dirigir-se a
alguma fazenda e aí pedir emprego.
Pouco depois de estar viajando
avistou um burro que caíra dentro de um brejo e que, atolado até à barriga, não
conseguia sair.
— Ó Jacques — exclamou o animal, — ajuda-me
a desembaraçar-me daqui, senão morrerei afogado.
— Pois não! — respondeu Jacques. — Não
precisas pedir-me duas vezes; vou auxiliar-te.
Então, ajuntando ramos de árvores e
pedras, construiu uma espécie de ponte sobre a qual o pobre quadrúpede
conseguiu pousar uma pata, depois outra, e finalmente as quatro, livrando-se,
assim do perigo de que estava ameaçado.
— Obrigado — disse ele,
aproximando-se de Jacques. — Pelo meu lado, se achar ocasião, prestar-te-ei
serviços. Onde vais?
— Vou procurar ganhar a vida, até à
época da colheita.
— Queres que vá contigo? Quem sabe
se não teremos algum encontro feliz?
Ambos se puseram a caminho.
Ao passarem por uma aldeia viram um
cão perseguido por alguns meninos de colégio que lhe haviam atado uma panela à
cauda.
O pobre animal correu para Jacques,
que o tomou sob sua proteção, ao passo que o burro começou a zurrar com tanta
força que os meninos fugiram amedrontados.
— Obrigado — disse o cachorro a
Jacques. — Pelo meu lado, se achar ocasião, prestar-te-ei serviços. Onde vais?
— Vou procurar ganhar a vida até à
época da colheita.
— Queres que vá contigo?
— Vamos.
Quando chegaram fora da cidade
pararam ao pé de uma fonte.
Jacques tirou do saco as suas
parcas provisões, deu parte delas ao cão, e começou a comer, enquanto o burro
pastava a erva que crescia em torno.
Momentos depois chegou-se perto deles
um gato, tão faminto, que teria comovido, com o seu miar doloroso, os mais
endurecidos corações.
— Ah! pobre desgraçado! — exclamou
Jacques, — dir-se-ia que percorreu todos os telhados da cidade depois do seu
último alimento!
— Obrigado! — disse o gato, depois
que o rapaz lhe deu um pouco de comida. — Por meu lado, se achar ocasião,
prestar-te-ei serviços. Onde vais?
— Vou procurar ganhar a vida, até à
época da colheita.
— Queres que vá contigo?
— Vamos.
Os quatro viajantes continuaram a
caminhar.
Pela tarde ouviram subitamente um
grito desesperado, e avistaram uma raposa que corria levando um galo. — Pega,
cachorro!— gritou Jacques.
O cão caiu ao encalço da raposa
que, vendo-se naquele perigo, deixou a presa a fim de correr melhor.
O galo voou alegremente para junto
do moço e falou-lhe:
— Obrigado salvaste-me a vida, e eu
nunca o esquecerei. Agora, onde é que vais?
— Procurar trabalho, até à época da
colheita. Queres ir conosco?
— Com todo o prazer.
— Pois então vem. Se estiveres
cansado, repousar-te-ás nas costas do burro.
Os viajantes continuaram a caminhar
com esse novo companheiro.
Entretanto, todos sentiram grande
necessidade de repousar. Em torno deles, até onde a vista alcançava, não
avistaram uma só choupana por mais miserável que fosse.
— Vamos — disse Jacques, — seremos
mais felizes em qualquer outra ocasião. Hoje não temos remédio senão nos
resignarmos a dormir ao ar livre. Além disso a noite está serena e formosa, e a
terra neste lugar coberta de macia relva.
Deitou-se a fio comprido no chão; o
burro imitou-o, estendendo-se a seu lado; o cão e o gato colocaram-se entre as
patas do complacente animal; e o galo empoleirou-se numa árvore.
Achavam-se dormindo profundamente,
quando, de súbito, o galo começou a cantar.
— Que aborrecimento! — murmurou o
burro, — ser acordado assim bruscamente. Porque é que estás gritando tanto?!
— Para anunciar o nascer do dia — respondeu
o galo. — Não estás vendo a luz que brilha lá longe?
— Vejo uma luz — disse Jacques, — mas
é a de uma lanterna e não a do sol. Provavelmente existe ali uma habitação
qualquer, e nós poderíamos ir pedir agasalho para o resto da noite.
A proposta foi aceita.
A caravana partiu. Caminhou através
dos campos, através dos penhascos, e parou perto de uma casa de onde saíam
grandes e ruidosas gargalhadas, gritos confusos, cantos grosseiros e blasfêmias.
— Atenção — murmurou Jacques, — caminhemos
devagarzinho, passo a passo, para espiar que espécie de gente mora aqui.
Eram seis ladrões, armados de
punhais e pistolas, sentados em torno de uma mesa coberta de esquisitas
iguarias, banqueteando-se alegremente, bebendo suco, vinho e champagne.
— Que bela expedição acabamos de
fazer ao palácio de lord Dunlavin, graças ao auxílio do seu porteiro. Que
excelente homem! À sua saúde!—
— À saúde desse esplêndido criado!—
repetiram em coro os bandidos.
E de uma assentada esvaziaram os
copos.
Jacques voltou-se para os
companheiros e falou-lhes em voz baixa:
— Reúnam-se uns aos outros, do
melhor modo que puderem, e, ao primeiro sinal que eu fizer, façam ouvir todas
as vozes juntas.
O burro, firmando-se nas patas
traseiras, pousou as duas da frente na janela. Os outros enfileiraram-se e
aguardaram o sinal.
Jacques bateu palmas. Escutou-se o
zurrar prolongado e forte do animal, o latir do cão, o miar do gato, e o canto
estridente do galo.
— Agora — gritou Jacques, — armem-se
os soldados! apontem as espingardas! fogo aos ladrões!
O burro meteu os pés nas janelas,
fazendo-as voas em mil pedaços, e os gritos dos animais recomeçaram mais
fortes.
Os salteadores amedrontados,
fugiram para a floresta, escapando-se pela porta dos fundos.
O moço e seus companheiros entraram
no aposento abandonado, fizeram uma excelente refeição, e deitaram-se.
Jacques ocupou uma cama, o burro
foi para a estrebaria; o cão deitou-se, guardando a porta, o galo ficou no
poleiro, e o gato perto do fogão.
Os ladrões, quando se apanharam
sãos e salvos na floresta, ficaram satisfeitíssimos.
Mas logo depois começaram a
refletir e a lastimarem-se.
— Em lugar da terra úmida — disse
um deles, — preferia estar agora deitado na minha cama.
— Eu — disse um outro, — lastimo a
carne assada que estava começando a saborear.
— Quanto a mim — acrescentou o
terceiro, — sinto falta das ótimas garrafas de vinho ainda cheias.
— O que é mais para lastimar — falou
o quarto bandido, — é todo aquele ouro, toda aquela prata, o dinheiro que
roubamos com o auxílio do criado de lord Dunlavin e que abandonamos.
— Quero — disse o capitão, — tentar
penetrar outra vez na casa, e certificar-me se tudo está ou não perdido.
— Bravo! — exclamaram os
companheiros.
O chefe pôs-se a caminho.
Todas as luzes estavam apagadas na
casa onde ele penetrou às apalpadelas. Encaminhando-se para o fogão, o gato
saltou-lhe à cara, arranhando-a com as unhas. O bandido deu um grito e correu
para a porta. Aí, por infelicidade, pisou no rabo do cachorro, que lhe ferrou
os dentes na perna. De novo fugiu, conseguindo finalmente transpor a porta. Mas
o galo lançou-se sobre ele e picou-o com as unhas e o bico.
— Oh! — exclamou ele. — Que raça de
demônios tomou conta desta casa! Como poderei sair dela?
Esperou achar refúgio na
estrebaria, mas o burro deu-lhe tão tremendo coice, que o lançou por terra,
semimorto.
Poucos momentos depois recuperou os
sentidos. Apalpou o corpo, e vendo que nem as pernas nem os braços estavam
quebrados, levantou-se e voltou para a floresta.
— E então?!... e então?!... gritaram
os companheiros assim que o viram. — Podemos reconquistar as nossas riquezas?
— Não — exclamou ele. — Tudo está
perdido; mas, primeiro que tudo, arranjem-me uma cama e preparem infusões e
cataplasmas para as minhas feridas. Não podem imaginar o que padeci por causa
de vocês. Na cozinha, fui assaltado por uma velha feiticeira que estava fiando
na roca e pôs-me o rosto no estado em que estão vendo. Perto da porta, um
sapateiro do diabo feriu-me as pernas; e, do outro lado, Satanás em pessoa
atirou-se a mim com as suas garras. Na estrebaria recebi uma cacetada, da qual
quase morri. Se não acreditam, vão certificar-se pelos seus próprios olhos.
— Acreditamos!— exclamaram os
companheiros olhando para o rosto e o corpo ensanguentados. — Não tentaremos
mais penetrar nessa maldita casa. Tratemos de ver se descobrimos outra.
Pela manhã, Jacques e seus
companheiros, com as provisões dos bandidos, fizeram um excelente almoço.
Depois partiram, a fim de restituir
a lord Dunlavin o ouro e o dinheiro que lhe foram roubados.
Jacques encerrou cuidadosamente
todas as riquezas em dois sacos, que colocou no burro e partiram transpondo
vales, rochedos, colinas, planícies, em demanda ao castelo senhorial.
Diante do majestoso portão do
palácio, encontraram o tratante do porteiro, em grande libré, de meias brancas,
calções vermelhos e cabelos empoados.
Olhou com um ar de desprezo para a
pequena caravana e disse a Jacques:
— Que queres aqui? Nesta casa não
há lugar para ti.
— Entretanto, nós contamos ser bem
recebidos. Mas, certamente, não é a você que nos devemos dirigir.
— Passem fora, vagabundos!— gritou ele
encolerizado. — Tratem de sair já e já, do contrário soltarei os cães.
— Um instante — replicou o galo, que
se achava empoleirado na cabeça do burro. — Poderá nos dizer quem foi que
abriu, na noite passada, a porta aos seis ladrões.
O guarda-portão empalideceu.
Lord Dunlavin, que estava à janela,
gritou:
— Eh! Barnabé! responda à pergunta
que está fazendo tão linda avezinha.
— Senhor — respondeu Barnabé, — este
galo é um miserável. De certo, não fui eu quem abriu a porta aos seis ladrões.
— E como sabes tu, meu rapaz — retorquiu
lord Dunlavin, — que eram seis?
— O que é fato, milord — falou
então Jacques — é que nós trazemos a Vossa Excelência todas as riquezas que lhe
foram roubadas, e que só desejamos o favor de nos mandar dar alguma coisa para
cear e uma pousada por esta noite, porque fizemos longa caminhada e estamos com
fome e cansados.
— Fiquem tranquilos que serão bem
recebidos.
O cão, o burro e o galo foram na
verdade excelentemente instalados, e o gato ficou na cozinha.
Quanto a Jacques, o castelão
reconhecido, vestiu-o ricamente, dos pés à cabeça, pôs-lhe um relógio e cadeia
de ouro no bolso do colete, e disse-lhe:
— Queres ficar em minha companhia?
És honesto, e vejo que és inteligente. Serás meu mordomo.
Jacques aceitou com prazer aquela
proposta e mandou buscar sua velha mãe.
Mais tarde, desposou uma linda
rapariga e viveu sempre feliz.
---
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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